quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O erro da Reintegração da UnB

Por Humberto Góes

Neste momento, percorre os corredores da 22ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal a Ação de Reintegração de Posse nº 0049035-89.2013.4.01.3400 movida pela Universidade de Brasília contra o Centro de Assistência Estudantil, antiga Associação dos Moradores da Casa do Estudante da UnB (AMCEU).
Se é grave que esse tipo de Ação seja promovida por uma Instituição de Ensino contra um dos seus segmentos integrantes, que, tal como todos os outros, têm direito ao espaço acadêmico, é igualmente grave que o Judiciário, expressão de uma legislação, de uma interpretação e/ou de uma condescendência proprietarista, admita receba e processe uma Ação como essa. Igualmente, que negue de pronto o caráter público da instituição e do seu espaço acadêmico com a emissão de medida de urgência contra estudantes que querem, segundo a legislação em vigor, organizar seu Centro Acadêmico como meio de defesa e proteção a direitos; e, após pedido, mais uma vez, ilegal da gestão, promova nova decisão de urgência, agora contra o direito de manifestação dos estudantes que, reiteradamente com seu direito violado, ocupam a Reitoria para obter do gestor postura condizente com o interesse público e com os desígnios de uma Universidade.
Sobre isso, é importante observar, por exemplo, que se o reitor cumprisse aquilo que determina o Direito, as fundações de apoio já não estariam invadindo o espaço público com seus interesses privados. Embora isso precise ser lembrado a todo momento, porque caracteriza o modo como são tratados os interesses impróprios distribuídos em meio à comunidade acadêmica, são as decisões judiciais e a irresponsabilidade do Judiciário que devem ser abordadas mais diretamente. Afinal, o que se espera é que, no desrespeito ao interesse público, seja a ação judicial um meio de compelir o gestor a restabelecê-lo. Ao contrário disso, no caso da reintegração de posse promovida pela gestão da UnB tentando se confundir com a própria Fundação Universidade de Brasília, o que se tem da parte do Poder Judiciário são três decisões que, por um lado, se omitem em cumprir regras e princípios de Direito Processual Civil e negam a finalidade do processo em realizar direitos fundamentais, por outro, acatam e chancelam a atuação desrespeitosa promovida pelo gestor da UnB contra os princípios da Universidade enquanto instituição de ensino que precisa estar movida pela liberdade, pela organização e pela participação de toda a sua comunidade na tomada de decisões.
A primeira delas, que determina a imediata retirada de estudantes integrantes de Programas de Assistência Estudantil da UnB de sala que ocupam para o desempenho de atividades próprias da comunidade universitária, mostra-se equivocada por deixar de considerar que a constituição de Centros Acadêmicos, além de estar legitimada por lei, regulamentada pelas normas e compromissos assumidos pela Universidade, também faz parte da dinâmica interna de organização de uma Instituição de Ensino Superior. Ou seja, sonega à comunidade acadêmica a disposição sobre o espaço da Universidade para atividades de organização e participação, que integram o processo de formação superior, e admite que a gestão se esquive de cumprir uma atribuição exclusiva sua, a saber, a competente distribuição do espaço acadêmico entre seus servidores e servidoras, técnico-administrativos e professores, bem como estudantes.
A segunda decisão judicial é uma violação em si. Mesmo com a demonstração cabal de que a ocupação da sala pelo CASSIS reafirma o interesse público, integra a função social da Universidade, a magistrada prefere não reconsiderar sua decisão anterior. Prefere dar seguimento ao processo de negação do caráter público da Universidade. Prefere fazer-se magistrada ao lado de valores não-condizentes com os princípios, valores e interesses que, a partir destes, se constituem para uma Instituição de Ensino Superior.
Como a visão proprietarista contamina o Direito... mesmo quando se fala em espaço público, em interesse público, em deveres públicos, ela parece emergir como valor mais alto e como valor em si, sobrepondo-se a condições que, historicamente, vão constituindo o que se chama de Universidade. Com ela, a magistrada parece ungir a UnB com a “pureza” da propriedade e de um direito que não serve a uma instituição que se faz pública com a presença e o compartilhamento do espaço entre estudantes, servidores e servidoras, técnico-administrativos e docentes. Resgatam-se valores que só a ditadura militar conseguiu promover na UnB com a gestão policial do espaço acadêmico, com o uso de expedientes de exceção para fazer uma Universidade que não se plenifica enquanto lugar de liberdade política, de criação, de complexidades para além do que a adequação espacial ao proprietarismo é capaz de permitir.
Sobre a terceira decisão, se as anteriores são esdrúxulas, esta última, processual e materialmente é ainda mais difícil de admitir. A força policial que deveria recair sobre o pedido específico de reintegração de posse da sala BT 260, agora se estende para a Reitoria e para qualquer espaço que os estudantes e as estudantes ocupem na UnB, sob pena de multa de R$ 5 mil reais por dia. Interessante é saber que a Ação de Reintegração de Posse, inicialmente, estava motivada por uma ocupação de sala para que se tornasse sede de um Centro Acadêmico e tinha como pedido específico a retirada imediata de estudantes desse espaço. No segundo momento, após o despejo forçado e desrespeitoso do CASSIS, com a ocupação da Reitoria, a motivação era agora, protestar contra a atitude infundada da atual gestão em realizar efetivamente a reintegração de posse. Apesar disso, o magistrado que cobre as férias da julgadora anterior expediu uma nova decisão, que, para além do pedido específico inicial, transformando-a mesmo numa nova demanda, amplia ilegalmente o alcance da Ação de Reintegração de Posse para que se faça a retomada do prédio da Reitoria e de qualquer espaço da UnB. Pior de tudo, sem se ter exatamente a quem deve se dirigir a demanda.
Levando isso às últimas consequências, é possível entender que à generalidade, os estudantes e as estudantes da UnB estão proibidos de se integrar ao fazer da Universidade, de contribuir para que ela realize o seu objetivo público e, ao sabor da gestão que hoje se encontra na Reitoria, podem sofrer a qualquer momento despejos dos espaços que conquistaram para os seus Centros Acadêmicos. Seria a privatização quase total do espaço acadêmico. Ao menos, seria a vulnerabilidade deste à vontade particular do gestor. É isso o que afirma o Judiciário nas entrelinhas de uma decisão completamente alheia ao funcionamento e à dinâmica que se imprime a um espaço público como a Universidade. É pior em relação à Universidade de Brasília, criada para pensar o Brasil, seu povo e seus problemas como centro de suas atividades de pesquisa, de ensino e de extensão, o que, de fato, se reflete no modo de organização e de produção cognitiva dos integrantes da comunidade acadêmica.
Sobre a Ação de Reintegração de Posse e a ocupação de salas para Centros Acadêmicos, pode-se dizer que esta última, ao contrário da primeira, é parte do cotidiano do ambiente universitário. Dá-se enquanto este se reafirma como espaço de construção de pensamento e de liberdade. O Judiciário, no entanto, prefere relevar a falta de argumentos, a falta de negociação, a falta de diálogo e, mais ainda, a ilegalidade das alegações utilizadas pela gestão da UnB, para, ao invés de determinar que se cumpram os deveres inerentes a uma instituição pública de ensino superior, impulsionar uma reintegração de posse que, pela via transversa, contribui para a desnaturação do caráter público do espaço físico da Universidade.
Diz-se que esta é uma via transversa porque coloca como excepcional uma ação corriqueira dentro da dinâmica acadêmica para negar direitos, para impedir que o espaço universitário seja compartilhado com liberdade por todas as pessoas que o integram pela formação superior.
Tecnicamente, esta via transversa se realiza pelo uso e aceitação do argumento de violação da “propriedade”, ainda que se queira uma medida de proteção da posse, pois o que importa para a gestão e para o Judiciário é a “ocupação em si”, abstratamente falando, sem discutir os objetivos e as funções públicas que esses espaços possuem e o que devem abrigar, de acordo com a sua atividade. No caso do Judiciário, como lhe é de praxe, o que se prefere no presente caso para que não se lhe atrapalhe uma decisão rápida, condescendente com a violência de estado, é se omitir quanto aos equívocos técnicos do pedido do gestor da UnB. Esta atitude promove sem muitas delongas a Reintegração de Posse, mesmo que esta nem indique contra quem se pede a medida de urgência.
É verdade, só o fato de o reitor alegar a propriedade e requerer uma medida possessória, por si só, já seria suficiente para que o Judiciário negasse o pedido. Porém, aqui, o que importa é a propriedade ou a posse ou sei lá o quê! – tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 não fala em momento algum em propriedade pública, principalmente, quando estabelece os princípios da educação brasileira.
Para compreender os fatos complexamente, é preciso saber que a ocupação do espaço é motivada pela falta de local para sediar a entidade responsável pela representação dos estudantes que dependem dos Programas de Assistência Estudantil no âmbito da UnB.
A Associação dos Moradores da Casa do Estudante – AMCEU –, entidade reconhecida pela Administração da UnB, com representação nos espaços institucionais, possuía sede localizada na Casa do Estudante Universitário – CEU – até o ano de 2011, quando o espaço necessitou ser desocupado para entrar em um longo período de reformas. Desde então, a entidade, que atualmente passa por um processo de reestruturação a fim de ampliar sua área de atuação acadêmica, inclusive mudando sua nomenclatura para “Centro de Assistência Estudantil – CASSIS”, tem sido prejudicada pela falta de um local próprio. A gestão da UnB sempre acenava com promessas de solução para o problema, mas não cumpria os seus compromissos. Talvez, fosse interessante eliminar a demanda por Assistência Estudantil juntamente com os demandantes dela. Afinal, aniquila-se uma demanda quando se faz desaparecer junto com ela quem a promove. Juntos se vão como se nunca tivessem existido para fazer reinar a “paz social”.
Foi com o intuito de reestabelecer o espaço de sua organização, bem assim, garantir o seu direito à educação nos termos previstos na Constituição Federal de 1988, no PNAES, nas Leis 7.395/1985 e 12.852/2013, nas normas internas da UnB, mas sobretudo para reivindicar direitos que vêm sendo sistematicamente violados pela gestão atual da Universidade de Brasília, que os estudantes da Assistência Estudantil ocuparam a sala BT-260. Ou seja, foi por interesse público e para reafirmar o caráter público da universidade. Foi para realizar os princípios ínsitos aos bens públicos, principalmente aqueles que estão à disposição das Universidades de modo que estas realizem o seu caráter de público lugar de produção de conhecimento, outrossim, de realização das liberdades, incluindo-se as liberdades políticas e de organização para a defesa de ideias e da democracia, sendo incabível pensar-se em posse de bem público ou afronta à propriedade de bem público.
Até porque, se não há confusão com o uso privado próprio da posse e da propriedade, não se pode igualmente lançar mão de expedientes ínsitos ao direito privado para defesa dos bens públicos, muito menos dos espaços acadêmicos de uma universidade, que cumprem sua razão de ser ao serem ocupados, utilizados e vivenciados pela comunidade acadêmica. 
É por isso que, quando se discute a legitimidade da “posse” de um imóvel público, é preciso perguntar ao que ele serve, quais são os princípios que regem as atividades que nele se realizam, quais os seus propósitos e quais os propósitos de quem o ocupa.
Com a Ação de Reintegração de Posse, a gestão da UnB, além de, efetivamente, negar os princípios que regem a universidade, o modo de construção do conhecimento e a dinâmica democrática interna de uma instituição de ensino superior, dá demonstração de que quer desnaturar o espaço acadêmico em uma lógica plena de interesses que não necessariamente são públicos. Pior é que, de igual modo, o Judiciário admite os seus argumentos para assimilar a negação do interesse da coletividade e os princípios regentes da Universidade enquanto instituição que serve à sociedade; uma instituição que tem caráter público.
Por meio do espaço, o que o CASSIS pretende é dar visibilidades aos problemas da Política de Assistência Estudantil, apontar as principais necessidades de estudantes que dela dependem para seguirem seus estudos. Enquanto isso, a atual gestão da UnB que, com a Ação de Reintegração de Posse, falta com respeito a direitos de estudantes e de demais integrantes da comunidade acadêmica ao dar demonstrações de que não tolera ter que realizar uma Política de Assistência Estudantil; de que não tolera ter que desempenhar recursos, mesmo que estes tenham origem direta do orçamento da União, para que seja assegurado o direito à educação a estudantes com situação financeira menos favorecida.
Seria, talvez, mais importante para a gestão da UnB direcionar estes recursos para atividades mais próximas de uma universidade voltada ao favorecimento de certos interesses econômicos privados. Um dos indícios de que isso pode ser verdade é que, neste momento, também está acontecendo uma recente ocupação de sala por estudantes de Medicina que querem instalar a nova sede de seu Centro Acadêmico. Em nenhum momento, a Universidade falou em reintegração de posse.
Também estão presentes no espaço público entidades que promovem atividades eminentemente privadas com fins de lucro e estas, além de não ressarcirem a Instituição pelo uso, tratam o espaço ocupado como se fosse exclusivo (alugam a terceiros, promovem eventos pagos, etc.). Nem por isso a gestão da Universidade, que viola normas de direito público e decisões reiteradas do Tribunal de Contas, especialmente o Acórdão TCU 2.731, falou em Reintegrar a Posse ou em retomada desses espaços para que eles cumprissem um interesse eminentemente público.
Embora, frise-se, seja legítima a ocupação de estudantes de Medicina, por que o trato é diferenciado com estudantes que dependem da Assistência Estudantil e querem reorganizar a sua associação com vistas a terem seus direitos assegurados e uma Universidade cumprindo a sua função pública de garantir o direito de acesso e permanência a estudantes de baixa renda? Por que a gestão da UnB desrespeita um acordo de distribuição de sala no Instituto Central de Ciências (“Minhocão”) previsto na Circular n.º 7, de 07 de abril de 2011, para o CASSIS? Será que estes estudantes estão sendo vítimas de preconceito e, sendo grande parte deles de negros, de racismo?
É possível que sim, principalmente porque quase todos, senão todos dos mais de 50 (cinquenta) Centros Acadêmicos existentes na universidade obtiveram suas salas para o desempenho de suas atividades por ocupação. Nunca, com exceção dos tempos da ditadura militar, houve pedido de reintegração de posse para evitar que estas organizações estudantis ocupassem o espaço acadêmico. Porque este deve estar livre!
Em uma Universidade, essa liberdade se exerce ou precisa se exercer em toda a sua plenitude. A produção de ideias depende de organização, de irreverência, de contato com a realidade, por conseguinte, com a política, interna e externa ao campus. Se a democracia depende de liberdade de associação, de manifestação, de pensamento e de expressão do pensamento, na universidade, esses princípios que também estão positivados na Constituição Federal vigente no País, não são menos importantes.
Uma formação democrática e cidadã depende da capacidade e da possibilidade de organização de estudantes, professores, professoras, servidores e servidoras técnico-administrativos. Depende dos processos de reivindicação, da participação nas instâncias de deliberação e, isso, está intimamente relacionado com as condições de reunião e de diálogo sobre os rumos da Universidade. Está intimamente ligado à ocupação dos espaços acadêmicos com ideias que se expressam por meio de organizações estudantis, que, por sua vez, se enraízam no espaço físico da Universidade, podendo ter dentro desta, o seu próprio espaço de referência. Depende, por isso, da presença de Centros Acadêmicos fortes e atuantes ocupando o espaço universitário.
Portanto, o que a gestão atual da UnB e o Judiciário, este alheio à dinâmica interna de uma Universidade, fazem é uma violação aos integrantes da comunidade universitária e ao espaço acadêmico. É uma afronta a princípios que reafirmam o caráter público da Universidade e de suas instalações. Pior, a decisão judicial abre um precedente grave porque indica como possível a intervenção judicial em um tema, qual seja, a distribuição do espaço acadêmico, que compete exclusivamente à Universidade e à comunidade acadêmica administrar.
Se a gestão não se sente capaz de fazer isso, ainda assim, não é o Judiciário que deve fazê-lo, porque existem normas, compromissos e expressões normativas da escolha administrativa que devem servir de base para a decisão que o reitor está obrigado a tomar. Não pode é, por interesses não propriamente públicos, esquivar-se de cumprir essas normas e valer-se de uma ação de Reintegração de Posse para tanto.

É evidente que a presença da AMCEU/CASSIS na sala BT-260 ou em qualquer outra não provoca prejuízos à UnB. Pelo contrário, reafirma a Universidade enquanto tal. Portanto, as decisões judiciais são equivocadas, principalmente, por deixarem de considerar que a ocupação de salas por estudantes para a constituição de seus Centros Acadêmicos independe do interesse pessoal do administrador. Está amparada nos princípios da educação e realiza disposições normativas previstas nas Leis 7.395/1985 e 12.852/2013 e em normas internas da Universidade (circular n.º 07/2011 e outras conforme se pode observar nas matérias publicadas no portal da Universidade), em que o interesse público se expressa. 

sábado, 7 de setembro de 2013

Reintegração de posse na UnB, contradições, prisão de manifestantes pelo 07 de setembro e modelo de universidade – assim nessa mesma ordem e um parênteses

Humberto Góes

Está para ser realizado nos dia 11 e 12 de setembro próximo, na Universidade de Brasília, mais especificamente, na FINATEC, com participação de especialistas da América Latina, o Seminário sobre "Acesso e Permanência dos Grupos Vulneráveis no Ensino Superior".

Também está para acontecer a qualquer momento na mesma universidade a reintegração de posse da sala ocupada pelo Centro de Assistência Social, já deferida pela Justiça Federal no DF. 

Antes de seguir com o meu raciocínio, faço um parênteses.

Embora não seja da mesma organização judiciária, essa decisão discrepante do direito em vários aspectos emana de uma estrutura de Estado que pouco dialoga com interesses de libertação do povo oprimido e explorado do Brasil, e, por conseguinte, em muitos casos, se mostra omissa e desrespeitosa. Não há posse porque não há animus domini. Não há posse porque no direito público não existe o instituto da posse. Não há interesse público a ser resguardado por um instrumento de direito privado utilizado como via transversal para impedir o exercício de um direito público subjetivo, mais ainda, de um direito humano consagrado em tratados internacionais e na Constituição Federal de 1988, que é o direito de manifestação e de reivindicação. Como em processo civil, não se pode opor um instrumento de direito real, a reintegração de posse, a um direito pessoal, que é o direito de se manifestar.  Mesmo assim, é a posse e a sua reintegração que são utilizadas para impedir que a manifestação, que a luta por novos direitos seja vivenciada. 

No bojo dessa forma de pensar alheia aos problemas reais do povo brasileiro emana outra decisão cujos termos indicam uma tentativa de o Judiciário se esquivar quanto a injustiças vivenciadas pelo povo. Agora, o que se observa é a omissão quanto ao julgamento de pedido de liberdade provisória de quatro militantes presos nas manifestações por direitos ocorridas nesta sexta-feira 06 de setembro feito pela Defensoria Pública do Distrito Federal, após articulação da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho da UnB.

Sob pretexto de ser incompetente por não ter recebido oficialmente os autos de prisão em flagrante, o juiz de plantão no Fórum Fagundes Leal na noite desse mesmo dia 06 optou por admitir como certa a ressignificação jurídico-penal do Governo do Distrito Federal para criminalizar integrantes de movimentos sociais.

Mesmo diante de parecer do Ministério Público favorável à liberação, a omissão do juiz permite que o GDF dê interpretação ampliativa, inconcebível no âmbito do direito penal, e restritiva, também de modo inconcebível, agora, no âmbito dos princípios e direitos constitucionais, para que se desnature o direito de manifestação eliminando do seu conteúdo os direitos de resistir e de criar meios para que tenha êxito.

Ratificar por omissão a prisão política, por crimes de desobediência e dano ao patrimônio público, de quatro militantes também permite que o GDF se sinta livre para promover a criminalização das lutas sociais, nem que isso exija todo o aparato do Executivo (o que não faz, por exemplo, quanto ao genocídio da população negra e pobre da periferia), incluindo a polícia técnico-científica para configurar o suposto dano ao patrimônio público (rapidamente peritos constatam o rebaixamento do asfalto causado pela queima de pneus em via pública).

Age igual o magistrado que, em lugar de discutir a arbitrariedade das prisões de integrantes de movimentos sociais, sobretudo, diante da liberação pela polícia do GDF de 50 (cinquenta) outros manifestantes acusados também de dano ao patrimônio público neste dia 07 de setembro, em lugar de revogar a prisão em flagrante, apenas reduz a fiança de R$ 2.000,00 (dois mil reais) para um salário mínimo. Esta atitude indica um claro propósito de não discutir a violência e a ilegalidade das prisões, de reafirmar o processo de criminalização dos movimentos sociais, bem como de aceitar o uso de duas formas de atuação quanto ao tipo de manifestantes, sua condição de classe, as pautas que carregam, mas, principalmente, impedir os mais pobres de se organizarem, de lutarem por direitos, de exigirem condições dignas de vida.

Apesar das diferenças, em certo aspecto, a atitude apresentada guarda semelhança com a decisão de reintegração de posse da sala do Centro de Assistência Social. No mínimo, dá indícios da tentativa de anular o direito de reivindicar daquelas pessoas que, com as suas demandas, ensejam o debate sobre os rumos da política, sobre os fins a serem alcançados.

É para falar dessa reintegração de posse ou, mais propriamente de seus efeitos, que retorno ao que dizia anteriormente e fecho o parênteses.

Na UnB, duas grandes contradições me parecem estar acontecendo. A primeira, um evento como esse em um espaço privado que parece andar na contramão das necessárias preocupações da Universidade com os grupos oprimidos e explorados da sociedade. Um lugar que se constituiu do uso da universidade pública para fins privatizantes, conforme se pode depreender da história recente da UnB.

Não sei exatamente o que é, quem representa e o que pretende a Rede de Direitos Humanos e Educação Superior (DHES), mas é preciso perceber que um tema como esse demanda coerência com a própria educação pública e com o sentido libertador que devem carregar os direitos humanos. Não pensar sobre isso é de alguma forma admitir uma perspectiva de universidade que anda de passo com a segunda contradição. 

Esta é representada pela reintegração de posse de uma sala ocupada por estudantes, cujo animus é apenas e exclusivamente o de manter um espaço público para fins públicos. Ou seja, inexiste vontade de apropriação privada; inexiste interesse em tomar para si e de fazer como seu o espaço da universidade. Ao contrário, a ocupação pelo Centro de Assistência Social, como todas as outras ocupações de salas para a fundação de Centros Acadêmicos, como a história indica, reafirma a universidade e o seu caráter público. 

Não é o caso da FINATEC e de várias outras fundações de apoio, por exemplo. Estas ocupam a universidade retirando dela a sua autonomia e o seu caráter de instituição pública. Tomam o espaço físico com animus domini, com fins privados fincados na exclusividade, na disposição absoluta do lugar, incluindo a cobrança pelo uso. Esta sim precisava deixar de existir na Universidade de Brasília, se não formalmente, pelo menos, fisicamente. Se é uma fundação privada, com interesses privados, por conseguinte, que se liga à Universidade como algo ou alguém que se acopla a outro para manter e incrementar a sua existência e seus fins privados; que, para ser e realizar seus interesses, precisa sugar do outro as condições de manutenção, a única opção visível dentro do Direito seria que se formasse fora do espaço da Universidade, que se mantivesse em lugar semelhante aos seus fins, privado.

Embora não seja a minha intenção chamar as fundações de apoio de parasitas, considero que a mescla de interesses privados e públicos no mesmo lugar se mostra historicamente bastante prejudicial ao público. É como se se constituísse ao modo como atuam os parasitas, sobrepondo os seus interesses ao interesse do todo. Afinal, qual a sorte de um parasita?

É de seu ser buscar sempre e cada vez mais tirar do outro parcela de sua força vital para fazer desta o seu próprio ser, o seu próprio existir. É do parasita viver à custa do outro e, quanto mais próximo, seja acoplado ou, mais grave ainda, dentro do organismo, mais pode sugar, mais pode retirar as condições do outro para fazê-las suas.

Parece-me ser próprio dos parasitas a insaciabilidade. Estes não cansam sua vontade de apropriação enquanto houver vida, enquanto houver o outro, enquanto houver alteridade. Porque um parasita anseia sempre em transformar o outro nele mesmo; em fazer do outro ele próprio; em fazer de dois um só, anulando o interesse do outro como quem fagocita os objetivos, as expectativas, as responsabilidades, ainda que, diante da morte de quem lhe dá vida, este corra igualmente o risco de desaparecer pela falta do hospedeiro.

Continuando a comparação com elementos da biologia, promover a reintegração de posse que estamos prestes a ver na UnB, é como anular uma estrutura que dá vida, que defende a vida, que luta para que o organismo se mantenha protegido porque deixa sua dinâmica igualmente resguardada; é como atacar os meios de defesa, em vista de constituir ao parasita as condições para seguir sua sorte, quem sabe até permitir que este transforme tudo no seu exclusivo destino. Talvez, não sei bem ainda, esta atitude seja como no caso das doenças autoimunes em que as células de defesa são responsáveis pelo ataque e pela destruição do corpo que deveria defender.

Assim me parecem as opções hoje dispostas na UnB. Com a reintegração de posse do CASSIS, com o reforço às fundações de apoio, sem contar com a retomada do Conselho Diretor, duas mensagens estão sendo trazidas à comunidade acadêmica (ambas relacionadas aos princípios que dirigem as decisões universitárias): a primeira é de que se estão refazendo os rumos que a UnB tinha anos atrás, com sobreposição de interesses privados e com a transformação destes no interesse da própria universidade, minando seu caráter de instituição pública com as responsabilidades que decorrem dessa circunstância igualmente. A segunda mensagem é que é preciso enfraquecer tudo o que possa colocar em xeque esse propósito. Anular ações que representem demandas que a universidade, dominada pelos interesses privados, não pode ter. 

Ter uma ocupação de uma sala de um modo que foge aos planos traçados pela administração centralizada, ainda mais, suportar uma ocupação que é realizada por uma organização que lembra a universidade de suas responsabilidades públicas, de seu compromisso social, seria admitir o risco ao empreendimento que se espera muito rapidamente se ver completado. Seria admitir a convivência com dois projetos de universidade que são intimamente incompatíveis. Por isso, é preciso exterminar, de imediato um deles, nesse caso, o Centro de Assistência Social, para seguir com a transformação de todo o interesse público da universidade numa expressão do propósito privado que, agora, se traveste ao se normalizar e se regulamentar utilizando instrumentos públicos internos de produção normativa e condições de realização de poder que são emprestadas às instituições públicas.


De forma clara, estamos diante de opções políticas que, decerto, não estão a favor da Universidade de Brasília, de sua comunidade acadêmica e, mais ainda, lembrando que a universidade deve ser parte do mundo e não um mundo à parte, do povo que a sustenta e financia esperando ver a assunção de um projeto universitário de libertação.