segunda-feira, 12 de setembro de 2016

O CONCEITO DE CASA CONTRA O CONCEITO DE PROPRIEDADE PRIVADA NO FILME AQUARIUS


Humberto Góes

O CONCEITO DE CASA CONTRA O CONCEITO DE PROPRIEDADE PRIVADA NO FILME AQUARIUS
Em texto escrito por Túlio Jales e José Leôncio Guimarães Filho (http://dejure.org.br/…/aquarius-um-elogio-a-propriedade-pr…/ ), afirma-se a existência de um discurso de defesa da propriedade privada em seu aspecto liberal e de um possível egoísmo da personagem Clara. Estas seriam apontadas como algumas das "contradições" do filme Aquarius, cujo propósito, entre outros, é denunciar a ordem imposta à cidade pelas construtoras.
Em desacordo com que indicam os amigos, encontro outra perspectiva de leitura do filme e de compreensão para o modo como é apresentada a luta de Clara. Para expressá-la, primeiro, invoco um conceito que suponho fugir em alguma medida à concepção liberal de propriedade, o qual considero mais condizente com o conjunto das ideias esboçadas em Aquarius. É a categoria teórica "casa", que, no contexto, pode ser confundida com a noção de "território".
Usando argumentos que os próprios autores atribuem ao direito de propriedade no pensamento liberal tendo em conta certa visão filosófica, considero que a ideia de “casa” imprime a certo espaço marcas de subjetividade que o transformam em “lar”, em “moradia” - mais do que em propriedade. Por isso, apesar de ser considerado individualmente, o que parece surgir com a ação de Clara é a defesa de seu “território”, construído com a história esculpida nos objetos pessoais e no afeto constituído e difundido no cotidiano que se enlaça ao lugar.
Tal como é retratado, este não é apenas o cenário em que as coisas acontecem. É um sujeito que dialoga com Clara a todo o tempo. A expressão disso está em outros protagonistas que igualmente atuam para a configuração territorial do lugar, isto é, que contribuem para a formulação do conceito de "casa" que Clara parece invocar com a sua ação de desafiar tudo aquilo que afeta o seu território: a praia (e os tubarões com os quais concorre para se banhar); a cômoda que aparece sempre que se pensa ou se vivem os prazeres sexuais; os discos (e sua conexão com o presente por meio dos pendrives); o misto de tecnologias novas e antigas que imprime ao território imediato, ou seja, à casa, uma intertemporalidade; o esgoto identificado como divisor de bairros, portanto, de territórios mais amplos em que se situam as casas. Com esses elementos e juntamente com o sentimento de pertença que se vê promovido do contato subjetivo com o lugar, o território mesmo vai sendo definido, demarcado, o que também compreende a possibilidade de, dentro de certas circunstâncias, configurar-se a entrada ou a saída, bem como o contato desse lugar subjetivado com outros territórios com os quais aquele se interconecta por meio do território maior da cidade, também composta subjetivamente pelas pessoas que a realizam como tal.
Essa compreensão é o que parece surgir enquanto Clara caminha em direção a "Brasília Teimosa", um território que a princípio estaria proibido à protagonista do filme por sua condição social, e indica com clareza os marcos subjetivos que definem a divisão dos territórios no ambiente da cidade.
Nesse contexto é que igualmente se recompõe nas entrelinhas do filme o direito de herança. Este não surge apenas com uma transmissão qualquer de bens. Está intimamente ligado à ideia de cuidado com o território e à ideia de cuidado que própria protagonista tem consigo mesma e com a relação que, a partir de seu lugar, mantém com o mundo. Sob esta perspectiva, que passa pela noção de "casa", o cuidado se vincula à uma concepção de segurança que o abrigo pode proporcionar à existência humana.
Ao que parece, as pessoas, em maior ou menor medida, mantêm essa relação de cuidado e autocuidado com sua "casa". Porém, talvez para a maioria, todos os sentimentos que se dão em torno do território são passíveis de se transformar em dinheiro, o que reduz a condição da "casa" à concepção de "bem imóvel", portanto, de "propriedade". Não é o caso de Clara, que deseja acima de tudo preservar o seu lugar – nem lhe interessa saber o preço que lhe atribuem ao imóvel. Para ela, sua casa não tem preço. Tem valor e esse valor não se reduz a pecúnia.
Tanto é assim que ela afirma à sua filha aquele espaço físico subjetivado como sua "casa"; invoca o direito de preservar sua "autonomia sobre o território" e diz que ela e os irmãos poderão tomar decisões sobre o lugar somente depois de sua morte, portanto, quando os laços que a enraízam espacialmente, porque irrepetíveis diante de sua condição subjetiva, se perderão e/ou não poderão ser exercidos.
Apenas nesse instante é que vejo o direito de herança surgindo em seu aspecto liberal. Ainda assim, como uma pretensa promessa ou alento futuro para a filha. Não para a protagonista mesma.
Não se pode dizer que o filme não esboça incoerências e conflitos sociais individualizados em seus personagens. Ao contrário disso, representa as angústias e as inconsistências que cada um e cada uma pode viver diante do mundo. Sintetizadas mesmo na defesa do lugar, são apresentadas as contradições, os limites e o alcance que a própria luta de preservação vai produzindo. Nesse bojo, emergem algumas tomadas de consciência, a exemplo do reconhecimento da exploração do trabalho doméstico, minimizada pela tentativa de aproximação e de construção de um sentimento de lealdade, de amizade, com a pessoa que atua como empregada doméstica no que se define como "lar" ou "moradia".
A casa é o lugar em que tudo ocorre, mas também vai sendo marcada pelo traço subjetivo e cria ao mesmo tempo as condições para a emergência e reforço dessa subjetividade. Por essa razão é que considero inadequado pensar em um suposto egoísmo da parte de Clara. Na verdade, o que ela faz é resistir à logica que se naturaliza nas pessoas diante da atuação incisiva das empresas de construção civil para transformar todos os lugares da cidade em bens constituídos por seu intermédio.
Não é o fato de os vizinhos e a filha terem sucumbido a essa lógica que faz surgir em Clara o que se poderia chamar de egoísmo. Essa é a qualificação negativa atribuída à protagonista pela construtora e pelos personagens que tentam de forma violenta ou velada impor uma mudança de perspectiva, bem assim, a alteração de sua postura classificada como “intransigente” frente à proposta de compra, cujo significado se amplia ao se perceber que vem junto com uma promessa de mais segurança, de comodidade, de novidade. Ao contrário disso, a personagem assume em si mesma a resistência para preservar a cidade da tentativa da sanha capitalista de conotá-la como um “negócio”. Por isso é que Clara é vista pela construtora e por seus vizinhos como um obstáculo que precisa ser removido. Não importam os seus sentimentos, seus laços que territorializam o lugar. Ela não assume a lógica “normal” quanto ao que, para a construtora, é um bem a partir de que pode se dar a sobreposição de seus interesses econômicos a qualquer outro.
Por fim, observando nas imagens que compõem a obra cinematográfica o apagamento das torres de luxo construídas em descompasso com a historicidade do Recife antigo, considero Aquarius, sob outro aspecto, como a organização de um discurso que nega às construtoras a condição de medium entre as pessoas e a cidade. Isto é, considero que o filme se compõe como a defesa evidente de que são as pessoas que podem definir o lugar e as condições de viver e transformar a cidade.


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A SEGREGAÇÃO INSTITUCIONALIZADA NO BRASIL - AINDA TEM JUIZ E JUÍZA COM CORAGEM DE FAZER ISSO. ATÉ QUANDO?

Por Humberto Góes


Falam em IGUALDADE no Brasil... propagam esse discurso como uma verdade... o melhor é ver estudantes de Direito falando em IGUALDADE - é sempre tudo tão abstrato! NUNCA TIVEMOS IGUALDADE NO BRASIL! Precisamos ver isso! A IGUALDADE ESTÁ POR SER CONSTRUÍDA! Esse deve ser o nosso OBJETIVO enquanto POVO!

As ELITES sempre construíram a igualdade à custa do CONTROLE DOS POBRES, seja por meio da PRISÃO, do CONTROLE de seus DISCURSOS, de seus PENSAMENTOS, de seu TRABALHO, de seus PASSOS NA RUA, de suas DANÇAS, de sua RELIGIÃO, de sua CAPOEIRA (é só olhar rapidamente para a história).

Agora, com o suposto DESENVOLVIMENTO DO BRASIL pelo aumento do CONSUMO, nunca tivemos tantas MORTES DE JOVENS NEGROS E POBRES DA PERIFERIA, nunca ventilamos tanto a PROPAGANDA DA SEGREGAÇÃO SOCIAL, sutil ou abertamente empregada pelos meios de comunicação, de seus convites para almoços com sangue, e ainda por aquela anunciada eivada do discurso moralista da honestidade e de um PADRÃO DE SOCIABILIDADE sorridente, passivo, pacífico, hospitaleiro, dançante, enquanto os ricos de sempre, inclusive com apoio das televisões e de outros meios de comunicação, passam a mão no país e reforçam suas riquezas baseados nas TROCAS DE FAVORES, na PRIVATIZAÇÃO DO ESTADO para o seus interesses e na EXPLORAÇÃO de outros seres humanos. Nunca fizemos tanto a separação entre consumidores e consumidoras de primeira categoria e aquelas e aqueles que sobram.

É assim que vão fazer também uma COPA DO MUNDO, alardeando para todo o planeta um país desenvolvido [para os de sempre], mostrando alegria, carnaval... mostrando as cores e a música da diversidade, mas separando a festa para os escolhidos e escolhidas. Isto é, mantendo os pobres, que, quase sempre, são pretos e pardos, sob CONTROLE, sob VIGILÂNCIA, sob VIOLÊNCIA. É assim que a alegria será mostrada, como uma estátua de pés sujos de sangue e as mãos com resíduos de pólvora.

A indicação de que será assim já foi dada com a ação da POLÍCIA, com a REPRESSÃO DE ESTADO, nas manifestações de junho de 2013, contra a COPA DAS CONFEDERAÇÕES, a COPA DO MUNDO, e por DIREITOS DE IGUALDADE. Agora, mais uma vez, com a tentativa de a periferia ir ao Shopping para ter visibilidade, a POLÍCIA, como representante do ESTADO PRIVATIZADO que temos, mostra a serviço de quem está. Mostra que sua formação continua sendo a que ensina a escolher QUEM DEVE PASSAR, quem deve OCUPAR OS ESPAÇOS SOCIAIS, baseada na vontade das elites de impor o que é ser brasileiro, que modelo de família, de comportamentos, devemos adotar, tudo para sermos uma "nação ordeira" e "passiva". Melhor, segue como uma formação que ensina AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA a atuarem como SERVIDORES PRIVADOS que incorporam os ELEMENTOS MORAIS DA SEGREGAÇÃO e assumem a RAIVA DAS CLASSES SUPERIORES SOBRE OS POBRES e, selecionando-os pela cor da pele, pela vestimenta, pela fé que professam, pelo corte de cabelos e pelo andar, em síntese, por seu jeito de ser, contra eles atuam. Pior, com o discurso e JURISTAS, que, ao longo da história, justificaram a ESTIGMATIZAÇÃO de crianças e adolescentes pobres como legal, e com o AVAL DO PODER JUDICIÁRIO, que sempre foi no Brasil o meio pelo qual se materializou a discriminação, o preconceito, a aliança entre a violência de classe e a violência contra a diferença.

De fato, para as CLASSES DOMINANTES, a lei só é parâmetro quando lhe serve diretamente. Por exemplo, quando, para uma reintegração de posse, contra a luta por Reforma Agrária, basta alegar, em uma página, sem qualquer documento, nem mesmo o RG do autor ou autora, que é possuidor ou possuidora de um imóvel para ter a condescendência do JUDICIÁRIO e de todo o APARATO REPRESSIVO DE ESTADO. Mas, quando a lei protege crianças e adolescentes da violência moralista de sempre, impedindo que sejam discriminadas por sua cor de pele, pelo local de moradia; quando a lei fala racismo como crime ou impede a discriminação de pessoas com deficiência, idosos e idosas, de mulheres, no trabalho; quando impõe o dever público de educar ou de constituir atendimento de saúde de qualidade; quando a lei diz que é crime "recusar atendimento ou impedir acesso a estabelecimento comercial negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador"; quando a Constituição afirma que é vedada qualquer forma de discriminação, rapidamente, as elites acionam o seu APARATO DE ESTADO para realizar sua própria lei. Como tal, o JUDICIÁRIO veste sua armadura medieval de guerra e desfere sua espada sobre os "INDESEJÁVEIS", os "ÍMPIOS", sobre os "VICIOSOS DE TODO GÊNERO", sobre aqueles e aquelas que são "DELINQUENTES" só pelo fato de ter nascido.

Tenho procurado na internet a DECISÃO do JUDICIÁRIO que impede DE IR AO SHOPPING em São Paulo os PRETOS e PARDOS POBRES e RECHAÇÁVEIS POR SUA VESTIMENTA, segundo os critérios de escolha do Shopping JK Iguatemi e da Polícia, mas não encontro. Queria entender a inentendível razão de proibir adotada por esse magistrado ou magistrada, que precisa ser conhecido nacional e internacionalmente por seu DISCURSO SEGREGACIONISTA. É preciso denunciá-lo ou denunciá-la! É preciso que todas as pessoas saibam quem é condescendente com a VIOLAÇÃO DE DIREITOS, como forma de, aos poucos, irmos vencendo essa cultura da violação com a CULTURA DE DIREITOS. É ainda fundamental para a DEMOCRACIA e para JUSTIÇA que o CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ) se pronuncie afastando esse ou essa, que deve ser, acima de tudo, um SERVIDOR PÚBLICO ou uma SERVIDORA PÚBLICA. Porque, de nenhuma maneira, não na parte da legislação brasileira que eu conheço, há justificativas para institucionalizar a DISCRIMINAÇÃO e o PRECONCEITO contra os jovens pretos pobres da periferia.

Por enquanto, o que encontro são apenas provas de que precisamos seguir lutando contra a SEGREGAÇÃO, contra a REPRESSÃO DE ESTADO, para estabelecer, no JUDICIÁRIO, a DEMOCRACIA e os VALORES DE JUSTIÇA EFETIVA BASEADA NA IGUALDADE; que ainda precisamos seguir lutando JUSTIÇA SOCIAL.

Algumas dessas provas estão aqui:

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1396820-depoimento-em-itaquera-pm-dizia-a-quem-passava-vou-arrebentar-voce.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1396629-video-mostra-pms-agredindo-jovens-em-rolezinho-dentro-no-shopping-itaquera-em-sp.shtml

http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/126654/Veto-a-rolezinho-consagra-o-apartheid-brasileiro.htm

http://www.brasil247.com/pt/247/sp247/126620/Muralha-da-desigualdade-JK-barra-rolezinho.htm

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O erro da Reintegração da UnB

Por Humberto Góes

Neste momento, percorre os corredores da 22ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal a Ação de Reintegração de Posse nº 0049035-89.2013.4.01.3400 movida pela Universidade de Brasília contra o Centro de Assistência Estudantil, antiga Associação dos Moradores da Casa do Estudante da UnB (AMCEU).
Se é grave que esse tipo de Ação seja promovida por uma Instituição de Ensino contra um dos seus segmentos integrantes, que, tal como todos os outros, têm direito ao espaço acadêmico, é igualmente grave que o Judiciário, expressão de uma legislação, de uma interpretação e/ou de uma condescendência proprietarista, admita receba e processe uma Ação como essa. Igualmente, que negue de pronto o caráter público da instituição e do seu espaço acadêmico com a emissão de medida de urgência contra estudantes que querem, segundo a legislação em vigor, organizar seu Centro Acadêmico como meio de defesa e proteção a direitos; e, após pedido, mais uma vez, ilegal da gestão, promova nova decisão de urgência, agora contra o direito de manifestação dos estudantes que, reiteradamente com seu direito violado, ocupam a Reitoria para obter do gestor postura condizente com o interesse público e com os desígnios de uma Universidade.
Sobre isso, é importante observar, por exemplo, que se o reitor cumprisse aquilo que determina o Direito, as fundações de apoio já não estariam invadindo o espaço público com seus interesses privados. Embora isso precise ser lembrado a todo momento, porque caracteriza o modo como são tratados os interesses impróprios distribuídos em meio à comunidade acadêmica, são as decisões judiciais e a irresponsabilidade do Judiciário que devem ser abordadas mais diretamente. Afinal, o que se espera é que, no desrespeito ao interesse público, seja a ação judicial um meio de compelir o gestor a restabelecê-lo. Ao contrário disso, no caso da reintegração de posse promovida pela gestão da UnB tentando se confundir com a própria Fundação Universidade de Brasília, o que se tem da parte do Poder Judiciário são três decisões que, por um lado, se omitem em cumprir regras e princípios de Direito Processual Civil e negam a finalidade do processo em realizar direitos fundamentais, por outro, acatam e chancelam a atuação desrespeitosa promovida pelo gestor da UnB contra os princípios da Universidade enquanto instituição de ensino que precisa estar movida pela liberdade, pela organização e pela participação de toda a sua comunidade na tomada de decisões.
A primeira delas, que determina a imediata retirada de estudantes integrantes de Programas de Assistência Estudantil da UnB de sala que ocupam para o desempenho de atividades próprias da comunidade universitária, mostra-se equivocada por deixar de considerar que a constituição de Centros Acadêmicos, além de estar legitimada por lei, regulamentada pelas normas e compromissos assumidos pela Universidade, também faz parte da dinâmica interna de organização de uma Instituição de Ensino Superior. Ou seja, sonega à comunidade acadêmica a disposição sobre o espaço da Universidade para atividades de organização e participação, que integram o processo de formação superior, e admite que a gestão se esquive de cumprir uma atribuição exclusiva sua, a saber, a competente distribuição do espaço acadêmico entre seus servidores e servidoras, técnico-administrativos e professores, bem como estudantes.
A segunda decisão judicial é uma violação em si. Mesmo com a demonstração cabal de que a ocupação da sala pelo CASSIS reafirma o interesse público, integra a função social da Universidade, a magistrada prefere não reconsiderar sua decisão anterior. Prefere dar seguimento ao processo de negação do caráter público da Universidade. Prefere fazer-se magistrada ao lado de valores não-condizentes com os princípios, valores e interesses que, a partir destes, se constituem para uma Instituição de Ensino Superior.
Como a visão proprietarista contamina o Direito... mesmo quando se fala em espaço público, em interesse público, em deveres públicos, ela parece emergir como valor mais alto e como valor em si, sobrepondo-se a condições que, historicamente, vão constituindo o que se chama de Universidade. Com ela, a magistrada parece ungir a UnB com a “pureza” da propriedade e de um direito que não serve a uma instituição que se faz pública com a presença e o compartilhamento do espaço entre estudantes, servidores e servidoras, técnico-administrativos e docentes. Resgatam-se valores que só a ditadura militar conseguiu promover na UnB com a gestão policial do espaço acadêmico, com o uso de expedientes de exceção para fazer uma Universidade que não se plenifica enquanto lugar de liberdade política, de criação, de complexidades para além do que a adequação espacial ao proprietarismo é capaz de permitir.
Sobre a terceira decisão, se as anteriores são esdrúxulas, esta última, processual e materialmente é ainda mais difícil de admitir. A força policial que deveria recair sobre o pedido específico de reintegração de posse da sala BT 260, agora se estende para a Reitoria e para qualquer espaço que os estudantes e as estudantes ocupem na UnB, sob pena de multa de R$ 5 mil reais por dia. Interessante é saber que a Ação de Reintegração de Posse, inicialmente, estava motivada por uma ocupação de sala para que se tornasse sede de um Centro Acadêmico e tinha como pedido específico a retirada imediata de estudantes desse espaço. No segundo momento, após o despejo forçado e desrespeitoso do CASSIS, com a ocupação da Reitoria, a motivação era agora, protestar contra a atitude infundada da atual gestão em realizar efetivamente a reintegração de posse. Apesar disso, o magistrado que cobre as férias da julgadora anterior expediu uma nova decisão, que, para além do pedido específico inicial, transformando-a mesmo numa nova demanda, amplia ilegalmente o alcance da Ação de Reintegração de Posse para que se faça a retomada do prédio da Reitoria e de qualquer espaço da UnB. Pior de tudo, sem se ter exatamente a quem deve se dirigir a demanda.
Levando isso às últimas consequências, é possível entender que à generalidade, os estudantes e as estudantes da UnB estão proibidos de se integrar ao fazer da Universidade, de contribuir para que ela realize o seu objetivo público e, ao sabor da gestão que hoje se encontra na Reitoria, podem sofrer a qualquer momento despejos dos espaços que conquistaram para os seus Centros Acadêmicos. Seria a privatização quase total do espaço acadêmico. Ao menos, seria a vulnerabilidade deste à vontade particular do gestor. É isso o que afirma o Judiciário nas entrelinhas de uma decisão completamente alheia ao funcionamento e à dinâmica que se imprime a um espaço público como a Universidade. É pior em relação à Universidade de Brasília, criada para pensar o Brasil, seu povo e seus problemas como centro de suas atividades de pesquisa, de ensino e de extensão, o que, de fato, se reflete no modo de organização e de produção cognitiva dos integrantes da comunidade acadêmica.
Sobre a Ação de Reintegração de Posse e a ocupação de salas para Centros Acadêmicos, pode-se dizer que esta última, ao contrário da primeira, é parte do cotidiano do ambiente universitário. Dá-se enquanto este se reafirma como espaço de construção de pensamento e de liberdade. O Judiciário, no entanto, prefere relevar a falta de argumentos, a falta de negociação, a falta de diálogo e, mais ainda, a ilegalidade das alegações utilizadas pela gestão da UnB, para, ao invés de determinar que se cumpram os deveres inerentes a uma instituição pública de ensino superior, impulsionar uma reintegração de posse que, pela via transversa, contribui para a desnaturação do caráter público do espaço físico da Universidade.
Diz-se que esta é uma via transversa porque coloca como excepcional uma ação corriqueira dentro da dinâmica acadêmica para negar direitos, para impedir que o espaço universitário seja compartilhado com liberdade por todas as pessoas que o integram pela formação superior.
Tecnicamente, esta via transversa se realiza pelo uso e aceitação do argumento de violação da “propriedade”, ainda que se queira uma medida de proteção da posse, pois o que importa para a gestão e para o Judiciário é a “ocupação em si”, abstratamente falando, sem discutir os objetivos e as funções públicas que esses espaços possuem e o que devem abrigar, de acordo com a sua atividade. No caso do Judiciário, como lhe é de praxe, o que se prefere no presente caso para que não se lhe atrapalhe uma decisão rápida, condescendente com a violência de estado, é se omitir quanto aos equívocos técnicos do pedido do gestor da UnB. Esta atitude promove sem muitas delongas a Reintegração de Posse, mesmo que esta nem indique contra quem se pede a medida de urgência.
É verdade, só o fato de o reitor alegar a propriedade e requerer uma medida possessória, por si só, já seria suficiente para que o Judiciário negasse o pedido. Porém, aqui, o que importa é a propriedade ou a posse ou sei lá o quê! – tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 não fala em momento algum em propriedade pública, principalmente, quando estabelece os princípios da educação brasileira.
Para compreender os fatos complexamente, é preciso saber que a ocupação do espaço é motivada pela falta de local para sediar a entidade responsável pela representação dos estudantes que dependem dos Programas de Assistência Estudantil no âmbito da UnB.
A Associação dos Moradores da Casa do Estudante – AMCEU –, entidade reconhecida pela Administração da UnB, com representação nos espaços institucionais, possuía sede localizada na Casa do Estudante Universitário – CEU – até o ano de 2011, quando o espaço necessitou ser desocupado para entrar em um longo período de reformas. Desde então, a entidade, que atualmente passa por um processo de reestruturação a fim de ampliar sua área de atuação acadêmica, inclusive mudando sua nomenclatura para “Centro de Assistência Estudantil – CASSIS”, tem sido prejudicada pela falta de um local próprio. A gestão da UnB sempre acenava com promessas de solução para o problema, mas não cumpria os seus compromissos. Talvez, fosse interessante eliminar a demanda por Assistência Estudantil juntamente com os demandantes dela. Afinal, aniquila-se uma demanda quando se faz desaparecer junto com ela quem a promove. Juntos se vão como se nunca tivessem existido para fazer reinar a “paz social”.
Foi com o intuito de reestabelecer o espaço de sua organização, bem assim, garantir o seu direito à educação nos termos previstos na Constituição Federal de 1988, no PNAES, nas Leis 7.395/1985 e 12.852/2013, nas normas internas da UnB, mas sobretudo para reivindicar direitos que vêm sendo sistematicamente violados pela gestão atual da Universidade de Brasília, que os estudantes da Assistência Estudantil ocuparam a sala BT-260. Ou seja, foi por interesse público e para reafirmar o caráter público da universidade. Foi para realizar os princípios ínsitos aos bens públicos, principalmente aqueles que estão à disposição das Universidades de modo que estas realizem o seu caráter de público lugar de produção de conhecimento, outrossim, de realização das liberdades, incluindo-se as liberdades políticas e de organização para a defesa de ideias e da democracia, sendo incabível pensar-se em posse de bem público ou afronta à propriedade de bem público.
Até porque, se não há confusão com o uso privado próprio da posse e da propriedade, não se pode igualmente lançar mão de expedientes ínsitos ao direito privado para defesa dos bens públicos, muito menos dos espaços acadêmicos de uma universidade, que cumprem sua razão de ser ao serem ocupados, utilizados e vivenciados pela comunidade acadêmica. 
É por isso que, quando se discute a legitimidade da “posse” de um imóvel público, é preciso perguntar ao que ele serve, quais são os princípios que regem as atividades que nele se realizam, quais os seus propósitos e quais os propósitos de quem o ocupa.
Com a Ação de Reintegração de Posse, a gestão da UnB, além de, efetivamente, negar os princípios que regem a universidade, o modo de construção do conhecimento e a dinâmica democrática interna de uma instituição de ensino superior, dá demonstração de que quer desnaturar o espaço acadêmico em uma lógica plena de interesses que não necessariamente são públicos. Pior é que, de igual modo, o Judiciário admite os seus argumentos para assimilar a negação do interesse da coletividade e os princípios regentes da Universidade enquanto instituição que serve à sociedade; uma instituição que tem caráter público.
Por meio do espaço, o que o CASSIS pretende é dar visibilidades aos problemas da Política de Assistência Estudantil, apontar as principais necessidades de estudantes que dela dependem para seguirem seus estudos. Enquanto isso, a atual gestão da UnB que, com a Ação de Reintegração de Posse, falta com respeito a direitos de estudantes e de demais integrantes da comunidade acadêmica ao dar demonstrações de que não tolera ter que realizar uma Política de Assistência Estudantil; de que não tolera ter que desempenhar recursos, mesmo que estes tenham origem direta do orçamento da União, para que seja assegurado o direito à educação a estudantes com situação financeira menos favorecida.
Seria, talvez, mais importante para a gestão da UnB direcionar estes recursos para atividades mais próximas de uma universidade voltada ao favorecimento de certos interesses econômicos privados. Um dos indícios de que isso pode ser verdade é que, neste momento, também está acontecendo uma recente ocupação de sala por estudantes de Medicina que querem instalar a nova sede de seu Centro Acadêmico. Em nenhum momento, a Universidade falou em reintegração de posse.
Também estão presentes no espaço público entidades que promovem atividades eminentemente privadas com fins de lucro e estas, além de não ressarcirem a Instituição pelo uso, tratam o espaço ocupado como se fosse exclusivo (alugam a terceiros, promovem eventos pagos, etc.). Nem por isso a gestão da Universidade, que viola normas de direito público e decisões reiteradas do Tribunal de Contas, especialmente o Acórdão TCU 2.731, falou em Reintegrar a Posse ou em retomada desses espaços para que eles cumprissem um interesse eminentemente público.
Embora, frise-se, seja legítima a ocupação de estudantes de Medicina, por que o trato é diferenciado com estudantes que dependem da Assistência Estudantil e querem reorganizar a sua associação com vistas a terem seus direitos assegurados e uma Universidade cumprindo a sua função pública de garantir o direito de acesso e permanência a estudantes de baixa renda? Por que a gestão da UnB desrespeita um acordo de distribuição de sala no Instituto Central de Ciências (“Minhocão”) previsto na Circular n.º 7, de 07 de abril de 2011, para o CASSIS? Será que estes estudantes estão sendo vítimas de preconceito e, sendo grande parte deles de negros, de racismo?
É possível que sim, principalmente porque quase todos, senão todos dos mais de 50 (cinquenta) Centros Acadêmicos existentes na universidade obtiveram suas salas para o desempenho de suas atividades por ocupação. Nunca, com exceção dos tempos da ditadura militar, houve pedido de reintegração de posse para evitar que estas organizações estudantis ocupassem o espaço acadêmico. Porque este deve estar livre!
Em uma Universidade, essa liberdade se exerce ou precisa se exercer em toda a sua plenitude. A produção de ideias depende de organização, de irreverência, de contato com a realidade, por conseguinte, com a política, interna e externa ao campus. Se a democracia depende de liberdade de associação, de manifestação, de pensamento e de expressão do pensamento, na universidade, esses princípios que também estão positivados na Constituição Federal vigente no País, não são menos importantes.
Uma formação democrática e cidadã depende da capacidade e da possibilidade de organização de estudantes, professores, professoras, servidores e servidoras técnico-administrativos. Depende dos processos de reivindicação, da participação nas instâncias de deliberação e, isso, está intimamente relacionado com as condições de reunião e de diálogo sobre os rumos da Universidade. Está intimamente ligado à ocupação dos espaços acadêmicos com ideias que se expressam por meio de organizações estudantis, que, por sua vez, se enraízam no espaço físico da Universidade, podendo ter dentro desta, o seu próprio espaço de referência. Depende, por isso, da presença de Centros Acadêmicos fortes e atuantes ocupando o espaço universitário.
Portanto, o que a gestão atual da UnB e o Judiciário, este alheio à dinâmica interna de uma Universidade, fazem é uma violação aos integrantes da comunidade universitária e ao espaço acadêmico. É uma afronta a princípios que reafirmam o caráter público da Universidade e de suas instalações. Pior, a decisão judicial abre um precedente grave porque indica como possível a intervenção judicial em um tema, qual seja, a distribuição do espaço acadêmico, que compete exclusivamente à Universidade e à comunidade acadêmica administrar.
Se a gestão não se sente capaz de fazer isso, ainda assim, não é o Judiciário que deve fazê-lo, porque existem normas, compromissos e expressões normativas da escolha administrativa que devem servir de base para a decisão que o reitor está obrigado a tomar. Não pode é, por interesses não propriamente públicos, esquivar-se de cumprir essas normas e valer-se de uma ação de Reintegração de Posse para tanto.

É evidente que a presença da AMCEU/CASSIS na sala BT-260 ou em qualquer outra não provoca prejuízos à UnB. Pelo contrário, reafirma a Universidade enquanto tal. Portanto, as decisões judiciais são equivocadas, principalmente, por deixarem de considerar que a ocupação de salas por estudantes para a constituição de seus Centros Acadêmicos independe do interesse pessoal do administrador. Está amparada nos princípios da educação e realiza disposições normativas previstas nas Leis 7.395/1985 e 12.852/2013 e em normas internas da Universidade (circular n.º 07/2011 e outras conforme se pode observar nas matérias publicadas no portal da Universidade), em que o interesse público se expressa. 

sábado, 7 de setembro de 2013

Reintegração de posse na UnB, contradições, prisão de manifestantes pelo 07 de setembro e modelo de universidade – assim nessa mesma ordem e um parênteses

Humberto Góes

Está para ser realizado nos dia 11 e 12 de setembro próximo, na Universidade de Brasília, mais especificamente, na FINATEC, com participação de especialistas da América Latina, o Seminário sobre "Acesso e Permanência dos Grupos Vulneráveis no Ensino Superior".

Também está para acontecer a qualquer momento na mesma universidade a reintegração de posse da sala ocupada pelo Centro de Assistência Social, já deferida pela Justiça Federal no DF. 

Antes de seguir com o meu raciocínio, faço um parênteses.

Embora não seja da mesma organização judiciária, essa decisão discrepante do direito em vários aspectos emana de uma estrutura de Estado que pouco dialoga com interesses de libertação do povo oprimido e explorado do Brasil, e, por conseguinte, em muitos casos, se mostra omissa e desrespeitosa. Não há posse porque não há animus domini. Não há posse porque no direito público não existe o instituto da posse. Não há interesse público a ser resguardado por um instrumento de direito privado utilizado como via transversal para impedir o exercício de um direito público subjetivo, mais ainda, de um direito humano consagrado em tratados internacionais e na Constituição Federal de 1988, que é o direito de manifestação e de reivindicação. Como em processo civil, não se pode opor um instrumento de direito real, a reintegração de posse, a um direito pessoal, que é o direito de se manifestar.  Mesmo assim, é a posse e a sua reintegração que são utilizadas para impedir que a manifestação, que a luta por novos direitos seja vivenciada. 

No bojo dessa forma de pensar alheia aos problemas reais do povo brasileiro emana outra decisão cujos termos indicam uma tentativa de o Judiciário se esquivar quanto a injustiças vivenciadas pelo povo. Agora, o que se observa é a omissão quanto ao julgamento de pedido de liberdade provisória de quatro militantes presos nas manifestações por direitos ocorridas nesta sexta-feira 06 de setembro feito pela Defensoria Pública do Distrito Federal, após articulação da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho da UnB.

Sob pretexto de ser incompetente por não ter recebido oficialmente os autos de prisão em flagrante, o juiz de plantão no Fórum Fagundes Leal na noite desse mesmo dia 06 optou por admitir como certa a ressignificação jurídico-penal do Governo do Distrito Federal para criminalizar integrantes de movimentos sociais.

Mesmo diante de parecer do Ministério Público favorável à liberação, a omissão do juiz permite que o GDF dê interpretação ampliativa, inconcebível no âmbito do direito penal, e restritiva, também de modo inconcebível, agora, no âmbito dos princípios e direitos constitucionais, para que se desnature o direito de manifestação eliminando do seu conteúdo os direitos de resistir e de criar meios para que tenha êxito.

Ratificar por omissão a prisão política, por crimes de desobediência e dano ao patrimônio público, de quatro militantes também permite que o GDF se sinta livre para promover a criminalização das lutas sociais, nem que isso exija todo o aparato do Executivo (o que não faz, por exemplo, quanto ao genocídio da população negra e pobre da periferia), incluindo a polícia técnico-científica para configurar o suposto dano ao patrimônio público (rapidamente peritos constatam o rebaixamento do asfalto causado pela queima de pneus em via pública).

Age igual o magistrado que, em lugar de discutir a arbitrariedade das prisões de integrantes de movimentos sociais, sobretudo, diante da liberação pela polícia do GDF de 50 (cinquenta) outros manifestantes acusados também de dano ao patrimônio público neste dia 07 de setembro, em lugar de revogar a prisão em flagrante, apenas reduz a fiança de R$ 2.000,00 (dois mil reais) para um salário mínimo. Esta atitude indica um claro propósito de não discutir a violência e a ilegalidade das prisões, de reafirmar o processo de criminalização dos movimentos sociais, bem como de aceitar o uso de duas formas de atuação quanto ao tipo de manifestantes, sua condição de classe, as pautas que carregam, mas, principalmente, impedir os mais pobres de se organizarem, de lutarem por direitos, de exigirem condições dignas de vida.

Apesar das diferenças, em certo aspecto, a atitude apresentada guarda semelhança com a decisão de reintegração de posse da sala do Centro de Assistência Social. No mínimo, dá indícios da tentativa de anular o direito de reivindicar daquelas pessoas que, com as suas demandas, ensejam o debate sobre os rumos da política, sobre os fins a serem alcançados.

É para falar dessa reintegração de posse ou, mais propriamente de seus efeitos, que retorno ao que dizia anteriormente e fecho o parênteses.

Na UnB, duas grandes contradições me parecem estar acontecendo. A primeira, um evento como esse em um espaço privado que parece andar na contramão das necessárias preocupações da Universidade com os grupos oprimidos e explorados da sociedade. Um lugar que se constituiu do uso da universidade pública para fins privatizantes, conforme se pode depreender da história recente da UnB.

Não sei exatamente o que é, quem representa e o que pretende a Rede de Direitos Humanos e Educação Superior (DHES), mas é preciso perceber que um tema como esse demanda coerência com a própria educação pública e com o sentido libertador que devem carregar os direitos humanos. Não pensar sobre isso é de alguma forma admitir uma perspectiva de universidade que anda de passo com a segunda contradição. 

Esta é representada pela reintegração de posse de uma sala ocupada por estudantes, cujo animus é apenas e exclusivamente o de manter um espaço público para fins públicos. Ou seja, inexiste vontade de apropriação privada; inexiste interesse em tomar para si e de fazer como seu o espaço da universidade. Ao contrário, a ocupação pelo Centro de Assistência Social, como todas as outras ocupações de salas para a fundação de Centros Acadêmicos, como a história indica, reafirma a universidade e o seu caráter público. 

Não é o caso da FINATEC e de várias outras fundações de apoio, por exemplo. Estas ocupam a universidade retirando dela a sua autonomia e o seu caráter de instituição pública. Tomam o espaço físico com animus domini, com fins privados fincados na exclusividade, na disposição absoluta do lugar, incluindo a cobrança pelo uso. Esta sim precisava deixar de existir na Universidade de Brasília, se não formalmente, pelo menos, fisicamente. Se é uma fundação privada, com interesses privados, por conseguinte, que se liga à Universidade como algo ou alguém que se acopla a outro para manter e incrementar a sua existência e seus fins privados; que, para ser e realizar seus interesses, precisa sugar do outro as condições de manutenção, a única opção visível dentro do Direito seria que se formasse fora do espaço da Universidade, que se mantivesse em lugar semelhante aos seus fins, privado.

Embora não seja a minha intenção chamar as fundações de apoio de parasitas, considero que a mescla de interesses privados e públicos no mesmo lugar se mostra historicamente bastante prejudicial ao público. É como se se constituísse ao modo como atuam os parasitas, sobrepondo os seus interesses ao interesse do todo. Afinal, qual a sorte de um parasita?

É de seu ser buscar sempre e cada vez mais tirar do outro parcela de sua força vital para fazer desta o seu próprio ser, o seu próprio existir. É do parasita viver à custa do outro e, quanto mais próximo, seja acoplado ou, mais grave ainda, dentro do organismo, mais pode sugar, mais pode retirar as condições do outro para fazê-las suas.

Parece-me ser próprio dos parasitas a insaciabilidade. Estes não cansam sua vontade de apropriação enquanto houver vida, enquanto houver o outro, enquanto houver alteridade. Porque um parasita anseia sempre em transformar o outro nele mesmo; em fazer do outro ele próprio; em fazer de dois um só, anulando o interesse do outro como quem fagocita os objetivos, as expectativas, as responsabilidades, ainda que, diante da morte de quem lhe dá vida, este corra igualmente o risco de desaparecer pela falta do hospedeiro.

Continuando a comparação com elementos da biologia, promover a reintegração de posse que estamos prestes a ver na UnB, é como anular uma estrutura que dá vida, que defende a vida, que luta para que o organismo se mantenha protegido porque deixa sua dinâmica igualmente resguardada; é como atacar os meios de defesa, em vista de constituir ao parasita as condições para seguir sua sorte, quem sabe até permitir que este transforme tudo no seu exclusivo destino. Talvez, não sei bem ainda, esta atitude seja como no caso das doenças autoimunes em que as células de defesa são responsáveis pelo ataque e pela destruição do corpo que deveria defender.

Assim me parecem as opções hoje dispostas na UnB. Com a reintegração de posse do CASSIS, com o reforço às fundações de apoio, sem contar com a retomada do Conselho Diretor, duas mensagens estão sendo trazidas à comunidade acadêmica (ambas relacionadas aos princípios que dirigem as decisões universitárias): a primeira é de que se estão refazendo os rumos que a UnB tinha anos atrás, com sobreposição de interesses privados e com a transformação destes no interesse da própria universidade, minando seu caráter de instituição pública com as responsabilidades que decorrem dessa circunstância igualmente. A segunda mensagem é que é preciso enfraquecer tudo o que possa colocar em xeque esse propósito. Anular ações que representem demandas que a universidade, dominada pelos interesses privados, não pode ter. 

Ter uma ocupação de uma sala de um modo que foge aos planos traçados pela administração centralizada, ainda mais, suportar uma ocupação que é realizada por uma organização que lembra a universidade de suas responsabilidades públicas, de seu compromisso social, seria admitir o risco ao empreendimento que se espera muito rapidamente se ver completado. Seria admitir a convivência com dois projetos de universidade que são intimamente incompatíveis. Por isso, é preciso exterminar, de imediato um deles, nesse caso, o Centro de Assistência Social, para seguir com a transformação de todo o interesse público da universidade numa expressão do propósito privado que, agora, se traveste ao se normalizar e se regulamentar utilizando instrumentos públicos internos de produção normativa e condições de realização de poder que são emprestadas às instituições públicas.


De forma clara, estamos diante de opções políticas que, decerto, não estão a favor da Universidade de Brasília, de sua comunidade acadêmica e, mais ainda, lembrando que a universidade deve ser parte do mundo e não um mundo à parte, do povo que a sustenta e financia esperando ver a assunção de um projeto universitário de libertação.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

CARTA A UM ESTUDANTE DE DIREITO SOBRE A BARBÁRIE NO EGITO

(Para Guilherme Fiúza)

Brasília (DF), 21 de agosto de 2013.

Caro estudante de Direito da Universidade Federal de Goiás/Campus Cidade de Goiás,


No sábado 17 de agosto de 2013, pela manhã, você me provocou com suas palavras, com sua angústia e com o seu estarrecimento ao se deparar com um vídeo do massacre cometido pelo exército egípcio golpista nos últimos dias. Você me deixou pensando no que poderia esperar da confiança depositada em um militante de direitos humanos; no que você esperava ver compartilhado; que diálogo poderia ser estabelecido a partir do que afirma: “parece um filme de ação, porém, com armas letais, personagens e mortes reais. Você assiste a documentários, lê artigos, reportagens inúmeras, mas nada vai te fazer sentir o que eu senti assistindo a isso” (SIC). Isso ficou ainda mais evidente quando me direciona uma pergunta que parece querer um alento ou algo que lhe alimente a esperança diante de cenas de violência crua: “Professor Humberto Góes, algum comentário sobre "direitos humanos"?”.



Eram efetivamente angustiantes as imagens que você me apresentava. Segundo os noticiários, até a noite do dia anterior, já eram mais de 700 (setecentos) mortos no Egito por causas políticas.
Eu suponho que, talvez, juntando essa informação com as imagens expostas no vídeo, o que tenha ficado de imediato para você tenha sido a paralisia e a revolta diante do que choca. É comum que, em face de situações extremas, nos sintamos atados, descrentes no que estamos acostumados a pensar ou achando que a nossa razão é insuficiente para compreender o que se passa e, com isso, alterar uma realidade que não deveria se fazer enquanto tal. É possível que o “horror”, com o qual o cérebro não parece estar acostumado a lidar, por isso o choque, esteja pedindo uma resposta rápida. Nosso arcabouço de experiências não as tem tão rapidamente quanto as queremos ou precisamos ou achamos que precisamos para lidar interna e externamente com certos acontecimentos.
As imagens me provocam isso também. As imagens provocam isso em todas as pessoas, porque parecem ativar a sensação de vivermos o que se mostra, juntamente com os personagens da cena. A imagem nos coloca em cena, nos inclui num espaço e num tempo sem percebermos. É assim com a fotografia (por exemplo, não gosto de trabalhar com as cenas que retratam problemas sociais em branco e preto ou que se apeguem especificamente aos problemas porque parecem paralisar, mais do que o olhar, a ação) e parece ser mais forte com a imagem em movimento. Nesse caso, não precisamos falar a língua de quem vemos ser massacrado, não precisamos entender as legendas das falas ou que escrevem para acompanhar o vídeo. Apenas realizamos a imagem como se estivéssemos experienciando a cena, claro, como quem a vê sem forças para agir.
As imagens parecem ter esse poder e são quase sempre utilizadas para causar o pânico, o medo, às vezes, para defender respostas reacionárias, ainda mais segregacionistas e justificadoras da morte de certos grupos humanos. Para apregoar mais violência, são aliadas a certos discursos diretos e igualmente crus: “onde vai parar tudo isso?”; “o mundo está perdido!”; “a cidade está dominada por bandidos!”; “os cidadãos de bem estão correndo risco e não podem estar em sua casa em paz!”; etc.. Transportam valores e se tornam a locomotiva que nos envia para o mundo que as elites desejam criar, de insatisfação, de angústia, de medo, que alimenta o seu poder e a sua acumulação de riquezas.
Tudo se torna muito mais confuso quando observamos que vivemos num mundo em que as imagens de barbárie estão em toda parte, nos jogos eletrônicos, nos filmes, nas novelas, nos programas de TV... a nossa diversão se dá por meio da violência, que vamos naturalizando, que nos habituando a não pensar, a não criar experiências de reflexão e de ação que possam modificar uma realidade opressora. A violência, do nosso cotidiano, para nos chocar, precisa ser sempre maior, precisa ser sempre contra certas pessoas, precisa ser distante de nós, mas, de alguma forma, se torna violência, por dialogar conosco, com os nossos valores.
Ainda assim, a maneira como é abordada, a maneira como parecem se construir os discursos de violência na nossa sociedade, caro estudante, dá indícios de que se trata de uma forma capaz de nos paralisar diante de atos que se nos apresentam como violentos. Talvez, por um lado, nos façam precisar sempre de alguém que irá nos salvar e crer que nada mais nos cabe, por outro, parecem alimentar o desejo de fazer justiça com as próprias mãos. Mas, como diante do sistema criado, ser justiceiro ou justiceira está proibido, que venha mais polícia, mais controle, mais execuções sumárias, mais tortura... porque o pânico nos incita mais e mais respostas passionais. Diante do medo, não há tempo para pensar, para construir a melhor resposta. Somos dominados e nos enforcamos, nós mesmos, com a corda que nos apresentam como saída para chegar ao outro lado do rio.
Quando nos deparamos com uma situação de violência de estado, causada pela exceção, pela barbárie política, que pede uma ação enquanto povo, uma ação capaz de mudar a convergência de forças, estamos igualmente paralisados, seja porque nos habituamos a buscar individualmente, no mundo do medo, os meios para a própria sobrevivência, seja porque, confusos pelo estarrecimento, não temos e não estamos construindo respostas que não sejam o fortalecimento da repressão do Estado e o desrespeito a direitos como forma de “manter” a vida em “comunidade”.
Alimentados pelo “horror”, somos incitados a apenas enxergar o “horror”. Adestrados pelo e para o pânico, vemos uma situação como essa, nos compadecemos, mas, paralisados pelo medo, não encontramos esperança. Vemos a violência mais evidente e vamos ficando mais distantes, enquanto coletividade, da ação transformadora. Ficamos parados!
Diante de um vídeo que expõe a barbárie no Egito e das conexões que se podem fazer com o universo cultural em que estamos inseridos, uma pergunta como “onde estão os direitos humanos?”, sentido do que você talvez indique ao me pedir algum comentário sobre direitos humanos, parece ser mesmo o mais comum.
Eu mesmo em face de sua demanda me senti, no primeiro momento, sem resposta. Ao parar para um instante de reflexão. Ao me fazer por diversas vezes a mesma pergunta que a sua reação (de negação de direitos humanos) frente à barbárie me impunha, realizei efetivamente a forma de pensar a que estou acostumado a ver se materializar na rua. Pude perceber, finalmente, o direito nascendo na rua.
É verdade, algumas vidas estão sendo gastas, mas esse gasto se dá em luta, por usufruto de um direito que não se tira pelo estado de exceção, o direito de resistência. Para que não seja em vão o gasto de vidas humanas, no entanto, melhor que a resistência gere uma vida nova, sem barbárie, mas seu resultado depende de muitos fatores nem sempre controláveis todos. Não há como prever o que virá. No primeiro momento, o que importa é a resistência. Não resistir é estar já derrotado. É entregar os pontos à barbárie. É dizer que ela venceu e que somos todos seus servos.
Caro estudante, diante do estado de exceção, só existe um direito humano, o direito de resistência. É ele que alimenta a ação de quem está exposto à violência extrema. Se, pelo lado do regime, não há direitos humanos porque o que importa é o poder por si mesmo, sem um critério material e formal de validade, não pessoas e o respeito a elas, ao seu direito de ser, de viver; por outro lado, para as pessoas que lutam, os direitos humanos estão por ser, fundados em um único e importante direito, o de seguir em luta, de seguir resistindo à opressão.
Eu poderia, dizer, tal Hannah Arendt, que, nesse caso concreto, não existem direitos humanos, porque não existe cidadania, isto é, falta o direito de ter direitos, nos termos em que ela emprega face ao regime nazista. Todavia, vendo pessoas em luta, acreditar nisso, seria como esquecer que o direito à resistência não precisa estar codificado, que não precisa ser dito por qualquer regime que seja. Ele existe pelas mãos de quem o realiza, sem espaços para separação entre o seu fazer e o seu pronunciar. Ou seja, não é abstrato, porque se faz na concretude da vida e para tornar concreto um modo de viver que não oprima, que não viole, que não admita a concentração de poder como um fetiche ao qual se apegam os seus detentores. É um direito que se exerce para que se faça um poder que mande obedecendo, como no princípio de poder constituído pelos zapatistas.
O direito humano que se insurge, diante da barbárie, é o direito de resistir e de lutar. Evidente, há outros modos de barbárie, diferentes da violência nua e crua, como a das ações militares no Egito (apoiadas financeiramente e com treinamento pelos Estados Unidos). Por exemplo, vivemos desde junho deste ano a violência desmedida das ações policiais desastrosas de contenção de manifestações políticas no Brasil, repetindo o que se vê em várias partes do mundo. Isso está perto de nós e nem sempre nos damos conta de que são igualmente fruto de um estado de exceção que vai se travestindo de democracia ou de uma democracia que vai assimilando, de forma sutil, os modos de ser de um estado de exceção. Por uma ação consciente de reconstituição dos fatos, de recontação dos acontecimentos, conforme interesses que não são propriamente das maiorias, perdemos a nossa capacidade de indignação e de lutar contra a barbárie do cotidiano. Até naturalizamos e gostamos dessa barbárie, que agora passa na televisão e convida os pobres e os negros a serem seus principais protagonistas, a serem os personagens da nossa diversão cujo cerne é impedir que vivam uma vida em plenitude e possam ser mais. Porque a plenitude dessas pessoas exige a plenitude de todos, o que é incompatível com um regime cuja base é a injustiça que o pereniza. Não que a violência apresentada no vídeo não seja grave. É gravíssima! Mas, demo-nos conta da nossa violência cotidiana também! Resistamos! Mesmo quando parecer que não há direitos, haverá sempre o direito de resistir.
Em estados de exceção, sejam eles claros ou obscuramente constituídos com o aumento das forças policiais, concentração de poder, vigilância extrema, impedimentos à circulação de pessoas e ideias, negação de direitos às maiorias, o que importa como direito humano fundamental é a resistência. É a luta que fará surgir de dentro das condições negadas, a afirmação das gentes, as condições, nos mínimos detalhes, para a vida com justiça.
As revoluções burguesas fizeram isso, tentaram construir a vida em seus mínimos detalhes para superar um regime que era prejudicial aos interesses da maioria. Mas, disso, ficou apenas o discurso da resistência e da emancipação. Era próprio do que se criava manter-se mais discursivamente do que se materializar, de fato, nas vidas das pessoas, no cotidiano das sociedades em que esse discurso de totalização de valores se implantou. A burguesia precisava das palavras para mudar uma realidade até o limite do que lhe era interessante.
Guardadas as diferenças, as ditaduras e os regimes fascistas também precisaram de discursos e de valores para tentarem reconstruir a vida nos mínimos detalhes. Em muitos casos, como fizeram os nazistas e os fascistas, para totalizar os modos de existência em comunidade que interessassem ao seu comando, também falavam em nome de uma luta contra a “barbárie”.
Quando falo em resistência, não estou falando das mudanças ao modo burguês, tampouco ao modo dos estados de exceção que surgiram como alguma forma de reação, como as ditaduras militares na América Latina e o regime nazista na Alemanha. Não é de construir regimes que, em nome da liberdade de alguns, permita outras formas de negação de direitos de que estou falando.
Agora, diante de tantos meios mais sofisticados de dominação e diante de tantos meios sofisticados de comunicar a violência, talvez, estejamos construindo meios também mais sofisticados de resistir, de denunciar a barbárie, de comunicar a nossa luta para o mundo, de buscar solidariedade... e, precisamos ir além, muito além, para não perder o fulgor a resistência. Precisamos resistir, resistir e resistir, como forma de construir um mundo novo, a partir de um direito que é grande em si, que é inimaginavelmente grande e grandioso, o direito de resistência.
Se posso fazer um comentário sobre direitos humanos, como me pede, caro estudante, esse comentário só pode ser sobre o único direito que parece restar àqueles que estão contra o golpe de estado no Egito, o direito de resistência. Esse é o direito humano que nos foge de imediato diante de imagens como essas que comigo compartilha, diante da violência escancarada sem qualquer esboço de vergonha, diante da paralisia da dor e do choque que a violência causa. Mas, tal como a fênix, é dessa mesma dor que surge o direito de fazer justiça social. É dessa mesma dor que renasce a esperança de um mundo novo possível para todos. Treinemos os nossos olhos para enxergá-la, mesmo quando tudo parecer obviamente diferente disso.
Aqui, o óbvio deve ser a esperança! Mas, a esperança não se constrói com espera. Ela é a materialização dialética da ação. Quanto mais lutamos, mas nos nutrimos de esperança. Quanto mais temos esperança, mais lutamos. É por isso, que ela não pode ser apagada de nossa juventude, como fazem as elites do mundo, com seus programas de TV, com suas músicas, com seus livros, com sua educação engenhosamente constituída como "neutra", com os valores que vêm acoplados às coisas do cotidiano que consumimos e desejamos consumir. Tudo isso apaga o brilho que precisamos carregar nos olhos desde sempre e para sempre.
Quem tem medo da esperança? Os oprimidos não podem ter medo da esperança. Não podem incorporar o opressor para serem eles mesmos molas propulsoras da opressão e da difusão de valores que não lhes servem. Por isso digo que precisamos sempre nutrir a vida de esperança e de luta plenos da pergunta "quem tem medo da esperança?"
Obrigado por me apresentar esse vídeo, caro estudante. Ele me emocionou e me nutriu de mais responsabilidade pelo mundo e pelos outros. Daí, a inspiração para a escrita longa e sensível. Espero que tenha paciência de ler e divulgar. Mais que tudo, que alimente os seus olhos de esperança e nunca perca o poder de resistir. Um abraço cheio de vontade do novo!


Humberto Góes

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"Está provado que só é possível filosofar em alemão"


José Humberto de Góes Junior


Quatro textos alemães para a seleção de pós-graduação em direito na UnB... é a mais evidente manifestação de um complexo de inferioridade acadêmica que me faz pensar. Não por uma questão de nacionalismo. Mas, por uma questão de libertação das mentes colonizadas que não encontraram o seu lugar, por consequência, a libertação de todos nós e de todas nós. 
Para isso, é preciso, sem dificuldades, constatar que grande parte de nós sofrermos de um complexo de inferioridade acadêmica gerado a partir de um trauma ou, como podemos dizer, de um sócio-trauma, cuja origem se estabelece no misto entre sonhos e desejos incompreendidos, irrefreáveis e irrealizáveis manifestados pela pulsão erótica de sermos quem não somos e de possuirmos o que não possuímos. Neste caso, a racionalidade do outro, a sua forma de viver, a sua forma de estar no mundo.
Sonhamos com o mundo europeu e norte-americano; sonhamos em fazer parte dele; em ganharmos notoriedade e reconhecimento nesses locais (essa seria a tão esperada aprovação da nossa suposta capacidade intelectual!) enquanto o nosso super-ego nos lembra que somos brasileiros, habitantes do terceiro mundo, incapazes de fazermos parte do mundo idealizado como mais racional e mais prodigioso; do mundo que produz a colonização dos demais mundos e dos demais saberes ao impor a sua verdade. Por outro lado, o não saber conviver com a pecha de colonizados, nessa tentativa de ser o que não somos adotando a verdade do colonizador, tentando ser ele, nos obriga a integrar um processo permanente de re-colonização e de re-submissão por meio de uma atitude que reforça o poder do colonizador sobre as mentes, que dá a ele o poder de dizer como todos e todas somos, como pensamos e como devemos pensar e viver. 
Mas, o colonizador, como as elites diante de policiais que incorporam os pontos de vistas dos dominantes para parecerem menos comandados na sua ação contra os oprimidos e explorados, nunca nos deixarão sermos iguais a eles, porque a nossa suposta inferioridade sustenta o seu poder e mantém a sua capacidade de nos dizer o que somos, de nos nomear e impor as palavras com as quais identificamos o nosso mundo. Ele nos quer apenas como mensageiros de uma palavra que não é nossa e não nos é apropriável jamais. 
Nessa condição, fazemos tudo o que manda o mestre sem olharmos ao nosso redor e percebermos que há conhecimento em tudo, que há saberes complexos jamais observados pelo colonizador de mentes e de espaços, porque os seus olhos estão postos desde um lugar e este lugar não lhes dá a capacidade de enxergar tudo em todos os tempos (por isso, é um olhar também frágil, localizado, limitado e parcial de tudo o que existe). Por isso, no processo de repetição, deixamos de visualizar o que há para além do já visto, o que há para além do não visto; que produzimos saberes e conhecimentos científicos, filosóficos e outras ordens de conhecimentos que a razão europeia não é capaz de entender, de tão simples que ela é. 
Mas que isso, deixamos de entender por que fazemos pós-graduação no Brasil, por que gastamos algum dinheiro público em bolsas de pesquisa, por que temos a universidade. É para ser espelho do próspero?
Se não acreditamos que podemos produzir conhecimentos, por que estamos aqui? Por que temos a nossa própria universidade? O que estão nos ensinando? O que estamos ensinando? 
Certamente, estamos repetindo mais e produzindo menos.
Mas, olhando um pouco para a realidade analisada, eu me sinto impelido a lançar também outra tese. É a tese da vaidade!
Afinal, o direito na UnB tem professores bem conhecidos no Brasil todo por suas ideias genais e singulares; tem professores conhecidos no Brasil todo por suas ideias europeias. Tem professores que produzem muitos livros... 
Posso estar errado, mas, talvez, para evitar valorizar os colegas de casa, fortalecer correntes teóricas internas com as quais alguns não concordam; para também evitar colocar em mesa as diferenças de pensamentos localmente produzidos, os nossos professores preferem buscar livros de um outro mundo, de onde bebem alguns que participam de uma disputa acirrada por um poder volátil que só eles enxergam. Essa também é uma forma mais sutil de justificar e enaltecer as ideias que certas pessoas tentam propagar, ideias colonizadas, sem dar a chance para que pensamentos descolonizados se firmem ou se reafirmem, mostrando que a única saída é deixar de ser repetidor ou banir os repetidores, ainda que inteligentes repetidores.

Após alguns debates suscitados por meios eletrônicos em torno dessas ideias, surgem duas teses para defender a escolha dos livros alemães. A primeira delas afirma que a indicação dos textos se deu por mera coincidência. A segunda, aliada à primeira sempre para justificar a boa-fé dos professores que indicaram os textos, anuncia a desimportância da nacionalidade ao se falar em pensamento crítico e em estudos do direito.
Quanto à coincidência, é preciso compreendê-la. Essa co-incidência de pensamento, ou seja, essa convergência de pensamentos, pode revelar a manifestação da incidência de um inconsciente dominado ou devidamente colonizado. Pode manifestar, por exemplo, a uniformidade ou a tentativa de uniformidade de pensamento; a dificuldade de enxergar para além do que se pode ver; pode manifestar a falta, mais que tudo. Além disso, quando não devidamente observadas, as boas intenções, opostas para defenderem o argumento de que não foi proposital a convergência para certos tipos de pensamento, podem se voltar contra si mesmas, podem se voltar também contra o propósito crítico de que elas porventura queiram se munir; de forma simples, podem fazer valer o provérbio de que "de boas intenções o inferno está cheio".
No que concerne à nacionalidade, também não se fala em adotar textos apenas porque são de nacionalidade “A” ou “B”. A nacionalidade dos autores dos textos, a localização deles e de seus escritos, podem não significar nada diante do pensamento colonizado. Na verdade, poderia citar uma enormidade de pessoas nacionais de quaisquer partes que esboçam conservadorismo e capacidade de repetição do pensamento alheio tido como mais importante. O problema está em deixar de olhar para o que fazemos, para o que produzimos, para a sua qualidade; em abdicarmos um pensamento próprio em nome de um pensamento "melhor" que o nosso.
A falta de livros dentro de um contexto brasileiro e latino-americano, em verdade, fala mais do que podemos imaginar. Indica o que há nas nossas estantes e o que falta nelas. Mas também nos faz pensar na razão de faltarem outras leituras. Por isso, não considero que seja uma "divisão bizarra" a colocação de um pensamento do sul diante de um pensamento do norte hegemônico, que já demonstrou quase todos dos efeitos negativos que as suas verdades são capazes de criar.
Sem prender o fascismo ou o menos grave chauvinismo, penso que é preciso olhar mais para o que fazemos e ver o quanto disso fala mais de nós do que as teorias dos outros são capazes de falar de nós. Ainda mais quando vemos que a Europa, tida como a perfeição a ser alcançada, história a ser copiada, futuro de todos os países que se pretendem “ricos” e “verdadeiramente democráticos”, com todas as suas teorias políticas, econômicas, ambientais..., tomba!
E corre maior risco de cair ao deixar à mostra as suas vísceras, ao evidenciar em suas democracias exortadas a base em que está assentada, a legalização da exceção e da violência como meio de realizar os seus processos de socialização. Seja a violência das colonizações, das guerras, seja a violência de uma suposta racionalidade democrática que se levanta para a perseguição dos estrangeiros ou dos seus cidadãos que protestam contra um sistema que os exclui, que os mutila, que os jogam a rua, mesmo em tempos de frio e neve, como agora.
Nos países da democracia e dos direitos humanos, só pra dar um exemplo de algumas das suas criações teóricas mais exportadas para todo o mundo com tanta verdade e inquestionabilidade, o que se vê é uma intensa criminalização dos movimentos sociais sem a existência de mecanismos coletivos de defesa de direitos que não o protesto e a desobediência civil.
Pensar no que lemos e no que impomos como importantes em processos de seleção para programas de pós-graduação críticos em direito como o que temos na UnB significa mais do podemos imaginar. É chamar atenção para o olhar e para como o colocamos no mundo, mas, acima de tudo, é chamar atenção para a complexidade de pensamentos que falam de uma realidade negada da história, como a América Latina e o Brasil, com tantos novos ensinamentos e com tantas teorias que os estrangeiros vêm construir aqui, enquanto nós, com o nosso malinchismo, sequer podemos enxergar que existem.
Por exemplo, em alguns dos argumentos contrários ao que digo, afirma-se que o Brasil possui a Tropicália, o Manguebeat, o Cinema Pernambucano hoje, o Movimento Armorial, a Escola de Direito do Recife (vou acrescentar o Cinema Novo e a Semana de Arte Moderna que inspirou o sentido dos anteriores e deixar em aberto as possibilidades, afinal, criamos muito em todas as partes)... efetivamente, temos tudo isso.
Muitos dos movimentos artístico-culturais indicados surgem no Nordeste brasileiro, tanto quanto surgem por lá muitas teorias, muitos conhecimentos e saberes de outros campos (Paulo Freire, as teorias sobre pesquisa-ação, algumas concepções de direitos humanos mais complexas). Mas, se o Brasil se tem pouco em suas bibliotecas, ele tem menos o Nordeste. Nem nas escolas nordestinas nem nas faculdades nordestinas, conhecemos os pensadores brasileiros, como também não conhecemos os pensadores de lá, a literatura de lá, a música do povo de lá. No caso de Sergipe, temos Tobias Barreto, Sílvio Romero, Gumercindo Bessa, Olímpio Campos, que foram muito responsáveis por erigir a Faculdade de Direito do Recife como uma escola de pensamento jurídico. No campo da educação e, para alguns da sociologia, temos Manoel Bonfim, um sergipano que estuda a América Latina (abandona a medicina para construir teorias sobre uma educação mais apropriada culturalmente a nossa realidade e é também um dos poucos pensadores do início do século 20 que atacam teorias de embranquecimento da população). Infelizmente, só o conheci muito tarde quando, na Argentina, me perguntaram se eu, como sergipano, teria algo dele para emprestar, e, mais profundamente na UnB, quando me inscrevi em uma disciplina no programa de pós-graduação em sociologia, que, em geral, também não lê os brasileiros e os latino-americanos. Foi aí também que eu descobri mais de Tobias Barreto, Sílvio Romero, Gumercindo Bessa... embora não o suficiente.
Fechados os parêntesis, sobre os movimentos que foram citados como contra-argumento, seria interessante observar suas repercussões no nosso modo de fazer de ciência. Afinal, em sua grande maioria, são de natureza antropofágica e criativamente singulares, ou seja, questionam o culturalmente imposto e exortam os nossos artistas a produzirem a música e a literatura brasileiras. Diga-se de passagem, não fizeram mal. Hoje, ninguém diz que estavam errados em criar algo nosso, em criticar o imposto. Com isso, transformaram a música brasileira na mais admirada do mundo.
É disso que falo quando incito a olhar mais para dentro de nós, para a América Latina. Falo em criar algo autêntico que fale de nós, que não precise manter colonizados também do ponto de vista científico, tanto quanto fizemos na música, na literatura, as pintura e em outras artes. Por exemplo, admitindo uma possibilidade concreta de pesquisa especificamente quanto à Tropicália, como seria interessante pensar e entender os seus efeitos no direito brasileiro e na forma como pensamos direitos humanos.
Por fim, estou de acordo que não tenha havido má-fé na escolha dos livros para a seleção. Mas também considero que falta ler para além do que se lê. Se não lemos, não temos outros autores e outros pensamentos para indicar. Saber que esses movimentos existem, que outras ideias existem, que pensamentos brasileiros e latino-americanos existem, não é o suficiente para que, localizados na estante dos “exóticos” dos nossos compartimentos cognitivo-cerebrais, saiam para co-habitar as nossas mesas de cabeceira junto com todos os outros.