domingo, 9 de março de 2008

O que representou Taís na viagem...

Embora a viagem tenha acabado fisicamente no dia 25 de janeiro, não tenho conseguido para de refletir sobre sua importância em minha vida. Já pensei que, pela grande quantidade de experiências, pudesse me sentir demasiadamente pleno, completo, sem mais necessidades de busca, sem mais para conquistar enquanto ser humano, mas, de fato, o que me faz seguir esta viagem em terra é o processo de assimilação das novas, intensas, inéditas e profundas experiências vividas para o meu cotidiano.

Muitas vezes, retomo fotos, retomo conversas e, com isso, retomo todas as sensações que povoaram muitos momentos daqueles dias, me sinto de novo inebriado de latinoamericanidade, mas também de um crescimento humano imensurável.

É dentro deste diálogo comigo e com as pessoas, enquanto relato as experiências, que descobri a importância de Taís em toda esta viagem, apesar de só tê-la encontrado no meio do caminho. E, isso, porque não consigo olhar para a viagem por pedaços. O que fica em mim é toda a complexidade da caminhada. As reflexões que me vêm não chegam aos pedaços. Somente o todo é que faz sentido, enquanto experiência vivida, enquanto aprendizado. Portanto, Taís não é uma parte da viagem, ela me ajuda a compreender toda a viagem. E, mais interessante é que a sensação que tenho, ao pensar assim, é que cada coisa, enquanto caminhava, aconteceu a seu tempo. Existe uma complementaridade fundamental entre todos os instantes, cujo tempo e o espaço se fundem na experiência.

Pensar em Taís é o mesmo que pensar em Tilcara e em Juan. Esta viagem não faria sentido algum sem estas pessoas e sem aquele lugar. Como bem me disse Juan, há lugares pelos quais a gente passa e é como se não tivesse passado e há outros lugares que tomam uma intensidade tão grande que valem toda uma viagem. Agora, pensando em Taís, pensando em Juan, compreendo que estes lugares valem toda uma viagem por causa das pessoas. Sem elas, eles não valeriam absolutamente nada. Ao mesmo tempo, esta predisposição das pessoas em estar com as outras, sua forma de ser, sua doação, só fazem sentido quando se compreende o lugar ocupam no mundo.

Quando digo isso, quero afirmar que as pessoas não podem ser se não se conhece o lugar delas em dois sentidos: o seu lugar de fala, sua compreensão do mundo, suas vivências, suas inclinações; e, literalmente o lugar em que vivem, seu espaço.

Afinal, qual o sentido de alguém ser? Quem pode ser? Como se pode ser? O ato de ser é um ato que está em si ou no outro?

Evidente, estas são perguntas extremamente complexas e, talvez, isso daria um grande tratado de psicanálise. Como não é o objetivo fazer um tratado de psicanálise ou o de colocá-la a serviço de um conhecimento disciplinado, longe do mundo da vida, espero poder responder a estas indagações através de algumas reflexões e de mais questões, das quais as primeiras não se independizam e as quais não encerram as possibilidades de análise: há possibilidade de ser sem o espaço coletivo, se não vivêssemos com outras pessoas teríamos a possibilidade de ser? Se não houvesse quem nos reconhecesse, seríamos algo ou alguém? E, mais, é possível ser sem as interações que fazemos com o mundo? Que lugar ocupam as nossas experiências com o mundo e com os outros na formação do nosso ser?

Com estas últimas perguntas, já me aproximo de novo do que gostaria de falar quando buscava compreender a importância de Taís na viagem. Mas, ainda não é o momento de discorrer diretamente sobre o assunto. Antes disso, será necessária uma contextualização maior, bem como a análise das indagações acima ou mesmo de uma resposta complexa para minhas dúvidas primeiras, de uma resposta que reúna todas as perguntas em uma única reflexão.

Nesta direção, sei que é impossível separar o reconhecimento que o outro tem em relação a nós do que pensamos de nós mesmos. Sei que o que somos está muito povoado do que pensam de nós e das idéias que se constroem em torno de nossa forma de ser. Mas, ao mesmo tempo, suponho que este reconhecimento que se tem de nós e que temos de nós é um ato de interação, um ato que mescla as condições do lugar em que estamos com as interações humanas. Isto porque, reconhecer está no ato mais simples de enxergar o outro, de perceber o outro, até o ato mais profundo de conhecer o outro, de saber de suas potencialidades e limitações, de se encantar ou de negar encantamento com a forma de ser do outro. Reconhece

r, em contrapartida, é sentir a presença do outro, saber que não pode ocupar o seu lugar no espaço enquanto esta pessoa estiver ali. Ou seja, é, igualmente, um ato físico, um ato de percepção, aliado à compreensão de que não se pode circular de qualquer modo em certo espaço povoado de pessoas ou de uma pessoa. É um ato que está acoplado à percepção de que é preciso desviar de alguém que está a nossa frente quando queremos seguir adiante, de que não podemos atravessar o corpo de alguém se queremos pegar algo que se encontra próximo deste. E, quando falo corpo, evidentemente, não quero deixar de perceber que corpo é mais que um objeto, que ele representa uma pessoa, um ser, cuja existência se dá na interação complexa entre seu físico e as idéias que, através dele, é capaz de criar sobre outras pessoas, sobre o mundo e sobre si mesmo, capaz de orientá-lo a ação, ao comportamento.

Retomando, toda interação ocorre sobre um espaço e só podem ser compreendidas no seu conjunto, porque vivenciadas no seu conjunto, com as sensações que o espaço, que as limitações e/ou permissões que este vai provocando no ato mesmo de vivenciar.

Dou o exemplo de duas pessoas para quem que o ato de amar está proibido ou está escondido, está ainda oculto aos olhos de certas pessoas. A interação com o espaço para vivenciarem toda a relação, o aguçamento dos sentidos para poderem deixar fluir o prazer sem terem o desgosto do flagrante, ficam muito presentes. Quem viveu isso em algum momento da vida sabe de que falo. Não se pode descuidar dos acontecimentos que se dão no espaço, nem aqueles externos a quem quer vivenciar sua relação nem aqueles que ocorrem entre quem quer vivenciar sua relação. E, ao final, quando sentam ambos para dialogar sobre o momento, impressionante, que a vivência é observada em completo, nada se aparta, nada tem menos importância. Tudo é a experiência. A parte está no todo e todo está nas partes. Se uma das partes é retirada, não se tornará somente uma parte, será uma outra experiência. Espaço e tempo não se separam como não se separam os momentos, sensações, situações que compõem o todo.

Portanto, jamais poderia ser latino-americano, me deparar com a minha latino-americanidade, como gostaria no início da viagem se não conhecesse a América Latina. Para conhecer um povo, preciso conhecer o seu lugar e o modo como ele interage com este lugar.

Antes, queria apenas conhecer as pessoas e não percebia que, para isso, precisava conhecer o seu lugar. Temia encontrar lugares bonitos, receava encontrar lugares cujo sentido para muitas pessoas era exclusivamente turístico, e não os buscava. Até mesmo rechaçava.

Quando encontrei Taís, que estava em busca de lugares bonitos, quando coloquei os meus propósitos em diálogos com os seus propósitos, percebi, ainda que não conscientemente, que valia a pena encontrar-me também com lugares, mesmo quando os lugares ficavam mais distantes devido aos poucos recursos financeiros.

Taís me ensinou a buscar alternativas para interagir com os lugares, para chegar até eles. Se eu podia caminhar durante horas no meio da cidade para observar as pessoas, para conversar com as pessoas, para conhecer novos amigos, podia sair da cidade, podia pegar uma bicicleta e sair de um lugar para outro, podia caminhar pelas estradas em direção montanhas, cachoeiras, podia superar o meu medo de altura para atravessar pontes sobre despenhadeiros ou descer uma encosta agarrado pela mão... tudo para entender que o mundo das pessoas é também formado pelo mundo em que elas vivem.

No decorrer da viagem, devido à interação com Taís, quando percebi que os rumos que já se constituíam iam de novo se desfazendo e dando lugar a outros rumos, até pus em dúvida o que estava fazendo, até me deixei povoar de reflexões sobre os sentidos que surgiam em minha mente para as reformulações de roteiro, para os diálogos. Mas, passado esse período, vivido um tempo apenas reverberando a viagem sem estar no seu interior, ainda que ela esteja sempre em mim, me fez perceber que o rumo que a presença de Taís deu, que o sentido que tomou a viagem foi um sentido importante para minha vida. Não posso dizer se foi o melhor sentido porque, para isso, o conjunto teria que ter sido de outra forma, mas sei que foi um bom sentido, um importante sentido para me fazer ser-estar-sendo com sinto que sou-estou-sendo hoje.