terça-feira, 19 de janeiro de 2010

PNDH 3: Por que mudar? - Revista Carta Maior

Matéria da Editoria:
Política

19/01/2010


PNDH 3: Por que mudar?

O que está posto como desafio não é mudar o PNDH. O que está posto como desafio é tomar o PNDH como instrumento para mudar a sociedade, para aguçar ainda mais os compromissos democráticos com a participação, com a justiça, com a liberdade – com a realização dos direitos humanos. Por isso, o que está previsto no PNDH 3 precisa, com urgência, se tornar efetividade, a fim de que os direitos humanos sejam conteúdo substantivo na vida cotidiana de cada pessoa. O artigo é de Paulo César Carbonari.

Paulo César Carbonari

Data: 15/01/2010
Nas últimas semanas direitos humanos tornou-se uma das principais pautas da imprensa. Particularmente, o novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), lançado pelo governo federal no dia 21 de dezembro de 2009, tem sido objeto de atenção. Por incrível, “nunca antes na história deste país” um programa governamental de direitos humanos ganhou tanta atenção, provocou tanto debate. Isto é ótimo, afinal direitos humanos passam a ganhar a atenção que merecem.

As reações ao PNDH 3 começaram nos setores militares. A elas se seguiram as dos ruralistas, dos donos da imprensa, de grupos católicos. O que há de comum a todas estas reações é que vêm orientadas por inspiração conservadora e reativa. Não são estranhas. Estas inspirações historicamente tem sido refratárias aos avanços exigidos pelos direitos humanos. Estão longe de qualquer tipo de unanimidade. Até porque, vários setores democráticos têm dito que o PNDH 3 representa um avanço ao ter uma compreensão ampla e contemporânea de direitos humanos e por trazer para o campo programático das políticas públicas um tema que ainda está mais no campo normativo e jurídico.

Os dissensos servem para que a opinião pública conheça as várias posições sobre direitos humanos que estão na sociedade. Dissensos são ótimos porque abrem o debate, cobram posicionamentos. Não fossem os dissensos não haveria democracia.

Um tema em particular merece atenção: a polêmica sobre a criação da Comissão da Verdade. Não é novidade que setores militares e seus apoiadores entre os donos do dinheiro e do poder sejam contra revelar à sociedade brasileira o que ocorreu nos porões da ditadura. Nunca concordaram em colaborar para que a memória pudesse ser construída como bem público e que para tal pudesse contar com informações e com posicionamentos alternativos. Em nome de manter a memória dos próceres do autoritarismo, sempre se esmeraram para preservar a memória dos que promoveram o arbítrio e as violações de direitos e, para esconder – e até apagar – a memória dos que lhes resistiram e que lançaram as sementes da democracia. Sempre fugiram da verdade, ou melhor, sempre quiseram que somente sua própria verdade prevalecesse; que nenhuma verdade alternativa à que se agarram pudesse ser construída pela sociedade. Sua postura não é diferente daquela dos donos do poder e do dinheiro de outras épocas também autoritárias e opressoras de nossa história e que foram responsáveis pela eliminação dos povos indígenas, pela escravidão e por outras formas de autoritarismo de Estado.

Por isso, ao propor a criação de uma Comissão da Verdade, o PNDH compromete o Estado brasileiro com o encaminhamento de condições para que a sociedade possa abrir espaço para que outras vozes – aquelas que foram caladas historicamente – digam a sua verdade. Como bem público, a memória e a verdade não são propriedade de uns ou de outros, mas também não estão descoladas dos contextos e dos agentes que as constroem. Por isso, que seja bem-vinda a Comissão da Verdade.

Em linhas gerais, o debate sobre o PNDH revela ao menos duas vertentes fortes na compreensão de direitos humanos: de um lado, os que aceitam os direitos humanos, quando os aceitam, mas apenas para si próprios ou para proteger seus privilegiados interesses privados e privatistas; de outro, os que compreendem direitos humanos como conteúdo substantivo da luta cotidiana para que cada pessoa possa ser o que quer ser e não como uns ou outros gostariam que fosse.

No fundo do debate, os brasileiros e as brasileiras comuns, as pessoas simples, que ainda não se reconhecem nos direitos humanos, até porque historicamente foram desinformadas a respeito ou informadas para que não os tomassem como bandeiras de resistência e de luta e nunca pretendessem aparecer nem mesmo dizer o que pensam. No fundo, as mesmas pessoas simples, no cotidiano de sua resistência à desigualdade, à opressão, à discriminação, à injustiça, à violência, também veem nos direitos humanos uma agenda que as inclui e as reconhece como sujeitos de direitos, sem mais.

Ora, se o debate revela compreensões tão distintas de direitos humanos, não há como passar por ele sem posicionamento, sem que sejam feitas escolhas. Cada brasileiro e cada brasileira está chamado a responder ao debate. Os brasileiros e as brasileiras que estão em posição de poder têm mais responsabilidade ainda. Ou seja, o momento exige que o governo, de modo particular o presidente Lula, tenha posição firme e clara. Não basta amainar os mais emocionados. É necessário que o governo seja coerente com os compromissos a que tem que responder. Aliás, ao publicar o PNDH 3 o governo fez escolhas, assumiu posição. O que justificaria que viesse a mudá-las? Por que abriria mão de se alinhar aos setores mais comprometidos com uma visão contemporânea e pública dos direitos humanos para atender a interesses privados?

Que bom que o Presidente não atendeu aos apelos por mudanças pautadas por interesses privados. Que bom que a resposta a todo o “alvoroço conservador” tenha sido instituir o grupo de trabalho responsável pela elaboração da legislação que o governo enviará ao Congresso a fim de instituir a Comissão da Verdade [conforme Decreto assinado no dia 13 de janeiro]. Que se possa estabelecer um debate para sobre o que será a Comissão da Verdade é já, por si, uma vitória – mesmo que parcial – da luta por direitos humanos. Claro que ainda há muito caminho a ser percorrido, o projeto de lei precisa ser elaborado, o Congresso o analisará e o votará.

Enfim, fortalece-se formalmente, com este ato, a agenda concreta de luta pelo direito humano à memória e à verdade. Lamentavelmente, num primeiro momento com pouca participação da sociedade civil, já que o Decreto que constitui o grupo de trabalho prevê a participação de apenas um membro que não seja de órgão governamental – e o que é da sociedade civil é indicado por um órgão governamental, a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Isto, todavia, não vai inibir e nem inviabilizar a participação da sociedade civil neste processo. Antes, é um motivo a mais para que seja vigilante e que exerça seu papel legítimo de pressão, de proposição e de cobrança. Tenho certeza que as organizações de direitos humanos estarão alerta e promoverão ampla campanha de mobilização da sociedade para que a Comissão da Verdade não seja só um acordo para “selar a paz” no governo e sim para que ela efetivamente seja concretizada.

Enfim, o que está posto como desafio não é mudar o PNDH. O que está posto como desafio é tomar o PNDH como instrumento para mudar a sociedade, para aguçar ainda mais os compromissos democráticos com a participação, com a justiça, com a liberdade – com a realização dos direitos humanos. Por isso, o que está previsto no PNDH 3 precisa, com urgência, se tornar efetividade, a fim de que os direitos humanos sejam conteúdo substantivo na vida cotidiana de cada pessoa. Este é o sentido do PNDH; esta é a principal mudança que esperamos ele ajude a promover.

(*) Mestre e professor de filosofia no Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS) e conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

domingo, 17 de janeiro de 2010

O FETICHE DA TV: PARADOXOS DAS DISCUSSÕES SOBRE CONTEÚDO E INTERATIVIDADE.

José Humberto de Góes Junior

Esta semana, no bojo dos debates acerca Programa Nacional de Direitos Humanos3 – PNDH3, lançado pelo Governo Federal ainda em dezembro de 2009, observava o teor das discussões movidas em torno da comunicação social, mais especificamente, do direito à comunicação, e percebia que, embora o PNDH3 ataque corajosamente pela primeira vez os fatores de promoção da desigualdade e da negação da diferença na sociedade brasileira, o foco central da contenda ideológica parece ser a preocupação do Programa com o conteúdo transmitido por meios de comunicação de massa como a televisão.
É certo que, por não termos cuidado devidamente ao longo dos anos de existência deste elemento da comunicação que possui maior capacidade de produzir subjetividade, é legítimo que as pessoas e o governo assumam os conteúdos transmitidos pela TV como um importante componente quando se trata de pensar mecanismos de construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos.
Afinal, a TV está em quase todos os lares brasileiros e, ao fazer uso de técnicas de linguagem, que aliam abordagens lúdicas com de imagens, sons e textos para criar contextos, trabalha com a fantasia, ativa os sentidos, provoca a sensação de viver em tempo real experiências alheias como pertencentes ao/à espectador/a. A TV adota, reelabora e apresenta um mundo que, em cada um/a de nós, pode invocar a esfera dos desejos, das rejeições, dos símbolos, das representações sociais, dos valores, e, por conseguinte, guarda a condição de (re)produtora de uma moral, de um modo de viver. E, isso, por si só, já torna fundamental observar com mais acuidade o conteúdo televisivo.
Sendo a televisão um meio de comunicação concentrado, não podemos deixar de perceber que é igualmente privatizado e privativo a certos grupos e interesses. Sua moral, suas compreensões de mundo, as ideias que propaga como noções universais, revelam-se como significantes particulares, localizados, espacialmente, em determinados centros de elaboração e, ideologicamente, no seio de grupos minoritários, que dependem da ventilação de conceitos específicos através da grade de programação para a garantia das estruturas de poder em que estão assentados. O que torna ainda mais relevante discutir o conteúdo transmitido pela televisão e sua capacidade de formar uma sociedade voltada a uma democracia efetiva, com promoção e defesa de direitos humanos.
Em paralelo a esse debate concernente à programação e aos discursos que direta ou indiretamente aí se implementam, ocorre também em certos canais de TV discussões sobre o modelo de TV digital que ora se implanta no Brasil. Especialistas, a figura do momento nos meios de comunicação, concentram-se no que chamam de interatividade para descrever a relação que as pessoas têm com o aparelho de TV. À possibilidade de apenas escolhermos entre programas propostos em um menu determinado, chamam pseudo-interatividade; à participação em enquetes, pesquisas, votações em reality shows, seja pelo telefone ou pela internet, chamam interatividade simples; e, por último, a possibilidade de usar o aparelho de TV para, por exemplo, marcar consultas no Sistema Único de Saúde, para acessar o correio eletrônico, para pedir uma pizza, para conversar com os apresentadores e apresentadoras de TV, entre outras coisas, intitulam de interatividade plena. É esta que se defende como instrumento de exercício da democracia através da televisão digital.
Sem querer desqualificar os debates sobre o conteúdo da programação dos canais de TV e sua necessária aproximação do caráter educativo e ainda sobre o uso de novas tecnologias para a televisão, não podemos esquecer que a tentativa de evitar a concentração das ideias e das decisões sobre o formato da comunicação social brasileira, que movimenta as discussões, será vazia se uma preocupação anterior for abandonada.
Em quaisquer dos casos, para sabermos que rumos tomar, é preciso entender qual o lugar que ocupa e qual o lugar que queremos dar à televisão na sociedade brasileira; que papel tem a TV e qual é aquele que queremos tenha; por que ocupa o centro da casa das pessoas, dos lares, das famílias; por que a TV é o objeto em torno do qual as famílias se reúnem, as pessoas sufocam a solidão; por que se tornou o parâmetro de avaliação e de existência dos acontecimentos; quais são os discursos que sustentam esta centralidade da TV e se a criação de mais elementos para que as pessoas se postem diante do aparelho de televisão não contribui ainda mais para o fortalecimento do fetiche da TV.
Dialogar e pôr em destaque estes temas pode impedir que, mais uma vez, fiquemos reféns do botão do controle remoto, que criemos ainda mais mecanismos para colocarmos nossas vidas à disposição do aparelho de TV, por conseguinte, à disposição de discursos que nos enclausuram em nossas casas diante da televisão com o pretexto de nos proteger da violência, que professam o individualismo e o isolamento dos/as integrantes da família, que promovem os valores da sociedade de consumo, que nos tiram do espaço de reivindicação da rua e reduz a democracia à escolha do canal de TV.