domingo, 27 de janeiro de 2008

25 de janeiro – o dia de voltar pra casa

Era o último dia em Buenos Aires. Estava ansioso para voltar para casa e saber o que tinha de novo em mim, na minha cidade, nas pessoas que eu amo, nos meus amigos, ou seja, queria saber que novo olhar eu colocaria sobre tudo.

Ao mesmo tempo, tinha a manhã para aproveitar Buenos Aires, para caminhar no centro, para olhar aquele céu azul indescritível, para olhar aquelas pessoas e escutar o seu sotaque.

Mas, parecendo que o universo sabia do meu sentimento dividido entre voltar e permanecer, da minha tristeza-alegria daquele instante, o céu tinha se postado nublado. Estava de cara fechada, como se tivesse de mal comigo.

Mesmo assim, não me mandou a chuva. Me deixou caminhar pelo centro e aproveitar a linda, colorida, apressada, barulhenta e populosa, Buenos Aires.

Tinha acordado às 7h da manhã, movido pela pura ansiedade de retornar e de ficar ali o quanto pudesse naquele último dia, e pude aproveitar mais 4h de caminhada, entre às 9h e às 13h.

Depois de depositar o meu olhar contemplativo, embora apressado e encharcado da Buenos Aires que tanto amo e que me afeta inigualavelmente, depois de encontrar Vinícius na rua, voltei ao Clan, agora, para disfrutar um pouco mais da companhia daquelas pessoas que tanto e tão bem me atenderam nas idas e vindas de minha caminha.

Somente não conseguia interagir com Gonzalo, como sempre pleno de seu estresse e da grosseria que o acompanhava naqueles momentos agoniados. Pelo menos, podia brincar com Julio, com Emiliano, com Leandro, com uma menina novata, cujo nome não lembro, com Silvana e com Mari.

Tirei uma última foto com algumas dessas pessoas, falei com Rob, que, de novo, estava no Clan, com Roberto e tomei o rumo do aeroporto.

Enquanto aproveitava os meus últimos minutos de interação com aquele lugar, tive o prazer de ser conduzido por um taxista (infelizmente não perguntei o seu nome nem ele me disse espontaneamente) muito simpático, cheio de estórias, alegre pela vista de tantas pessoas. Quando, diante de sua pergunta sobre minha nacionalidade, lhe disse que era brasileiro, ele tomou um susto.

Segundo ele, porque nunca tinha visto um brasileiro com um espanhol como o meu.

Aproveitei que ele havia me falado sobre isso e dialoguei um pouco sobre a questão da suposta rivalidade entre os argentinos e brasileiros, originada pelo futebol. Nossa conversa foi ainda mais reforçada quando passamos pelo centro de treinamento da seleção argentina e quando lhe contei o episódio que vivenciei em Córdoba.

Sua resposta foi simples e segura: há gente idiota disposta a tudo.

Consciente de que, como brasileiro, não era malquerido naquele lugar, cheguei ao aeroporto. Era como se tudo o que tivesse ido fazer naquele país fosse ter a certeza de que, como brasileiro e por causa de futebol, não precisava ser odiado pelas pessoas. De que podia dialogar, construir compreensões de mundo, unir lutas...

Passei pelo “check in”, paguei a taxa aeroportuária de U$ 18,00 e fui para a sala de embarque. Aí, enquanto esperava por quase duas horas de atraso do vôo JJ 8005 para São Paulo, resolvi tentar mais uma vez falar com Juan. Em vão. Liguei, portanto, para Sérgio. Tinha poucos créditos no cartão telefônico e não pude falar muito. Inclusive, não consegui dizer adeus.

Pode ser que esta seja uma forma de voltar a ver este amigo e a linda Argentina.

Perto de 18h30min. partir da capital portenha e, por volta de 21h, cheguei a São Paulo. Quando sobrevoava a cidade, em procedimento de aterrissagem, empreendi uma conversa com duas mulheres que estavam do meu lado. Chamavam-se Sandra e Márcia. Não sei de que modo, começamos a falar sobre as nossas viagens, sobre nossas experiências, até que contei um pouco de tudo o que havia passado.

Rapidamente, elas se interessaram em saber um pouco mais e conhecer o meu diário de bordo, postado na internet. Márcia queria mostrá-lo a sua filha, também no vôo, estudante de jornalismo que vai, no próximo semestre, cursar uma disciplina sobre turismo, mas também queria tomar contato com a minha vivência e com as fotos com que o deverei ilustrar.

Depois que descemos, fizemos todo o procedimento de entrada no país, passamos pela polícia federal e pela alfândega, pegamos as nossas bagagens e nos despedimos.

Quando estava na sala de embarque para pegar o avião para Aracaju, fazia o olhar passear em busca de alguém conhecido. No primeiro momento, a única pessoa com quem tomava contato era um senhora que, apesar de muito simpática, não parava de falar. Me contava estórias de sua família, me dizia que iria a Aracaju para a formatura em enfermagem de uma afilhada sua...

Enquanto conversamos, tivemos a presença de uma mulher no nosso diálogo. Eu sabia que a conhecia de algum lugar, até que ela revelou que se chamava Simone e que era juíza da 3ª Vara Cível de Aracaju. Foi a oportunidade para que ambas soubessem que eu era advogado e que fazia mestrado em direitos humanos.

A partir daí a primeira mulher com quem conversava só me chamava de doutor. Era muito engraçado.

De repente, outra pessoa conhecida, Wellington Mangueira. Rapidamente, nos falamos porque ele, além de falar com Simone, estava com dor de ouvido. Não queria incomodá-lo.

Quando começou os procedimentos de embarque, me despedi de Simone, que iria para Florianópolis visitar uma filha e segui com a minha bem falante mais nova “desconhecida” amiga. Digo desconhecida porque não sei o seu nome, porque é uma das pessoas que marcaram a minha vida, cujo nome não sei.

Dentro do avião, na poltrona 5F, só para saber que o mundo é feito de grandes, médias e pequenas contradições, me deparei com duas meninas. Pela vestimenta, pela forma de falar, pelos assuntos, e, principalmente, pela tentativa de dialogar frustrada que tive come elas, descobri que se tratavam de um perfil elitista e pouco sociável em relação aos “reles mortais” como eu. Calei e me fiz acompanhar, tal qual tinha feito em uma parte da primeira etapa daquele retorno para casa, pelo samba de Maria Rita.

Ao som daquela suave e humana mulher, cheguei a Aracaju e tive minhas reflexões interrompidas pela minha amiga que gritava incansavelmente “doutor” “doutor”... para que eu pegasse sua mala, a primeira que aparecera na esteira.

Sob os risos e sob a alegria de saber que podia fazer parte da felicidade de uma sergipana residente em São Paulo ao voltar para sua terra natal, não exitei em ajudá-la. Em seguida, nos despedimos e fui buscar minha mãe. Queria abraçá-la. Mas, igual ao que me aconteceu quando voltei da Espanha em 2001, não havia ninguém para me esperar.

Supus que havia esquecido, como da outra vez. Esperei por meia hora e peguei um táxi para voltar para casa.

Com a simpatia de mais um taxista desconhecido, cheguei em casa e descobri que minha mãe tinha ido para o aeroporto.

Enquanto não chegou, perto de 2h da manhã, não fui dormir. Mas, foi só chegar, ouvir suas reclamações, que, aliás, continuavam as mesmas, para que eu fosse deitar.

Imaginava, também, que tudo podia ser diferente daquilo que se mostrava num primeiro instante com a minha mãe. Que a admiração e o carinho que sinto por ela, não precisa nos levar a vivenciar freudianamente nossa relação.

No sábado, enquanto esperava minha irmã e meus sobrinhos, para irmos para a casa de meu irmão, perto de 18h, resolvi ligar a TV e, no canal público brasileiro, passava um documentário (Kollasuyo é o nome) sobre a luta dos indígenas no norte da Argentina e na Bolívia.

Parecia um presente e uma forma de, em mais esta coincidência, ter a compreensão de que a experiência daquela viagem me povoaria por muito tempo. Com lágrimas nos olhos enquanto reconhecia os lugares, a Quebrada de Humauaca, La Quiaca, a fronteira da Argentina com a Bolívia, Villazón, Potosí...

Em Potosí, as minas do Cerro Rico, as mulheres com suas vestimentas típicas (polleras), as injustiças da exploração daquele povo...

Naquelas imagens podia reviver todos os meus sentimentos ao tomar contato com aquele povo, com a forma como os brancos agem injusta e desrespeitosamente com os indígenas e com a incomunicabilidade, apesar das fronteiras impostas pela geopolítica que lhes pertence, de seu território. Mas, em tempo, tinha impressão de, não obstante as contradições do nosso governo federal, liderado pelo Partido dos Trabalhadores, pela primeira vez, o Brasil voltar-se para a América Latina, em relação a que sempre esteve de costas.

E, não era só por causa do documentário que se perguntava e perguntava “onde está a América Latina?”, era porque, pela primeira vez, com a criação de uma TV pública nacional e com a programação com a qual tomei contato antes de viajar, podíamos olhar os povos tradicionais latino-americanos sem julgamentos indevidos e injustos em relação ao seu de viver, mostrando sua cultura, suas lutas, a beleza de seu modo de viver e de superar suas contradições.

Com este documentário, por outro lado, pude compreender que me sinto preparado para olhar, para inebriar-me, para indignar-me com as injustiças, bem como para povoar-me do sentimento e das lutas latino-americanas.

Mais uma vez a descoberta: EU SOU LATINO-AMERICANO!

É assim que volto para casa, LATINO-AMERICANO.

Buenos Aires – o penúltimo dia (24 de janeiro)

Era o penúltimo dia de minha caminhada pelo sul da América Latina. Se no dia anterior estava me sentindo farto, neste dia me sinto povoado de saudade de tudo o que passei, me sinto pleno de estórias e da história do meu povo latino-americano, me sinto pleno de sensibilidade, pleno de latinoamericanidade, ainda que, conscientemente, tinha apenas a sensação de anestesia e medo de perder tudo.

Não conseguia apenas viver o presente. Lamentava a possibilidade de, no futuro, ser tomado por alguma enfermidade que me tomasse as lembranças, que me impedisse de desfrutar de todas elas, de reviver e de reverberar todos os momentos vividos, evidente, com o sabor do tempo futuro, com olhos de outras experiências.

Neste sentido, pensava em passear na rua, em olhar de novo as ruas e o povo de Buenos Aires, o lugar que começou e estava por terminar a minha experiência daqueles últimos 40 dias. Sentia, de igual modo, necessidade de conseguir alguns objetos que marcassem para mim mesmo a minha passagem por aqueles lugares.

Lembrava que, quando estive em Buenos Aires, no início de toda a caminhada, havia visto calendário e postais com o rosto de Che, bem como bandeirinhas dos países por onde iria passar para fixar na mochila, postais de Buenos Aires...

Com o sentido de encontrar recordações simples e baratas, de Buenos Aires e de tudo o que me fizesse lembrar de minha viagem, embora não quisesse nada muito clichê e nada que se tratasse de miudezas ou trecos, saí, pela manhã para o centro da metrópole argentina.

Era o modo de “compensar” o fato de viajar com mochila e não poder levar muitos suvenires dos lugares. Mas, o que buscava não era muito e não era o que o turista comum procura. Queria a música argentina, fotos que retratassem a diferença, a luta argentina e latina, queria encontrar “As veias abertas da América Latina”, de Galeano, em espanhol, para re-ler, agora, que conheço de perto a realidade cruel das minas de Potosí.

Passei toda a manhã caminhando em Florida e Lavalle. Quando encontrei com as minhas buscas no campo da cultura e, do ponto de vista, da lembrança quanto à relação com a caminhada, voltei ao Clan. Queria falar com Juan, com Sergio e Susana, com Horárcio...

Queria me despedir das pessoas que, generosamente, o universo me presentou naqueles últimos dias.

Tentei falar com Juan, nada. Tentei de novo, falei com Ceci, namorada de Juan. Consegui um número de celular, mas não deu. Sentia o incômodo de não ouvir, antes de voltar para casa, a voz de Juan.

Tentei falar com Sergio e Susana. Também, não consegui. Tentei outras vezes, também não consegui. Quando pensava que iria para o Brasil, semelhante ao que me passava em relação a Juan, sem escutar a voz do Sergio e de Susana, recebo um e-mail de Sergio. Liguei, imediatamente para ele e nos falamos. Marcamos um novo re-encontro para às 22h15min., tempo em que esperava já ter acabado o filme “Amor em tempos de cólera”, baseado na obra de Gabriel Garcia Márquez.

Depois que falei com Sergio, conversava com Julio e Angi, quando chegou Virginia, uma Sevillana, que me fez reviver o sotaque andaluz e repassar mentalmente os momentos que tive na Espanha, em 2001. Por alguns momentos, me vi passeando nos bosques próximos da Universidad Internacional de Andalucía, sede de Santa María de la Rábida, no cais de onde saíram as caravelas que chegaram à América... me lembrava de Mariví, de José Ángel, de Verónica, de Majó...

Não era que a conversa com Julio e com Angi era desinteressante. Pelo contrário, foi exatamente o fato de já estar tomado pelos sentimentos gerado com aquele momento que pude absorver tudo o que a presença de Virginia podia proporcionar.

Julio tem uma história muito bonita, de luta e de movimento. Sua mãe foi uma guerrilheira argentina, por isso, foi perseguida pela ditadura militar, teve que fugir com os filhos para o Peru e para a Colômbia. Já grande, Julio assumiu a luta de sua mãe, tornando-se uma pessoa engajada nos debates políticos sobre seu país e sobre a América Latina, percorrendo a Bolívia, o Chile e voltando ao Peru, onde morou por anos.

À parte isso, Julio registrava em fotografia a dureza do povo latino-americano, escrevia suas impressões sobre o mundo e lia muito sobre as impressões dos outros. Enquanto conversávamos, por exemplo, ele tinha uma revista alternativa que tinha uma entrevista com Walsh, morto pela ditadura argentina, com Galeano e com comentários sobre duas fotografias retiradas em 2001, durante a derrubada dos presidentes argentinos pelo povo.

Falamos um pouco sobre isso até que Angi, Virginia e eu seguimos em direção à Lavalle com o objetivo de assistir a “Amor em tempos de cólera”.

Ao final do filme, enquanto víamos os três falando sobre o que havíamos visto, a riqueza de detalhes, a teatralidade, me dei conta de que antes de viajar, eu tinha assistido a “El pasado” e que as mensagens se complementam, agora, não sei se por coincidência, na minha cabeça.

Enquanto “El pasado” me ajudava a compreender a necessidade de encerrar os ciclos para me sentir livre de certos valores, de certas “prisões”, para começar o caminho, “ O amor em tiempo de cólera” me fazia enxergar a possibilidade da entrega à vida com amor ou, na verdade, a viver a vida por amor. Neste caso, se é certo que o amor de Florentino Ariza era voltado para uma mulher (Fermina Daza) e sua vivência estava baseada na vontade de saborear com todas as cores este amor e tudo o que dele adviesse, a mim o filme dava a lição de que toda a dedicação a esta vida deve se dar com fundamento único no amor. Amor é o que move as lutas, as vontades de justiça e igualdade e enche de esperança o coração, fazendo renascer sempre, mesmo diante de cada contradição, minha e das pessoas, seguir acreditando na humanidade.

Agora, era engraçado pensar que ambos os filmes falam de amor. O primeiro do amor que acabou sem dizer fim. O segundo, do amor que não acabou, mas que, para ser vivenciado, precisava ser libertado. Ter uma liberdade, aliás, que, depois de tantos obstáculos, permitisse perceber que os impedimentos, ao final de tudo, compõem as condições que formaram uma forma de viver, de sentir, de superar os medos, de afirmar a poesia e a vontade de transpor tudo o que se impunha ante os olhos amorosos.

O melhor de tudo era perceber que se, como em “El passado”, deveria fechar e abrir novos ciclos para viver a experiência latino-americana, agora, depois de vivenciá-la, com o máximo de sabor que, diante da minha forma de viver e de perceber o mundo, pude construir e absorver, compreender que o amor, de “O amor em tempo de cólera”, vale a pena mesmo quando parece impossível, porque nos prepara para uma forma de olhar e de viver.

Como Florentino Ariza, que só pôde encontrar seu amor no final de sua vida, eu me achava no final de uma jornada e me sentia pleno daquelas vivências, pleno para re-começar, pleno para perceber-me depois de 40 dias de afetação plena da América Latina.

Em questão de segundos, foram todos estes os pensamentos que me tomaram. Como não consigo pensar sem dialogar, pois minhas idéias fluem quando se vêem verbalizadas e tomam contato com a pele de minha boca, dos meus ouvidos, bem como da pele da boca e dos ouvidos de quem me acompanha, toda a reflexão foi compartilhada e se reproduziu na companhia de Angi e de Virginia.

Enquanto eu mergulhava naquelas vivências, naquelas interpretações do cinema para a minha própria vida, elas me acompanhavam e davam o alimento necessário para a minha mente em efervescência. Algumas vezes, elas me olhavam fixamente e, com os olhos brilhantes, me diziam, em silêncio, sua emoção. Eu, embebido daquele sentimento, me sentia mais apto para seguir acreditando nas mensagens que, agora, pareciam claras na cabeça.

O silêncio das ruas do centro de Buenos Aires, quando não era quebrado pela passagem de algum carro, era rompido pelas idéias de amor e humanidade que povoavam aquela conversa. Foi assim, distraídos com aquele diálogo que, para não sermos atropelados, tivemos que correr. A este episódio dei o nome de “correndo por corrientes”, já que Corrientes era a avenida que estávamos atravessando sem perceber que o semáforo estava aberto para o carros e não para os pedestres.

Neste momento também, recuperei com mais força a única preocupação que me fazia interromper e, ao mesmo tempo, impulsionava as minhas reflexões sobre os filmes, pela grandeza do encontro de vida que se abria para mim, a espera de Sérgio na porta do hostel Clan para que nos despedíssemos.

Já eram quase 23h, portanto, apressei o passo e não me detive mais do que o suficiente para me despedir de Angi e, temporariamente, de Virginia.

De longe, olhava o lugar em que Sergio deixou o carro no dia em que foi me buscar para sair com ele e Susana, com a expectativa de que o meu amigo argentino não tivesse ido embora. Mas, diante da inexistência de seu carro no local, quase me acostumava com a possibilidade de não vê-lo antes de viajar, já planejando ligar para ele e Susana no outro dia, antes de partir, quando vi o seu carro na porta do Clan, pela rua Adolfo Alsina.

Por sorte, Buenos Aires, ainda que reclamem os argentinos de seu “perigo”, é uma cidade em que não é temível caminhar ou permanecer no carro, sozinho, á noite. Digo sozinho porque, como Sergio mesmo tinha dito à tarde, Susana não poderia me ver.

Estava com fome e chamei Sergio para caminhar um pouco pela rua Tacuarí, em busca do único lugar aberto e onde se poderia comer empanadas (pastéis de forno). A tentativa de comer foi em vão. Tudo o que o lugar podia proporcionar tinha algum tipo de carne. Desisti e voltei com o meu amigo para o Clan.

Ficamos, por horas, no terraço refletindo sobre aquela amizade que surgia tão forte e tão linda e, mais ainda, refletia sobre o encontro que tive com todas as pessoas que povoou a viagem que estava na véspera de encerrar sua parte “presencial”.

Em algum momento, comecei a falar com Sergio sobre a coincidência dos filmes antes e depois de tudo, mas, sobretudo, sobre a compreensão, daquele momento, de que estava pronto para o presente e para o futuro, existente mesmo com a morte. Pois, esta não interrompe as experiências e as vivências. Mesmo que um se vá, tudo tem o tamanho tal de compartilhamento que tem sempre permanência na vida de alguém, alimenta ciclos, alimenta o amor e a esperança.

Sergio, mais uma vez, com o seu jeito de olhar pleno de crença, sempre com um sorriso oculto, me fitava embevecido da minha fala, e, com isso, eu me sentia mais pleno de poesia e de reflexões.

Ficamos neste diálogo por horas, até que, perto de 2h da manhã, infelizmente, precisei pedir a Sergio que fosse para sua casa. Estava muito cansado. Queria dormir para enfrentar o dia seguinte, dia da minha viagem.

Descemos até a esquina da Alsina com a Tacuarí, lugar em que Sergio deixou seu carro e ficamos aí por mais um tempo. Como Sergio expressava, era difícil aquela despedida. Eu sentia saudade antecipadamente daquele amigo, enquanto ele me dizia do aprendizado que havia obtido no pouco tempo de convivência, da sua vontade de se entregar apenas àquilo de que gosta, de trabalhar com coisas que lhe dêem prazer, da sua única amizade com alguém de outro país latino-americano, mais surpreendentemente, com um brasileiro... (isso porque, imagino, aprendeu desde criança a acreditar na rivalidade futebolística).

Abracei o meu mais novo amigo e, de verdade, senti, naquele momento, que ele conseguia se libertar das dificuldades que tinha antes para abraçar e expressar seus sentimentos.

Eu me emocionava, Sergio se emocionava... depois de um abraço bem forte, tal como fiz com Juan, deixei Sergio sem olhar para trás, de modo que fosse me acostumando com a sua ausência. Tudo isso porque não sei lidar com a perda e, toda partida para mim é uma forma de perder.

Entrei no Clan com um sentimento indescritível de não saber o que fazer depois de tantas experiências. E, ausente de qualquer compreensão, supus que o sono poderia me fazer assentar os pensamentos e, num cantinho da minha cabeça, construiria uma resposta para aquela dúvida.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A reta final

Acho que já estou um pouco farto de viajar. Não sei se já cumpri o propósito do meu percurso ou se, simplesmente, já não consigo enxergá-lo nas andancas que faço.
Depois de 39 dias, viajar não me permite encontrar nada novo e nem encontrar com o novo, do ponto de vista físico. Por isso, suponho que não me inspiro para os encontros espirituais.
Sair de Montevidéo para Buenos Aires, mesmo que tivesse que passar por Colônia do Sacramento antes, nao me afetava. Estava cansado dos dias anteriores em bicicleta e a pé, queria dormir, queria chegar a Buenos Aires, na esperanca de que pudesse me aproximar do dia de voltar para casa. Reviver a minha cultura e, diante dela, absorver o que haveria me proporcionado esta viagem.
Afinal, somente revivendo o cotidiano, posso compreender o que estes dias fora me proporcionaram.
Era este o desejo que me movia desde a noite anterior, quando me separei dos brasileiros em Punta del Este. Precisava cumprir a etapa e me aproximar de casa.
Assim fui dormir e, assim me levantei, depois que fui acordado perto das 5h da manhã, por um pessoal que nao compreende o compartilhamento de dormitórios e arrumava suas mochilas dentro do quarto sem qualquer preocupação em não incomodar as pessoas com o barulho.
Como não consegui dormir, apreveitei o tempo e o computador livre em Montevidéo para escrever as memórias dos últimos dias, ou pelo menos, aquilo que me mais me afetou e, portanto, ficou em minha mente, nos passados mais próximos 3 dias. O reflexo dos momentos constituídos desde a saída de Buenos Aires até Montevidéo e a minha permanencia na capital uruguaia.
Apesar da ansiedade para escrever, para registrar tudo, com o passar da hora, ía ficando nervoso e preocupado em terminar logo para seguir em direçaõ a Colônia. Chegar cedo a esta cidade me faria aproveitá-la um pouco, sem o risco de perder o barco para a capital portenha. Mas, só parei quando meus pensamentos se materializaram completamente em meus escritos.
Perto das 8h saí para tomar um banho, em seguida comi, registrei minha saída e fui, de ônibus, em direção à rodoviária. Isso me demandou tempo suficiente para perder o transporte das 9h30min para Colônia.
Um pouco chateado, quase iria comprar passagem para as 11h30min quando achei melhor perguntar se não havia outra empresa que fizesse o percurso mais cedo.
Acabei viajando às 10h e chegando perto de 13h em Colônia. Minha meta seria deixar as mochilas em um guarda volumes ou despachar no porto com a empresa responsável pela travessia.
Tudo em vão. A empresa que faz a travessia estava sem pessoal para fazer "check in" naquele momento e, na rodoviária, bem próxima ao porto, nao havia vagas para colocar as mochilas.
Duas opções me restavam: ficar parado das 12h45min até as 17h, quando sairia o barco, ou aproveitar a cidade como desse, cheio de mochilas e de peso. Claro, optei por caminhar com as mochilas.
Nao iria deixar que aquele instante passasse por mim sem que eu o aproveitasse de alguma forma. Ainda que já estivesse cansado de viajar, ainda que estivesse com vontade de voltar para casa... não poderia deixar a oportunidade de conhecer outro lugar passar por mim.
Percorri o centro antigo, de colonização portuguesa, onde se travaram batalhas entre portugueses e espanhóis pela região uruguaia. Enquanto fazia isso, procurava um lugar para deixar as mochilas, mas só me deparei com uma pessoa que se ofereceu para isso quando já se aproximava a hora de voltar ao porto.
Tive que fazer toda a minha andança com o peso mesmo. Até que, quase caindo, resolvi passar numa sorveteria, descansar um pouco e tomar quase meio quilo de sorvete. Esse seria o meu almoco.
Em seguida, voltei a caminhar e, já sem rumo, voltei ao porto.
Perto de 17h, embarquei em direção a Buenos Aires. No caminho, conheço Oda, da Suíca, que vai se juntar a uma amiga na capital portenha e seguir novas viagens, bem como uma senhora da província de Neuquén, no sul da Argentina, em que está situada Bariloche.
Foi quase uma hora de muita conversa e de compartilhamento. Nem vi o tempo passar. Neste momento, falávamos sobre a forma das pessoas, sobre as impressões de cada um acerca das pessoas dos distintos países que conhecíamos, que visitávamos, Oda e eu, e compartilhávamos com as interpretações que tinha a senhora sobre as pessoas argentinas e uruguaias.
Já no porto, Oda foi embora que nem se despediu (forma de ser muito estranha de alguns europeus), enquanto a senhora, ao sair, desejou sorte e uma linda permanencia em Buenos Aires.

Satisfeito pela existência de mais encontros, apesar do meu problema em iniciar conversas, da minha dificuldade, agora mais clara na cabeça, de impulsionar, em primeiro momento, os contatos, peguei minhas mochilas e segui pelo centro de Buenos Aires até o Clan. Pelo caminho, não encontrava aquela cidade tranquila que vi no domingo pela manhã. O barulho, a loucura, a presenca de muitas pessoas... tornavam Buenos Aires a cidade louca de que tanto os que vivem aqui falam.
Também, no caminho presenciei dois protestos. O primeiro na praca de Maio, movido por funcionários de um cassino recén-fechado e outro, na Avenida de Maio, cercado pela polícia de choque. Eram jovens que cantavam, tocavam tambores, mas não carregavam faixas, não carregavam cartazes ou outras formas visuais de demonstrar suas reivindicações. Por isso, não consegui descobrir o que exigiam.
Segui meu caminho até o Clan e, pela primeira vez, nao fui bem recebido por aqui. Mesmo quando nao tinha reservas e não tinha vaga, Nico, um dos gerentes daqui, sabendo que já havia estado no local antes, me conseguiu um colchão e tratou de resolver o problema. Ontem, infelizmente, mesmo com reserva não havia vagas e fui antendido por Gonzalo. Este, muito bruto, antes que resolvesse as coisas, tratou de, primeiro, ser mal-educado, de dizer um monte de bobagens, entre elas, que a palavra de que tinha feito a reserva não valia, que só tinha validade a palavra comprovada por um e-mail ou por anotação do pessoal local.
Embora pedisse para que olhasse o caderno de reservas, ele, o que fez foi me pedir que não fôssemos procurar culpados uma hora daquelas.
No final, conseguiu um colchão e me colocou no mesmo quarto em que estava antes de sair para Montevidéo, agora, na parte de cima.
Muito chateado, dialoguei sobre o assunto com Vinícius. Mas, não deixei que isso me tirasse completamente do propósito de aproveitar o final da minha estada em Buenos Aires. Ao mesmo tempo, estava tão cansado que comi, tomei um banho e apaguei.
No meio da noite, chega Owen, com toda a sua atenção e simpatia. Ele me acorda e me oferece a sua cama. Ele iria dormir na casa de sua namorada e deixaria seu lugar vazio.
Como já estava bem instalado no meu colchão, agradeci e lhe pedi apenas que apagasse a luz.
Ele, com mais prova de respeito pelas pessoas, voltou o ventilador para mim, me perguntou se estava melhor para dormir e saiu.
Satisfeito por merecer o carinho de uma pessoa que conhecia muito pouco, voltei a dormir.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Punta del Este - a Miami Uruguaia - 22 de janeiro

Quando pensava que passaria mais um dia sem muita coisa para fazer, sobretudo porque estava cansado dos dias anteriores, já tinha conhecido o que esperava conhecer em Montevidéo... os três brasileiros que estavam no quarto me chamam para ir até Punta del Este com eles e um casal de irmaos que também estavam no hostel.
Pensei pensei... ate que resolvi acompanhá-los. Seria uma forma de interagir com outras pessoas, seria uma forma de brincar e me divertir um pouco na minha própria língua.
Perto de 10h, saímos Heri, Cris e eu, de ônibus, enquanto Conrado, Albertino e Yuri pegaram um táxi do hostel até a rodoviária. Todos levavam suas bagagens, embora somente Cris e Henri fossem registrar sua entrada em um hostel. Os demais iriam deixar suas mochilas em algum lugar e passariam a noite vagando até às 5h30min da manha do outro dia, horário em que voltariam para Montevidéo e, em seguida, sairiam para Colônia e, daí, para Buenos Aires.
Durante toda a viagem de ônibus Henri e eu conversamos, enquanto todos os outros dormiam. Eram vários temas ligados ao nosso dia-a-dia, as nossas formas de vida... até que chegamos ao tema das Fundaçoes de Amparo em Universidades Públicas.
Henri, estudante de Administraçao, defendia a sua existência como forma de garantir a estrutura dos cursos e de aprimorar a qualidade do ensino, embora reconhecesse que isso é mais difícil para os cursos das áeras humanas e que seria importante que os governos federal e estadual (no caso da USP, onde estuda), promover maior aporte de recursos, de modo que nao fosse necessário haver fundaçoes.
Eu, por outro lado, argumentava que as fundaçoes sao uma forma sutil de privatizaçao das universidades, que a manutençao dos cursos através de empresas determinava a formaçao pouco crìtica dos estudantes e profissionais, que os cursos de maior "rentabilidade" se esquivam de lutar pela universidade pública, gratuita, voltada para os interesses públicos...
E, mais ainda, argumentei que as fundaçoes usam o nome da universidade, cobram altos valores por cursos promovidos e nao devolvem nada para as Universidades, principalmente em termos materiais.
Enquanto nos empenhávamos nesta conversa, chegamos ao nosso destino Punta del Este.
Da rodoviária, fomos procurar um lugar para que Cris e Henri pudessem ficar e os meninos pudessem deixar suas mochilas até o outro dia. Em seguida, como precisava de uma boa alimentaçao, insisti na necessidade de procurar um ugar para comer, barato e de boa qualidade.
Sob o efeito de ter econtrado uma boa salada, com preos muito mais baixos que em Montevideo, comprei logo no primeiro lugar em que cheguei. Os meninos, mais espertos e muito cheios de malandragem, tentam baixar o preço do que gostariam de comer, e, tentativas em vao, foram para outro lugar.
Quando chegamos aí, era tudo ainda mais barato. Ah, como me arrependi!!!
Pelo menos, pue complementar minha salada com outras coisas.
Devidamente alimentados, depois de Henri insinuar para uma senhora uruguaia que precisava de casa por milhares de vezes e de sorrirmos muito com tudo o que acontecia, inclusive das compreensoes equivocadas que elas faziam do que Henri e os meninos falavam, fomos para a praia.
Sob muitos apelidos que íamos nos dando, caminhávamos e ríamos sem parar.
A mim, me chamavam de Profeta, de Jesus Cristo, de Che Guevara, Argentino... era muito engraçado e en cantador estar com aquelas pessoas naquele dia.
Era igualmente encantador ver a uniao, o carinho e o respeito que Cris e Henri nutriam um pelo outro. Eram irmaos incrivelmente unidos.
Mais tade na praia tirávamos fotos juntos, caminhávamos, conversávamos...
Até que os meninos, depois de uma caminhada que fiz com Albertino e Yuri em que falávamos sobre o direito, sobre o comportamento dos juízes diante de certos casos, resolveram jogar futebol. Eles que já tinham batido a Argentina no dia anterior por 12 a 11, queriam um novo jogo.
Desse vez, foi um 12 a 4 e um elogio no final de "os brasileiros jogam bonito". Os meninos e Cris, também fanática por futebol e que brincava como uma criança no meio de tantas outras na praia, eram só alegria e comentários do jogo.
No fim da tarde, ao sair da praia, resolvemos passar no supermercado e ir para a rodoviária. No caminho, entretanto, vi uma linda paisagem e tive vontade de conhecer o lugar. Era a praia do outro lado da península de Punta del Este. Era linda, com um pôr-do-sol impressionante, com um pier, com uma passarela de madeira, uma ilha ao fundo...
E, apesar de parecer com Miami, tinha, muito próximo, uns jardins com flores coloridas, lugar em que pedi para que Cris, com a sua beleza, ao mesmo tempo angelical e selvagem, posasse para umas fotos.
Sob brincadeiras e piadas, tirei várias fotos da linda morena dos olhos verdes e, em seguida, fomos para a rodoviária.
Enquanto esperávamos, mais brincadeiras, músicas e algazarra. Cris puxava o coro e, na despedida, gritavam: - vai profeta, vai Jesus Cristo. E, eu, morto de vergonha, tentava fazer de conta que nada daquilo estava acontecendo, embora estivesse, igualmente, feliz pela demonstraçao de carinho.
Às 21h, com o céu ainda avermelhado, tomei o ônibus para Montevidéo e, nas duas horas seguintes, além do cochilo, vim contemplando a lua cheia. Sua beleza era o presente por aquele dia e sua plenitude era o retrato de como me sentia naquele instante.
Perto de 23h20min. cheguei no hostel, organizei minhas coisas, falei com Lis sobre Salvador, sobre a casa de Paulo, dei os telefones dele para ela, tomei um banho e fui dormir.
Queria estar tranqüilo para viajar bem cedo no outro dia.

Montevidéo em bicicleta - 21 de janeiro

A capital Uruguaia parecia pequena e, segundo todos os que a visitam, é pequena. Movido por esta crença, na cidade quase plana, resolvi conseguir uma bicicleta para passar o dia, percorrer as ruas, conhecer as praias...
Na segunda-feira, foi um susto ao sair do hostel e encontrar tudo exatamente como nao era antes. A pressa, a fumaça dos carros e ônibus, o barulho, a quantidade de pessoas... essa nao era a Montevidéo que bailava ao vento, como no dia anterior.
Fui até o hostel "Ciudad Vieja", indicado pelo pessoal do Che Lagarto, para alugar uma bicicleta. Mas, sem encontrar alguma bicicleta em condiçoes de, ao menos, andar, o baixo preço foi apenas uma forma de me deixar chateado. Principalmente, quando chego no Montevidéo hostel para alugar e qualquer bicicleta custava o dobro.
Como queria conhecer mais rápido e percorrer distâncias mais consideráveis do que aquelas que posso fazer em mesmo tempo à pé, aluguei a bicicleta. Isso me custaria o almoço, mas aluguei a bicicleta.
Rapidamente, me dirigi à costa. Ao longo de 19km, passando pelas praias de Pocitos, do Bueceo e dos Ingleses, percorri as margens do Rio da Prata quase confundíveis com o oceano Atlântico.
Nao sei se por que se já tinha caminhado e andado de bicicleta tantos dias, além de ter mais hemácias por causa da altitude que enfrentei no norte da Argentina, no Chile e na Bolívia, nao sentia o esforço. Imprimia boa velocidade e em três horas, percorri os 38km de ida e volta por uma parte da costa de Montevidéo. Só assim, decobri que nao se trata de uma cidade pequena, como, de fato, imaginava. Quando pensava que a cidade se acabava, uma nova enseada se abria ao final de outra...
A cidade linda, moderna, antiga, de algumas poucas subidas e descidas, se mostrava para mim.
Ao chegar próximo do Centro, resolvi desviar da costa e entrei pelo Parque Rondó. Agora, por dentro da cidade, disputava o trânsito com outros tantos ciclistas, carros, motos e ônibus para ver lugares mais distantes, ainda nao visitados.
Depois de 6h30min, agora sim, destroçado, sem forças, tinha que devolver a bicicleta e voltar para o hostel, a poucos quarteiroes de lugar em que deixaria a companheira daquele dia.
Quando cheguei no hostel, tentando comer alguns doces que havia encontrado pelo caminho, se acerca de mim, Ana, uma da pessoas que trabalham na limpeza do hostel. Ficamos conversando por um tempo, até que a ofereci alguns doces. Estava com fome, mas, recuperadas as energias, já nao aguentava mais olhar para coisas com açúcar.
Em seguida, chegou Gisele, uma outra brasileira do Rio Grande do Sul, formada em Administraçao, que tinha vindo passar uns dias em Montevidéo e estava trabalhando uma parte do dia no hostel para pagar sua estada. Conversávamos ate que chegou um rapaz de Salvador e se integrou por um momento ao nosso diálogo. Bom, neste momento, ele cortou a prática de espanhol que eu fazia com Gisele, já que ela está aprendendo a língua.
Mas, como ela precisa trabalhar, isso nao foi de todo um problema. Saímos da sala de TV e fomos para o bar, onde Gisele desepenharia suas atividades nas próximas horas.
Enquanto conversávamos, chegaram três norte-americanos (outros norte-americanos surpreendentes). Chamavam-se Lis, Luís e hava uma outra menina cujo nome nao lembro. Todos, incluídos em um programa de aprendizado da lingua espanhola no Chile, falavam espanhol e eram bastante abertos ao conhecimento de novas culturas. Luís, incusive, é um grande conhecedor da história e da geografia de outros países do mundo.
Diante de tamanha simpatia, nao pude resistir em tentar ajudar Lis, quando ela me disse que iria para Salvador nesta quinta-feira.
Rapidamente, enviei um recado para Paulo, um amigo que tenho em Salvador, para saber da possibilidade de hospedá-la, juntamente com uma amiga.
E seguida, dei-lhe o e-mail de Paulo e os meus contatos, caso quisesse chegar até Aracaju.

O vento baila em Montevidéo - 20 de janeiro

Às 6h30min. da manha me despertei para enfrentar uma nova viagem. Agora, em barco até a cpital do Uruguai, Montevidéo.
Esperava uma nova jornada cheia de novas pessoas, mas traqüila em sua passagem, sobetudo, pelo cansaço físico que já começa a se estabelecer. Afinal, têm sido dias e dias de caminhadas, saídas em bicicleta...
Até perto de 8h esperei a chegada de Nacho no Clan, de modo que pudesse saber se o desconto que me havia prometido se efetivaria. Foi em vao. Ele nao chegava e tive que regitrar a minha saída com Max.
Este só me abateu o valor dos dias em que dormi no chao, ou seja, o valor de duas noites.
Registrada a saída, tomei o rumo à pé do porto em que pegaria o barco para o outro lado do largo Rio da Prata.
No domingo pela manha, Buenos Aires ainda dormia linda e calma. O silêncio era violado apenas pelo cantar de alguns pássaros ou, raramente, por algum automóvel. Era possível apreciar, ao rescente nascer do sol, suas ruas e avenidas completamente vazias de pessoas e plenas de história e de arquitetura.
Com quase 20kg nas costas, depois de 20min. de caminhada, cheguei ao local de saída do barco, em que passei quase 30min. esperando para tirar as mochilas, fazer a emigraçao da Argentina e fazer a imigraçao no Uruguai, tudo no mesmo lugar, numa zona internacional do Porto.
Saído o barco, depois de 3h de convivência com o mundo elitizado dos free shops, das madames e cavalheiros enlouquecidos por perfumes, produtos eletrônicos, comidas de "fino paladar", cheguei ao porto de Montevidéo.
Nao havia nada aberto. Nenhuma informaçao possível. Tentei encontrar um meio com uma mulher da empresa que faz a travessia, mas ela, muito grossa, me pediu que pegasse um táxi ou perguntasse a algum motorista de ônibus.
Resolvi sair do porto e buscar; por mim mesmo, os detalhes de como chegar aos inúmeros endereços de hostéis que, por sorte, havia buscado na internet no dia anterior.
Na saída, um marinheiro e uma recepcionista. Fui em direçao a eles, mas ninguém sabia do que se tratava um hostel ou hostal (coo se costuma chamar em alguns lugares de fala espanhola). Quando apenas indiquei os endereços para os quais gostaría de ir, tudo ficou fácil. E, melhor, pude ter as informaçoes das regioes por onde nao passar, tendo em vista a existência de pessoas que podem cometer furtos e assaltos.
Caminhando pelas lindas ruas, também vazias naquele domingo, do centro antigo de Montevidéo, era como se outro novo se me abrisse. Ao mesmo tempo em que via a arquitetura e o formato das cidades do sul brasileiro e de Buenos Aires, via a sigularidade, via a Montevdéo, apenas.
Até que tive estes sentimentos cortados pela gravaçao de um filme. Tendo algumas ruas cortadas, carregando peso, tive que fazer arrudeios e mais arrudeios, portando, sair da rota traçada pelos únicos informantes que encontrei.
Passava por uma rua, o filme, outra rua, outra cena do filme, uma praça, mais filme...
Depois de caminhar mais de uma hora, cheguei, quase morto, ao Che Lagarto, na praça da Indepedência, sede do governo Uruguaio. Acertei minha entrada, tratei de escrever algumas coisas e saí para comer alguma coisa.
De pronto, percebi que Montevidéo nao é uma cidade barata como me diziam. Para comer qualquer besteira, sempre gastava o equivalente a R$ 9,00 ou R$ 10,00, quando, por esse preço, é possível almoçar em alguns lugares de Aracaju.
Em seguida ao "almoço", fui caminhar. Estava morto, mas queria conhecer a cidade e, para isso, só caminhando.
Por quase 4h percorri, ida e volta, uma avenida que corta a cidade desde o centro antigo até a parte nova de Montevidéo.
O sol era forte, mas o vento frio bailava sobre a cidade tranqüila. O céu azul me ajudava a olhar com mais vigor para as fotografias que a cidade me proporcionava de suas cúpulas, de sua gente, de suas fontes e de suas inúmeras estátuas de cavalos (como podia e esquecer que aqui o que mais tem é estátua de cavalo?).
Via crianças brincando (aproveitando as praças), casais namorando... eu me perdia nas brincadeiras das crianças...
Enquanto voltava, quase sem forças nas pernas, encontro, numa praça, um grupo de pessoas idosas , ao som do tango de baile (mais lento e menos caras e bocas), dançando, arrodeado de outros idosos. Era lindo!
Naquele momento, era como se Montevidéo dançasse para mim, bailasse, empurrada pelo vento fresco, e fizesse, com o seu movimento, bailarem aquelas pessoas. Eram quase 21h e o céu ainda tinha um resto de sol.
A poesia foi apenas interrompida pelo desejo incontrolavel de ir ao banheiro. Queria fazer xixi, mas estava tudo fechado, tentava encontrar um lugar, mas tinha polícia, tinha gente...
Mesmo assim, queria, ainda, aproveitar o pôr-do-sol na beira do Rio da Prata, antes do seu encontro com o mar. As gaivotas faziam no céu, em homenagem ao dia que jazia, um outro baile.
Com aquelas imagens , voltei ao hostel, queria tomar um banho, sair para comer algo e dormir.
Quando cheguei no hostel, encontrei, no mesmo quarto que eu, um grupo de três brasileiros, dois de Minas Gerais, estudantes de direito, e um do Rio de Janeiro, formado em Economia.
Saímos juntos para comer e conversar. Mas, nao fomos muito longe. Depois de nos sentirmos ameaçados por um cara que nos seguia e pedia dinheiro, no calçadao do centro antigo de Montevidéo, acabamos parando em uma pizzaria. Neste lugar, encontrei saladas e suco. Tudo o que eu precisava, depois de dias sem me alimentar bem.
Enquanto comíamos, nao sei em que momento, surge a conversa sobre Direitos Humanos, políticas públicas, direitos do trabalhador...
Para Conrado, o economista, e para Yuri, um dos estudantes de direito, os encargos sociais e os direitos dos trabalhadores, precisavam ser relativizados. Segundo eles, é muito caro manter os postos de trabalho e, cortar direitos seria uma forma de aumentar o número de empregos formais.
Evidentemente, discordei dessa posiçao, acompanhado por Abertino, formando em direito. A exploraçao do trabalho, como melhor pode ser chamada a relativizaçao dos direitos trabalhistas, jamais será uma garantia de emprego. No atual estado de coisas, exige-se um padrao de trabalhador e trabalhadora altamente qualificados e dispostos a ganhar menos. A populaçao de "sobrantes", pessoas que nao tiveram oportunidade de estudar e nao têm "lugar" de trabalho possível, continuará sem emprego em qualquer circunstância, salvo uma açao direta do Poder Público para a criaçao de condiçoes (cooperativas, associaçoes) para que, grupos humanos, completamente excluídos de condiçoes dignas de vida e de trabalho, possam encontrar sua vocaçao.
Para completar estas idéias, levantei ainda o argumento de que a economia precisa enxergar as pessoas, antes de mirar os interesses das empresas.
Sob este tema de discussao, comemos e nos dirigimos para o hostel. Mas, enquanto fui dormir, os três resolveram sair para um barzinho e tomar algumas cervejas.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Caminhos cruzados

Buenos Aires parecia parada aos meus olhos e, para que nao me cansasse de passar todos os dias pensando somente, resolvi caminhar mais um dia. Era como se quisesse fatigar o meu corpo e sentir tudo o que a cidade pudesse oferecer a um caminhante.
Assim, depois das 10h da manha, saí em direçao a lugar nenhum, em busca de nao sei o quê.
Segui por Corrientes... tomei como referência shoppings para ter uma idéia do quanto iria caminhar e para ter, pelo menos, condiçoes de encontrar mais facilmente informaçoes e pedidos de ajuda, em caso de eventual perda do caminho.
Depois de 2h, cheguei próximo do número 3400 em Corrientes. Era um shopping, cujo nome nao lembro, em que fiz um rápido percurso e saí. Tomei o metrô de volta ao Obelisco, na praça da República, e daí, reiniciei a caminhada.
Fui até Palermo, em uma área linda e bem afastada do centro de Buenos Aires Capital Federal. Aí, sabia o que buscava. Queria encontrar uma loja que fabrica e vende malabares.
Pelo que vi na internet, eram coisas muito legais e queia ver se encontrava algo que pudesse levar para o Brasil.
Bom, mas era tudo muito caro e resolvi deixá-los todos em seu devido lugar.
Quando ía em direçao ao centro, resolvi ligar para Sergio e Susana para ver se conseguíamos sair, pelo menos, à noite, depois da tentativa frustrada do dia anterior.
Consegui falar com Sergio, que às 20h passaria no Clan para me pegar.
Sair com Sergio e Susana foi o que de mais importante me passou no dia. De fato, foi uma linda encruzilhada.
Depois de rodar em carro por quase 1h30min, com os meninos perdidos em sua própria cidade, chegamos à praça Itália em Palermo. Em meio aos milhares de pessoas que se amontavam nas calçadas e de bares e restaurantes de Palermo, buscamos um lugar onde aportar e passar alguns momentos conversando.
Quando encontramos um lugar que nos agradou, nao havia lugares na calçada, somente na parte de dentro. Ao entrarmos, Susana percebeu que havia uma mesa recém-desocupad. Enquanto Sergio e ela davam a volta temerosos por nao perder a mesa, eu, que nao perder a criança que tem dentro de mim, pulei a janela e me sentei.
Isto foi o mote para que inciássemos uma linda conversa sobre molecagem, ser criança, tolhimento...
Em seguida, como Sergio e Susana têm um encantamento pelos sons da língua portuguesa, ficamos brincando com as palavras que tinham sentido diferente, embora se escrevessem de forma semelhante, nas nossas línguas.
A melhor parte dessa conversa foi quando começamos a falar dos palavroes. Susana era pudica. Tudo o que se dizia, ela afirmava que era pesado, nao repetia os palavroes, nao queria que Sergio me ensinasse ou repetisse quando nao entendia. Por isso, começamos uma conversa filosófica sobre a repressao da sexualidade e sua face disposta na negaçao do corpo humano com lugar de beleza e satisfaçao. Afinal, todos os palavroes tem algo a ver com o corpo e com a expressao da sexualidade.
Em alguns momentos, Susana aproveitava para brincar com o meu modo de falar espanhol, que se assemelha mais ao modo ibérico que ao argentino, e fazer algumas correçoes no meu modo de dizer algumas coisas. Por um segundo, quando lhe disse algo sobre a imposibilidade de falar tudo perfeito como uma pessoa de fala espanhola, ela pensou que eu estivesse chateado e me disse que nao iria mais falar sobre isso.
Na verdade, eu gosto que me corrigem porque tenho mania de perfeiçao, e essa seria uma forma de tornar o meu espanhol cada vez melhor. Quando as pessoas dizem que falo perfeito, nao acredito. Sei que ainda posso melhorar.
Bom, ficamos horas conversando, até que bateu o cansaço e a lembrança de que no outro dia iria para Montevidéo bem cedo.
Tiramos fotos juntos... tirei algumas fotos de Susana e Sergio e iniciamos o caminho para o hostel.
Enquanto percorríamos os caminhos portenhos, ambos me falavam do nosso encontro, de sua satisaçao em me conhecer, de como falavam de mim para sua família... nem de perto imaginavam como eu era quem estava feliz em ter encontrado pessoas tao lindas, nem imaginavam que sua existência em minha vida a havia posto publicamente para que todos os meus amigos, amigas e quem quisesse ler o que escrevo, pudessem saber deles.
Para completar sua entrega, na porta do Hostel, Sergio, com os olhos molhados, e Susana, chorando, me disseram que a minha vida havia tocado suas vidas. E, mais... com um pouco de exagero, me lembraram que já tinham me dito que eu parecia com Jesus Cristo e que, para eles, eu era o seu Jesus Cristo. Que era um modelo de ética e de dedicaçao para as pessoas.
Fiquei feliz com tudo isso. Mas, ao mesmo tempo, me senti obrigado a suportar, mais uma vez, a responsabilidade de seguir uma vida com etica, respeito e dedicaçao às pessoas sem decepcioná-las. O que, às vezes, me tira o direito de ser eu mesmo, com os meus limites e capacidades. Me impede de dar outros rumos a minha vida, quando nao quero seguir a mesma rota.
Cantei para eles Cançao da América. Emocionados, nos abraçamos...
Embora muito aberto fisionomicamente para a vida, senti que Sergio tem problemas com o abraço. Nao consegue dar-se no momento do abraço.
Os argentinos se cumprimentam com beijos, mas tudo isso é, muitas vezes, apenas um modo automático e sem sentimento de se encontrar com as pessoas. O próprio Sergio confirmou que isso lhe passava, que nao conseguia dar um abraço, nao obstante quisesse libertar-se do fato nao saber fazê-lo.
Em seguida, me disse que, de outra vez, me daria um verdadeiro abraço.
Evidentemente, nao deixei que essa outra vez se demorasse. Naquele mesmo momento, dems um grande e emocionado abraço. E, a ele unimos Susana. Ficamos os três abraçados por algum tempo, no meio da rua, sem que ninguém pudesse entender o que passava. Apenas sentíamos a existência um do outro.
Ao final, nos despedimos mais uma vez e entrei no Clan. De cara, encontrei Vinícius, lhe contei o que passou e ele também se emocionou. Em seguida, me deu tambem um abraço, antes que me emprestasse seu desertador/celular para ajudar-me no outro dia.
Encantado pela magia daqueles momentos, arrumei as mochilas e fui domir. Cansado e feliz em existir, em encontrar pessoas, em ser um caçador de nuvens.
Um caçador de nuvens... como é bom caçar nuvens.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Outro dia sereno

Buenos Aires nao é nada serena se a olhamos do ponto de vista de seus moradores e pessoas que se relacionam em meio a suas ruas, avenidas e esquinas. É intensa, rápida, plena de gente que vai e vem como se fora tudo programado para ontem, como dizemos para referenciar algo de muita urgência.
Eu, ao contrário de tudo isso, estou parado... estou pensando... vivencio o retorno antecipado, como já disse, para absorver, ainda que inconscientemente, as experiências de todo o percurso.
Neste sentido, vivenciei um outro dia apenas de contemplaçao, embora, como no dia anterior, fosse preciso realizar algumas açoes para a continuaçao da viagem stricto sensu, porque a viagem, de fato, nunca terminará.
Ir ao banco, procurar passagens e outras formas de chegar ao Uruguai, foram as açoes que me tomaram pela manha.
À tarde, depois de um breve almoço, sob o sol, em um banco do calçadao de Puerto Madero, liguei para Sergio e Susana, com o intuito de que organizássemos um novo encontro para a noite, e resolvi rever a Boca.
Pensava em chegar até o estádio do Boca Juniors, mas quando percebi que aquele lugar, mais que em 2005 quando estive em Buenos Aires pela primeira vez, as vielas haviam se tornado um grande comércio, inclusive de tango, nao havando nada mais do comprar como atividade.
Em fuga das compras, perdi o ânimo para estar na Boca e tentar chegar até o estádio do Boca Juniors. Percebi que os motivos que movem as pessoas a estes lugares nao sao compatìveis com os meus.
Voltei para o meu abrigo: o Clan. Aí sim, de alguma forma, me sinto mais preenchido. Ao chegar no hostel, minha cama (meu colchaozinho no chao de um quartinho no fundo), tinha sumido.
Preocupado, desci para falar com Nacho. Sua resposta foi que já tinha um lugar digno para que eu permanecesse. E, me mostrou uma cama num quarto no primeiro andar.
Por se tratar de um quarto com muita gente, pensei muito antes de fazer a escolha, mas, como nao tinha como retornar ao meu lugar, que já estava preenchido por outras três pessoas, acabei aceitando. As outras opçoes eram ainda piores. Quartos muito mais próximos do bar e do barulho das festas do Clan.
Em seguida ao aceite, antes mesmo de descer as minhas coisas para o primeiro andar, fiquei ajudando Nacho a dobrar os mapas que se entregam aos cleintes. Fazia parte (e faz parte) de meu modo de refletir, realizar trabalho com as maos.
Por quase duas horas, dobrei e dobrei, juntamente com os mapas, meus pensamentos. Às vezes, nao sei nem em que pensava, em que lìngua, mas deixava a fluidez da minha mente se encarregar do quê e de que modo se espraiar.
Enquanto estava ali no meu trabalho, conversava sobre vários assuntos com Nacho e, em algum momento, ele me prometeu um desconto nas minhas estadas. Me cobraria o preço anterior à alta estaçao, pelos motivos de estar no colchao e por ter contribuído com a casa.
Fiquei feliz com isso, mas, ao mesmo tempo, apreensivo. A recepçao tem muita rotatividade, podendo ser que, no instante em que registre a minha saída, amanha, antes de ir para Montevidéo, Nacho nao esteja e toda a promeça se perca.
Bom, mas de qualquer forma, já valeu pela simpatia e pelo reconhecimento me foi despendido com a promessa.
Durante a conversa e a dobradura, chega também Vinícius. Ele queria ir para o terraço conversar. Mas, já tinha assumido o comprisso de dobrar os mapas. Faltava pouco e nao gosto de deixar as coisas que começo pela metade. Pedi, em vao, que ele esperasse um pouco.
Ele foi sozinho. Paciência!
Em seguida, desci com as minhas mochilas, me instalei no quarto e fui para a sala de televisao. Estava passando um filme na Warner Bros terrível. Uma completa propaganda ideológica comprada pelas pessoas de origem nórdica que assitiam à TV antes que eu chegasse.
À custa de encontrar supostos terroristas, o filme justificava a tortura como método de obter informaçoes; justificava o homicídio de suspeitos; defendia a esquizofrenia coletiva e a construçao de panóptipos sociais, através do incentivo à delaçao de comportamentos suspeitos promovidos por determinados segmentos étnicos. Era uma completa barbárie.
Quando permaneci só, tratei de mudar de canal. Queria ver esportes.
Até chegarem uns israelenses que nao paravam de falar (muitas vezes, os hebreus adotam uma série de comportamentos anti-sociais e, por isso, nao sao bem aceitos em hósteis), assisti ao basquete NBA. Depois, a todo momento, queriam mudar de canal, queriam assistir a outras coisas...
Fizemos um acordo quanto a mudar do basquete para o tênis, mas os três (dois rapazes e uma menina) nao paravam de falar.
Ansioso porque Suzana e Sérgio nao me ligavam e sem conseguir ver nada mesmo, resolvi deixar a sala de TV e ir para o computador tentar algum contato com os amigos que conheci durante a viagem da fronteira da Argentina com a Bolívia até aqui.
Havia um e-mail de Suzana informando que o telefone que tinham do Clana nao estava funcionando.
Deixei um novo e-mail dizendo que já estava tarde, convidei para que passássemos o dia juntos e fui dormir.
Tratando-se de um quarto muito movimentado, esta foi uma tarefa muito difìcil, mesmo com protetores de ouvido. A cada batida de porta, nao apenas extremecia as paredes. Minha cabeça tremia junto.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Buenos Aires serenos

Depois de tantas experiências, depois de tanta reflexao e felicidade de me sentir outra pessoa, mais ainda, por imaginar que, agora, na volta para Buenos Aires, nao necessito de pressa para conhecer a cidade e as pessoas, vejo, serenamente cada rua, cada pessoa, cada esquina que se cruza e, que ao se cruzar, me leva a uma nova encruzilhada de pensamentos.
Apenas caminho... e caminho... é como se caminhar me levasse a todos os pensamentos e a todos os momentos da viagem. Muitas vezes, inclusive, revivo sensaçoes, interessantes e nao tao interessantes, que constroem esta viagem. Digo constroem porque nada pode ser fracionado. Uma experiência só se conta pelo todo.
Se caminhar é parte deste processo, o dia de ontem nao poderia ser diferente. No meio desta caminhada, a realizacao de algo que se fazia necessário, mas nada que nao estivesse, diretamente vinculado ao propósito central de vivenciar.
Mesmo tendo que deixar a roupa para lavar, precisar comprar uma outra mochila para substituir aquela que se "portou" muito bem até poucos dias... tudo era parte da caminhada do meu dia.
Depois de quase 4h, voltei ao Clan, ao espaço que, como um verdadeiro Clan, faz a cada um de nós se sentir portadores e integrantes de uma família. Uma família um pouco barulhenta, plena de festas durante todos os dias da semana... uma semana mais parecida com o tempo de matrimônio de uma família cigana.
Reorganizei as coisas, agora na nova mochila, e, mesmo querendo voltar logo para a rua, me senti convidado para uma conversa com os brasileiros Roberto e Vinícius, que estao também no Clan. Roberto, aliás, já estava aqui quando estive pela primeira vez. Agora, trabalha fazendo o almoço.
Por quase duas horas, conversamos. É verdade, que os assuntos, em alguns momentos pouco me atraíam por se tratarem de temas e posturas muito machistas. Mas, a presença deles, apesar de certos diálogos, é agradável e brasileira. Digo brasileira no sentido autêntico de acolhedora, compartilhadora.
Depois, quando ía sair, Vinícius se ofereceu para me acompanhar na caminhada da tarde. Mas, na verdade, ele queria companhia para caminhar também em busca de algumas de suas necessidades, agora que vai morar em Buenos Aires por um ano, para estudar medicina.
Por Florida, por Lavalle, por Corrientes... caminhamos em busca de um celular para Vinícius, que se dizia germano-brasileiro, empresário, advogado, doutor em direito tributário por universidade alema, taurino, casado... ufa!
Foi uma tarde para escutar estórias.
Já no final da tarde, enquanto o cansaço de ter ficado a noite no computador escrevendo as memórias de dias anteriores, fomos ao Puerto Madero. Queria ver as passagens em barco para Montevidéo e, ao mesmo tempo, caminhar. Vinícius queria apenas tomar sol. Por isso, depois que vi tudo o que precisava ver para seguir viagem para o Uruguai, paramos por quase uma hora para que ele ficasse ao sol.
Em seguida, subimos de novo para Florida. Como a pizzaria que Vinícius buscava estava fechada, fomos ao supermercado, já muito próximo do hostel, compramos algumas coisas e fomos para "casa".
Aí conheci uma menina alema que gostava muito do Brasil, mas tinha muito medo de ir até o nosso país, segundo ela, por causa da violência. Por um tempo, enquanto comia, conversamos. Tentava eliminar um pouco dos seu preconceitos em relaçao ao Brasil e, escutava sobre suas atividades sociais em Buenos Aires.
Como costuma acontecer em hosteles, a gente conversa com as pessoas e consegue saber seu nome. De fato, nao sei essa informaçao importante. Por isso, a chamarei, infelizmente, de "ela".
Ela me disse que paga para ficar alguns dias brincando, dando aulas de inglês, de instrumentos musicais para crianças e adolescentes de bairros pobres de Buenos Aires (me mostrou algumas fotos deste trabalho, incusive).
Para isso, recebe uma camiseta e passa o dia se divertindo enquanto faz o seu trabalho.
Quem me conhece, deve estar pensando se eu nao vou fazer uma crìtica severa a este tipo de atividade. Evidente que devo fazer uma crítica (nao concordo com este tipo de açao assistencialista). Mas, nao posso ser severo nas palavras. Nao posso ser julgativo e arrogante. Posso ser radical sem ser desrespeitoso para dizer, serenamente, que nao considero trabalho social tudo o que perde a oportunidade de transformar, com direitos e com dignidade a vida das pessoas.
Decerto, as crianzas estao na fase de brincar e brincar pode ser um grande momento para transformar a vida das pessoas, para promover encontros de vida que constroem reflexoes. Mas, esta brincadeira precisa estar ligada à idéia de transformaçao, nunca de manutençao da ordem de coisas.
Toda vez que, numa comunidade, a brincadeira é usada nao para refletir sobre a realidade, mas para esquecer os problemas e aliviar as desconfianças e os medos quanto aos seres humanos que ali se formam; quando estamos pensando muito mais em nossa consciência e em nossa felicidade do que na felicidade daquelas pessoas e na dignidade daquelas pessoas... estamos abandonando a idéia de trabalho social.
Com estas reflexoes, terminei de comer, lavei meus pratos e saí em direçao a ela. Mas, ela se foi. Queria olhar o mapa do Brasil e identificar Aracaju, cidade que lhe apontava como meu lugar de origem.
Ficamos olhando o mapa por um tempo e saímos. Fui para o computador tentar me corresponder com Susana e Sergio, mas também com os outros companheiros com quem havia promovido encontros nesta viagem.
Em seguida, deixei que o sono me fizesse o convite. Tomei um banho e dormi.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A viagem para Buenos Aires

A solidao da viagem para Buenos Aires só se rompia quando, em algum momento de parada, Sergio e Susana viam conversar comigo.
Mais uma vez, eram só perguntas. Parecia que as minhas idéias, a minha vida, geravam muita curiosidade neles. A própria Susana na hora do almoco reconheceu isso. Ela dizia que, todo o tempo, só me faziam perguntas e nunca me deixavam comer. Isso porque, no café-da-manha tinha sido assim, porque naquele momento do almoco estava sendo assim e em qualquer parada, mínima que fosse, estava sendo assim.
Eu nao me incomodava. Eu estava adorando conhecer gente tao bonita, apesar de serem, aparentemente mais elitizados, menso envolvidos com questoes mais críticas e com as discussoes sobre política.
Como estavam quase sem dinheiro, devido a extorsao, Susana e Sergio quase nao comiam. Aproveitavam o lanche que haviam servido no onibus e economizavam. Por diversas vezes, ofereci comida, dinheiro... mas eles nao queriam.
Eu sabia que nao tinha muito, mas nao podia deixá-los com fome. Seriam, pelo menos, mais 12 horas de viagem.
No almoco, voltamos a nos reunir e, como vi que eles nao tinham nada pra comer, nem dinheiro, os convidei para almocar. Meio com vergonha, eles aceitaram, mas nao quiseram pedir nada que fosse caro. Resultado, pagamos 18 pesos e comemos bem os tres.
Mais adiante, próximo a Buenos Aires, Susana me envia um bilhete, se colocando a disposicao em Buenos Aires e chamando para sair no final de semana.
Acho que tinha sido esta a forma que encontram de selar aquele nosso encontro.
Quase 21h chegamos a rodoviária do Retiro, no centro de Buenos Aires. Aí, nos despedimos calorosamente com a promessa de que nos encontraríamos e me fui.
Queria novamente caminhar em Buenos Aires. Queria novamente ver as pessoas de Buenos Aires, interagir com Buenos Aires... por isso, optei em ir até o Clan, hostel em que fiquei logo que iniciei esta viagem.
Quando cheguei aí, nao havia vagas, mas ao ver que me conseguiram um lugar para dormir, e ao rever Owen, Nacho, Leandro... fui povoado de um sentimento profundo.
Nao sabia explicar, mas me sentia uma outra pessoa. Era como se, agora, pudesse olhar para aquele lugar e para mim mesmo de forma completamente diferente.
Conversava com Nacho, contava as experiencias... estava entusiasmado e ele também se entusiasmava com minhas histórias.
Era bom. Tudo era bom!
Mas, precisava, depois de dois dias sem um banho, precisava organizar as coisas e lavar a alma. Tirei tudo o que precisava lavar, organizei minha mochila, tomei um banho e desci para escrever.
Queria reviver Potosí, para retomar o que havia deixado inacabado, queria reviver a viagem para falar de Sergio e de Susana.
Ao mesmo tempo, queria falar com a minha casa e me sentir novo diante da voz de minha mae.
Estranho, mas, quando falava com minha mae, esta sensacao passou. Nao sei se tinha medo de sentir o que eu sentia, se achava que tudo o que sentia se perderia com a volta a casa... ou se tinha medo porque, naquele momento, iria assumir uma acao que poderia nao gostar, a de ter mascado folha de coca na Bolívia. O motivo era verdadeiro, mas nao sabia o que iria pensar.
Eu sempre gosto de dizer a verdade aos meus pais e de assumir as coisas que faco. Mas, em alguns momentos eles interpretam meus atos de forma equivocada.
Vendo que minha mae nao teve qualquer reacao adversa, me senti mais tranquilo para pensar, para refletir e para escrever.
Quando consegui o computador, toda a sensacao de antes me tomou de novo. Principalmente, porque havia e-mails de Susana, de Javier, de Nora.
Li tudo, respondi e, povoado de sensibilidade, me pus a escrever.
Assim, estou as 4h20min da manha.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A riqueza explorada de Potosí

Dia 14 de janeiro

Muito cedo, depois de quase 11h de sono, me levantei. Queria tomar um banho, registrar a saída do hostel e ir até as minas do Cerro Rico de Potosí. Estava ansioso para ter contato com o que descreveu Galeano, acerca da exploracao espanhola, em seu "Veias Abertas da América Latina".
Também, depois de pensar um pouco na quantidade de dias que tinha até o meu retorno para o Brasil, estava decido que voltaria a noite para Villazón e, daí, para o norte da Argentina, sob pena de nao conseguir chegar até Assuncao. Imergir-me na realidade de Assuncao me permitiria formar uma idéia mais nítida acerca do Paraguai, haja vista, daquele país, conhecer apenas Ciudad del Este, por ter vivido um ano em Foz do Iguacu e vivido os problemas de violacao de direitos humanos de criancas e adolescentes na fronteira.
Essa seria uma forma de compreender efetivamente o grau de destruicao que nós brasileiros produzimos na história e na vida do povo paraguaio, durante e depois da Guerra do Paraguai.
Com estes pensamentos, me dirigi para a agencia Cerro de Plata, lugar em que reencontrei Marcelo. Conversamos um pouco e lhe pedi que me indicasse um lugar para tomar o café-da-manha. Sem qualquer vacilacao, ele me acompanhou a até o mercado central de Potosí.
Quando cheguei ao local, tentei esquecer o modo como se fazia a comida e as condicoes de higiene. Revivendo o contato que tenho no Brasil com pessoas em situacoes de vulnerabilidade social, esqueci todos os meus julgamentos e apenas comi. Saboriei tanto quanto quando, no meu trabalho de defesa de direitos humanos, sou convidado a comer com as pessoas as quais defendo.
Sem remorco ou preocupacao por haver comido no mercado de Potosí, terminada a refeicao, voltei a agencia e conversei com Evelyn. Queria saber mais sobre a ida as minas e sobre a possibilidade de obter uma passagem para Villazón.
Enquanto conversávamos, chegaram outras pessoas que também iriam para as minas, cuja entrada só é permitida com guias habilitados e conhecedores dos caminhos internos.
Entre as dezenas de argentinos que estavam no onibus, estavam Nora e Guillermo. Foi uma grata surpresa nos reencontrarmos mais uma vez. E, foi uma felicidade recíproca, saber que nossas buscas em relacao a Potosí se assemelhavam. Estavam plenas da consciencia e da necessidade de conhecer melhor a história da América Latina.
Era uma pena que nem todos os que nos acompanhavam
tinham consciencia do que estavam por ver. Alguns tinham o propósito de fazer turismo. Por isso, brincavam.
Eu estava ansioso, ao mesmo tempo, curioso e politicamente enraivecido, em tomar contato com a injustica colonial em nossas terras latinoamericanas.

Esta ansiedade foi aumentando quando cheguei ao pé do Cerro Rico, com a histórias reveladas por Aleida, a nossa guia.
Um dos mitos que tratou de rebater foi o de que os indígenas sempre colaboraram com os espanhóis para a exploracao do Cerro, retratado num quadro afixado no Museu Casa da Moeda.
Segundo os dados e as comparacoes históricas que fez diante de nós, a ajuda indígena nao passava de uma inverdade. Jamais Diego Hualpa (acho que é assim) informou voluntariamente aos espanhóis onde estavam as minas de prata. Foi obrigado a fazer isso depois que os espanhóis, ante a estagnacao das minas que explorava a 15km de Potosí, perceberam o uso de adornos de prata por parte dos indígenas como uma indicacao da existencia de outro lugar de exploracao de prata muito perto.

Além disso, jamais os indígenas poderiam colaborar com os espanhóis para a a exploracao de novas minas de prata se o seu principal meio de exploracao se daria através do uso escravista de seu trabalho.
Nao é por acaso, também, que este trabalho, bem como a própria mina eram cercados de mitos e vigiados pelo olhar atento de um "Tio" (forma Quechua de dizer Dios, já que na sua língua nao existe a letra e o som de "d"), inicialmente, identificado com o diabo. Ademais de impedir que o trabalho fosse interrompido, o demonio garantiria que a riqueza daquele cerro nao seria desviada pelos índios, já insitados a crer que tudo o que se extraía era de propriedade de outros que viriam de muito longe para explorar.

Com o tempo, o diabo passou a ser uma figura que ao mesmo tempo protegia os indíos das catástrofes dentro do Cerro e que fecunda a Pacha Mama para que a riqueza continuasse existindo.
Outra informacao interessante é a que impede o trabalho das mulheres dentro do Cerro. Segundo Aleida, como o Cerro é uma mulher, a Pacha Mama, a presenca de outras mulheres trabalhando, poderia colocar ciumenta a terra e provocar acidentes. Por isso, as mulheres sempre coube o trabalho externo ao cerro, de catar os restos de metais. O que no passado era uma forma de nao desperdicar as riquezas, atualmente, é um meio de coloborar com a sobrevivencia da família.
Passadas as histórias, Aleida nos deu um curso rápido sobre a exploracao e os materias usados na mina. Ao mesmo tempo, nos incentivou a fazer uso da folha de coca para suportar a falta de ar e a pressao dentro do Cerro que está há 4.262m de altitude.
No início, tive um pouco de resistencia. Mas, ao perceber que se tratava de um costume local despretensioso, ou seja, que nada tinha a ver com o uso de "drogas" ou qualquer forma de alucionógeno, ademais de comecar a sofrer os efeitos da montanha, me desprendi de meus preconceitos e coloquei algumas folhas de coca no canto da boca, juntamente com uma pedrinha de cinzas vegetais, sal e banana, para facilitar a liberacao do sumo.
Rapidamente, percebi que a única coisa que provoca é passar a dor de cabeca e relaxar a corrente sanguínea para que nao necessite tanto de oxigenio. No mais, só uma dormencia no local onde está colocada, juntamente com a coloracao dos lábios e dos dentes.

Durante todo o percurso em que víamos homens e criancas trabalhando, Aleida ía nos informando sobre a história, sobre mais lendas, sobre os problemas de saúde, sobre a injustica das exploracao do trabalho daquelas pessoas.
Eu, particularmente, me indignei com o fato de ver criancas que passam dias e noites sem sair a luz, somente mascando coca e recebendo os presentes que trazem os visitantes das minas.
Por horas, ficamos eu e um grupo de argentinos dialogando com a Aleida sobre a necessidade controle estatal daquela situacao, sobre a necessidade de políticas públicas de combate ao trabalho infantil penoso nas minas. Quando Aleida nos respondeu que concordava com a gente, mas que estávamos em um país pobre, pleno de complexidades, quase sempre relacionadas a quantidade de etnias e a difícil possibilidade de diálogo entre os diferentes povos indígenas e entre estes e as elites que sempre dominaram o país, tive que concordar. Afinal, nao é fácil mudar o que tao complexamente está posto, como as barreiras étnicas, exacerbadas pelas elites dominantes como forma de impedir o poder indígena.
No entanto, há que se fazer uma ressalva. Devo dizer que concordo que seja difícil mudar a realidade de anos de exclusao e de exploracao indígena, principalmente porque, muito similiar ao que diz Fanon (Los Condenados de la Tierra), as tradicoes, as autoridades religiosas e tribais, bem como as diputas intetribais, sempre foram, em tempor de colonizacao e depois dela, de algum modo, usadas pelas elites para obterem vantagens e impor a permanencia de suas condicoes de poder. Mas, essa mudanca precisa acontecer. É preciso tirar dos ricos para dar aos pobres, sobretudo, porque tudo o que conquistaram foi saqueando e explorando a mao-de-obra e a ingenuidade dos indígenas.
Esse pensamento que me acompanhou durante todo o percurso na mina só foi interrompido por alguns minutos, pela minha fobia de latura, quando tive que passar na beira de um fosso e depois de subir uma escada, precisar me agarrar pelas paredes para transpor um precipício dentro da montanha oca de Potosí.
Ao final, na saída da mina pelo outro lado, depois de quase duas horas de caminhada interna, toda a indignacao de ver homens e criancas trabalhando naquele local de contaminacao se reanudou. E, mais ainda, quando vi um monte de criancas que ainda nao tinham "idade" para trabalhar na mina, do lado de fora, com as maos cheias do pó contaminante dos metais, vendendo pedras.
Retomei o assunto com Aleida. Queria que ela, tao crítica, me expusesse as mazelas de seu país e, também, pensasse sobre solucoes possíveis para aqueles problemas.
Na conversa, percebi que Aleida é uma pessoa sensível e preocupada com o seu povo. Mas, ao mesmo tempo, ve-se atada pelas condicoes históricas de afastamento inter-tribal e mesmo pelo uso de algumas tribos, feito por grupos da elite nao-indígena boliviana.
Voltamos para o onibus e mais pessoas puderam intereferir no nosso diálogo, que se ampliou. Neste momento, mais pessoas trouxeram a tona suas preocupacoes com a América Latina, bem como os motivos que os levaram até as minas de Potosí. Neste momento, conheci Dana, Florencia, Javier e Matias, além de compreender melhor as idéias de Nora e Guillermo.
Enquanto a conversa transcorria, ia percebendo a fisionomia, os gestos, as reacoes dos demais que íam no pequeno onibus. Quando toquei no assunto de que temos uma conjuntura que facilita o diálogo entre os países da América Latina e que tínhamos que esquecer um pouco o futebol para dialogar como irmaos de um processo de exploracao, percebi que algumas fisionomias mudaram.
Alguns riram quando falei da situacao que passei em Córdoba, durante esta viagem, motivada pelo fanatismo futebolístico dos donos do Hostel Córdoba Backpackers e que o futebol nao podia ser transformado numa mercadoria, plena de marketing para nos afastar. Se algo nos afastava, dizia, isso é que tem que ser afastado do nosso diálogo.
O mais imnportante é poder compreender nossa história e promover lutas conjuntas. Se na América Latina, nao logramos debater a igualdade e a justica social, precisamos empenhar esforcos para que, nao apenas o debate, mas as condicoes de igualdade e justica social se ponham. Nao pode ser "normal" matar por futebol e deixar morrer por falta de coragem de lutar por justica social e igualdade.
Quando disse isso, já percebia que todos abandonavam seus risos iniciais e assimilavam o sentido do que queria dizer. Perceberam que é preciso reponsabilizar-se por este mundo para mudá-lo.
Foi com estas idéias que retornamos para a sede da agencia, no pé do cerro rico para tirarmos as roupas que tínhamos posto para entrar nas minas e ficamos enquanto esperávamos a conducao de volta ao centro da cidade. A diferenca é que, agora, havia mais pessoas interagindo, debatendo América Latina, colonizacao, condicoes internas de cada país, aliadas as deixas pela colonizacao para fazer de nossos países o que temos hoje.
Trocamos e-mail, tiramos fotos juntos... havia um grupo que estava muito muito feliz de se encontrar, de saber que cada um promeve sua luta em seu país, para mudar o que foi e o que é Potosí em cada um de nós.
Quando chegamos ao centro da cidade, cada um tinha que se separar, mas tinha a beleza daquele encontro registrada. As despedidas eram calorosas e a vontade de seguir adiante estava mais avivada.
Javier, processor de psicologia, ator, mágico, funcionário do ministério da economia argentino, parecia querer continuar a conversa e me chamou para almocar com ele e seus amigos. Ele se dizia povoado daquele diálogo e da necessidade de conhecer melhor outras lutas em outras partes do mundo. Queria conhecer um pouco dos sem-terra e do debate sobre direitos humanos que se faz no Brasil.
Fomos diretamente para a praca central de Potosí e, durante 30min. esperamos os seus amigos, ambos chamados Sebatián.
Quando os Sebastián chegaram, já tinham comido e nao queriam nos acompanhar para o almoco.
Fomos apenas eu e Javier comer em um lugar bem próximo da praca.
Depois do almoco, voltamos a encontrar com os Sebastián e caminhamos pelo centro da cidade de Potosí. No caminho, pelo calcadao, uma nova coincidencia. Encontro Mauro, o psiquiatra que tinha me ajudado em Tilcara.
Conversamos por um tempo, nos despedimos e segui com os Sebastián e Javier nosso percurso pelo centro.
Perto de 18h30min. me despedi deles e voltei para a agencia. Deveria pegar minha mochila e ir para a rodoviária, de modo que pudesse iniciar a viagem de volta a Villazón e, se tudo desse certo, para Assuncao.
Quando cheguei na agencia, estava Evelyn. Por muito tempo conversamos sobre as agústias que tive ao sentir e ao presenciar o trabalho nas minas de Potosí.
Evelyn era irma de Helen e de Marcelo e igualmente crítica quanto as condicoes políticas de seu país. Ao mesmo tempo, quando falava da minha dor em ter que deixar a Bolívia naquele dia, se mostrava sensível e queria compreender os motivos de minha viagem a Potosí e estas partes da América Latina.
Foi o assunto sobre o qual nos debrucarmos até que chegasse a hora de ir para a rodoviária. Na saída, mais uma vez encontrei Aleida e Helen. Aleida, ainda inebriada com a conversa que havíamos tido na parte da manha, me pedia para que seguisse em contato com ela e que lhe indicasse os livros de que falava. Tudo isso, sem perder de vista os onibus que passavam e parar aquele que deveria me deixar no terminal de onibus.
Com o onibus diante de mim, numa rua estreita, transito parado, dei um forte abraco em Aleida e segui. Tinha uma noite dura de viagem pela frente. A estrada nao era asfaltada e nao sabia as condicoes do onibus em que iria viajar.
Quando cheguei na rodoviária, reencontro um monte de gente que integravam o mesmo grupo que eu na ida para as minas na parte da manha. Ficamos conversando, brincando... um deles, que parecia muito distante enquanto conversávamos de política, fez questao, na hora que viu, de me cumprimentar calorosamente e de me mostrar o livro que estava lendo. Era algo de exoterismo, ligado a princípios de vida e a combinacoes enérgeticas... nao sei bem se, com isso, ele queria dizer a importancia daqueles momentos para ele e combinar com o que estava lendo... ou simplesmente queria compartilhar algo comigo.
Em seguida, ele me mostrou seus amigos, que estavam jogando baralho (um jogo que se chama escova 15). Enquanto os meninos tentavam me ensinar este jogo, chegam Dana e Matias e retomam a nossa conversa manha e se dizem felizes com aquele dia.
Enquanto nos cumprimentávamos e agradecíamos o dia que haváimos construído juntos, chegaram os onibus que nos levariam, a mim, para Villazón, e todos os demais, para La Paz.
Ao ver o onibus que me levaria de volta a fronteira com a Argentina, sonhei com uma noite de sono. Pois, depois de um dia tao intenso, era aquilo de que mais precisava. Mas, esta paz seria algo que nao teria durante toda a noite.
O lugar em que fiquei, estava sem sentido, posto diante de uma porta.
Todos que precisavam passar, me empurravam, batiam a porta em mim... depois de tentar tentar e nao consegui, passei a noite pensando até chegar a Villazón.
Na manha de terca-feira, já na fronteira, o único que vinha a minha cabeca era encontrar um lugar para escrever.
Estava intenso, estava cheio das idéias do dia anterior. Nao queria perder nada.
Mas, tudo estava fechado. Era preciso passar para o lado argentino. E, nao apenas porque queria escrever. Mas, porque devia procurar uma forma de chegar a Assuncao.
Depois de enfrentar a aduana, a revisao de bagagem, mais facilitada para mochileiros, é verdade, cheguei ao outro lado.
Tentei fazer combinacoes... pensar alternativas... nada me levava a Assuncao.
De repente, me veio a cabeca a fala de Javier acerca de deixar Assuncao para uma próxima viagem, pegar um onibus para Buenos Aires e, daí, para Montevidéo, Uruguai.
Foi o que fiz. Comprei a passagem para Buenos Aires e fui procurar um lugar para escrever.
Depois de exatas 4 horas na frente do computador, a menina me disse que fecharia a lan house para o almoco e precisava que eu deixasse o computador.
Eram quase 14h e eu deveria ir para a Rodiviária de La Quiaca para pegar o onibus.
Deixei pela metade as experiencias que estou escrevendo agora e me fui.
Depois de mais quase 2h a espera do onibus, presencio uma grande confusao. As pessoas que vendiam as passagens, valendo-se de que, nas fronteiras, as leis e o direito parecem ser mais frágeis, e ainda de que, na Argentina, a gorjeta é uma prática frequente, nao apenas queriam a gorjeta, como queriam cobrar precos exorbitantes para colocar as malas no onibus.
Um casal que acabara de ser extorquido na fronteira, por agentes da polícia aduaneira argentina, nao tinha mais um peso para pagar e estavam em risco de viajarem sem os seus comprovantes de bagagem.
O menino, com uma calma extrema, explicava a situacao e pedia os comprovantes de bagagem, mas nao conseguia nada com aquilo.
Me senti um pouco atonito com tudo o que via... nao sabia se pagava por ele e liberava os comprovantes, nao sabia se entrava na confusao... até que resolvi chamar sua namorada, que, já estava acomodada dentro do onibus sem que se desse conta do que passava lá fora.
Em algum momento, ainda que se a anuencia dos funcionários da empresa de transporte, o rapaz obteve exito em sua demanda e subiu.
Preocupado com o que havia passado, fui em sua direcao e imprimi uma conversa. Nao demorou muito para que os tres comecassem a interagir.
Rapidamente, descobri que se chamavam Sergio e Susana e que estuidavam, respectivamente, Recursos Humanos e Direito, e trabalhavam em uma Fórum Penal em Buenos Aires, local em que se conheceram.
Foi o mote para comesarmos a conversar sobre direitos humanos, sobre profissoes, sobre vocacoes... queriam saber dos meus trabalhos, da minha vida, da minha viagem... me faziam milhares de perguntas.
Até que fomos parados na Gendarmería (a polícia de fronteira) argentina.
Todos tivemos que descer para que nossas malas fossem revistadas. Eu, mais uma vez, pela condicao de mochileiro e de estrangeiro que nao passa pela fiscalizacao aduaneira quanto a compra de produtos, fui liberado.
Susana e Sergio ficaram. Tiveram que abrir todas as malas, as mochilas... Tudo o que traziam foi revistado.
Bastou passar o transtorno, subimos no onibus e continuamos a nossa conversa sobre temas como as minas de Potosí, a adocao entre pessoas do mesmo sexo, o aborto, a defesa de pessoas de alta periculosidade, ética, direito, justica... Susana, uma estudante de direito como a maioria, mais conservadora, sempre se colocava contra estes temas. De minha parte, o que fazia era tentar ponderar algumas coisas, de modo que pudesse povoá-la de dúvidas.
Se consegui nao sei, mas acho que, pelo menos Sergio, que tinha os olhos brilhando, enquanto escutava minha fala, se acercou mais dos temas e de reflexoes mais críticas. Ele era só perguntas e eu, mais perguntas ainda. Nao queria dar respostas, queria que ele mesmo as encontrasse enchendo sua cabeca de mais dúvidas.
Foram várias horas de conversa até que pegasse no sono.