quarta-feira, 8 de abril de 2009

DE VÍSCERAS À MOSTRA E ARROGÂNCIA ESTAMPADA - O CASO DO ABORTO E A EXCOMUNHÃO PROMOVIDA PELO BISPO DO RECIFE

Desde a primeira semana do mês de março, uma notícia vem repercutindo nos jornais e telejornais do Brasil. Fala-se, evidentemente, da excomunhão da equipe médica pernambucana e da família da menina de 9 (nove) anos de idade que foi submetida a um aborto, entre os dias 03 e 04 de março, em uma maternidade pública do Recife, para a retirada de dois fetos concebidos através de estupro praticado pelo padrasto.
Em entrevista, Dom José Cardoso Sobrinho, bispo de Olinda e Recife, autor da excomunhão, afirmou, em meio às suas palavras, que a “lei dos homens” não está acima da “lei de Deus”, portanto, não pode ser referência argumentativa para justificar a prática do aborto. Em outros termos, nada poderia justificar a interrupção de uma gravidez, ainda que suas condições de origem e manutenção, neste caso, o abuso sexual e o risco à vida da criança gestante, existissem.
Comandada por um dos seus integrantes mais conservadores (o Papa Ratzinger), a cúpula da Igreja Católica apoiou a decisão tomada por sua autoridade local, em Recife.
Embora, aparentemente, a maioria da população, que é católica, tenha se posicionado de forma contrária à postura da Igreja, é preciso ainda analisar o caso concreto, a fala do Bispo, a relação que a excomunhão estabelece com a necessidade de manutenção de poder da Igreja para trazer à discussão alguns elementos fundamentais que ajudam a repensar o vínculo entre a fé católica e o mundo.
Primeiro, em uma sociedade hierarquizada, desigual, injusta, baseada na cultura do “jeitinho” e do favorecimento pessoal que a retro-alimenta, os pobres só podem ter como sua esperança transformadora, como mola propulsora de suas vidas, como fonte de sua dignidade, a existência de Deus. É Deus que se transforma em medida de justiça, na vontade de superar a impotência instalada pela ordem quase intransponível de coisas. É Deus que promove a igualdade em valor de todas as pessoas, segundo dizem, através de sua infinita bondade, sabedoria e compaixão. Por isso, esperam alcançar a outra vida para encontrar-se com Deus e com o paraíso que um dia foi negado no mundo real.
Comumente, ouvem-se expressões tais como:
– Se não somos iguais neste mundo, somos iguais perante Deus. Diante Dele, somos irmãos.
– Espero em Deus esse sofrimento um dia acabar.
– Não podemos com essa situação agora (referindo-se a um momento de impotência), mas Deus pode. Um dia essa injustiça vai acabar. Vamos encontrar com Deus e seremos felizes.
É certo que muitas dessas frases foram plantadas pela própria Igreja para justificar sua existência e a intermediação que fazia entre Deus e as pessoas. Mas, hoje, ela povoa o imaginário popular, sobretudo, o imaginário do povo mais humilde, como expressão de sua esperança, como força motriz, e, esta força é a única coisa que possuem.
Segundo elemento, o termo comunhão significa abraço, ligação, que se faz, segundo a fé, através do mundo íntimo-espiritual entre cada um e cada uma com Deus. Compreendendo que a Igreja, embora se diga como o meio exclusivo para esse vínculo, se Deus existir, não é a única intermediária entre Ele e os seres humanos. Poderia até ser uma intermediária, mas nunca a única. Pois, se, como dizem, Deus está em todos os lugares, inclusive no coração das pessoas, esta ligação também se faz individual e diretamente, sem participação de terceira pessoa. Essa participação, muitas vezes, é o que pode causar “ruídos” na comunicação entre Deus e as pessoas, do mesmo modo como ocorre no universo comunicacional corriqueiro quando promovido através de intervenientes.
Terceiro elemento, se Deus existir, por um lado, Ele é tão grandioso, com efeito, tão complexo, que qualquer visão sobre sua existência seria sempre uma visão parcial de Deus. Sua apreensão completa, até porque é algo abstrato, invisível, ou seja, é algo ou alguém com quem não se pode conviver cotidianamente no mundo físico, que se materializa tão-somente na fé das pessoas, seria incognoscível, ou seja, nenhum conhecimento teológico seria bastante para elaborar uma tese perfeita sobre Deus. Por conseguinte, qualquer interpretação de sua vontade, de sua forma, de suas determinações, se é que estas existem, será sempre parcial, quem sabe, uma imposição unilateral de um ponto de vista também particular de Deus.
Sob este prisma, quando o Bispo, para justificar sua (des)medida, invoca a superioridade da “lei de Deus” sobre a “lei dos homens”, além de descartar, evidentemente, a possibilidade de Deus ter sido criado, em suas diversas nuances, no oriente e no ocidente, pela incapacidade humana de explicar certas circunstâncias da vida, de pronto vem à mente algumas perguntas inevitáveis: a) se toda visão de Deus é uma visão parcial, quem diz ou quem tem o poder de dizer a “lei de Deus”? b) quem atribuiu a Igreja o poder de dizer o que Deus pensa e quais as obrigações “legais” que determina para as pessoas? c) como são transmitidas as “leis de Deus” e sob que fundamento a Igreja justifica a sua condição de falar em nome de Deus para punir, para castigar, para perdoar, para ligar os seres humanos com a divindade? d) em nome de que a Igreja usa o seu modo de pensar sobre Deus como único?
Se Deus é percebido, tal como foi posto paradoxalmente pela própria Igreja Católica, como a representação da suprema bondade, da suprema compaixão, ao mesmo tempo, como Ser que está em todos os lugares e em todas as pessoas e que não pode ser conhecido com toda a certeza, no mínimo, a excomunhão promovida pelo Bispo não passa de um ato de prepotência e de pretensão. Afinal, acreditando na sua versão de Deus como a única vigorante é que exerce todo o seu dogmatismo e se arvora, não se sabe por que motivo, da condição de representante da vontade de Deus, inclusive, para dizer que alguém não é digno desse mesmo Deus.
Por outro lado, o “desligamento” de Deus que paira, mais ainda, sobre família da menina, que é pobre e que tem Deus como único bem precioso, porque a medida de sua dignidade e de sua própria existência, é, de fato, tirar tudo o que essa família tem, que é a sua dignidade em Deus, que é a sua esperança em Deus, que é a sua igualdade em Deus, e, portanto, a sua fonte da vida. Para um pobre tirar Deus, é tirar tudo o que ainda lhe resta para viver. Se está “desligado” de Deus, se está proibido de “ter” Deus, está proibido de ser gente, de usar a força que ainda lhe resta para levantar a cabeça e continuar sua trajetória pelo mundo.
Destarte, o ato da excomunhão dessa família, é também um sadismo por parte do Bispo e de sua Igreja. Não somente porque ele afirma ser a Igreja benevolente em não excomungar a menina por ser “menor de idade”, mas porque ele sabe, a Igreja sabe e todos sabem que, em casos como esses, não importa se a gravidez era de risco, se poderia ocorrer a morte da criança gestante ou do bebê ou dos bebês que ela carregava; não importa se os bebês pudessem nascer mortos e que entre morrerem três, era melhor garantir a sobrevivência da menina. O que, de fato, a Igreja objetivaria era a continuidade de seu poderio, mesmo morrendo a criança gestante e seus dois fetos.
A força eclesiástica sempre foi sustentada através do modelo de família que a ela tem como fundamental, baseado na procriação, na pureza, na supremacia masculina e na submissão da mulher por sua condição biológica de ter filhos. O único elo que ainda mantém o núcleo familiar de hoje ligado àquele pensado pela Igreja no Século XVII é a negação do direito ao aborto. É este modelo de família patriarcal que sustenta a ação da Igreja através de sua existência e que se sustenta através da Igreja. Juntos, sociedade patriarcal e poder eclesiástico, criam e abusam de uma hierarquização entre os seres sociais para se manterem no exercício do poder político (leia-se poder político como capacidade de ditar comportamento).
É importante perceber que esse sadismo da Igreja, que, “usando o nome de Deus em vão”, age em seu próprio favor, não é novo. Valendo-se de sua suposta condição de mandatária exclusiva da divindade, justificou a escravidão, as fogueiras da inquisição, a eliminação de árabes nas Cruzadas e dos indígenas na América Latina, e vêm justificando a negação de direitos aos homossexuais e às mulheres. Por sua intransigência em relação à camisinha e ao uso de anticoncepcionais, vem contribuindo para o aumento da AIDS na África e para o superpovoamento de algumas áreas pobres do planeta, sendo que este já não suporta mais a quantidade de pessoas, o consumo exacerbado e a destruição da natureza. Tudo isso, em favor da manutenção de seu próprio poder.
Foram necessários séculos para que a Igreja reconhecesse a sua insanidade histórica em relação a alguns grupos humanos. Diante disso, quantos anos mais serão necessários para que a Igreja Católica reconheça que suas atitudes são apenas a representação de sua própria vontade de permanecer no mundo como religião única? Quanto tempo mais será preciso para que a Igreja entenda que suas atitudes ajudam a criar a intolerância, que, se Deus existe, negam o supremo amor de Deus, cuja vontade só pode exigir o respeito entre as pessoas, independentemente de sua condição peculiar, e não pode criar um modo de viver que impeça o mundo de ultrapassar todas as formas de opressão? Quanto tempo mais a Igreja vai levar para reconhecer o seu papel em propagar a AIDS e a destruição do planeta? Quanto tempo mais essa arrogância de não reconhecer os seus erros e a sua fragilidade, própria de toda criação humana, vai manter a Igreja Católica com a barriga aberta e suas vísceras expostas, agonizando com sua perda de credibilidade, enquanto, paradoxalmente, mostra-se incólume e impávida, dando as cartas em nossa sociedade contra a própria sociedade?

Texto de José Humberto de Góes Junior (Advogado de Movimentos Sociais, Mestre em Direitos Humanos, Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Aracaju no biênio 2008-2010, Professor do Curso de Direito da Faculdade de Sergipe – FaSe, Assessor Jurídico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe).