José
Humberto de Góes Junior
Quatro textos
alemães para a seleção de pós-graduação em direito na UnB... é a mais evidente
manifestação de um complexo de inferioridade acadêmica que me faz
pensar. Não por uma questão de nacionalismo. Mas, por uma questão de
libertação das mentes colonizadas que não encontraram o seu lugar, por
consequência, a libertação de todos nós e de todas nós.
Para isso, é
preciso, sem dificuldades, constatar que grande parte de nós sofrermos de um
complexo de inferioridade acadêmica gerado a partir de um trauma ou, como
podemos dizer, de um sócio-trauma, cuja origem se estabelece no misto entre
sonhos e desejos incompreendidos, irrefreáveis e irrealizáveis manifestados
pela pulsão erótica de sermos quem não somos e de possuirmos o que não
possuímos. Neste caso, a racionalidade do outro, a sua forma de viver, a sua
forma de estar no mundo.
Sonhamos com o
mundo europeu e norte-americano; sonhamos em fazer parte dele; em ganharmos
notoriedade e reconhecimento nesses locais (essa seria a tão esperada aprovação
da nossa suposta capacidade intelectual!) enquanto o nosso super-ego nos lembra
que somos brasileiros, habitantes do terceiro mundo, incapazes de fazermos
parte do mundo idealizado como mais racional e mais prodigioso; do mundo que
produz a colonização dos demais mundos e dos demais saberes ao impor a sua
verdade. Por outro lado, o não saber conviver com a pecha de colonizados,
nessa tentativa de ser o que não somos adotando a verdade do colonizador,
tentando ser ele, nos obriga a integrar um processo permanente de
re-colonização e de re-submissão por meio de uma atitude que reforça o poder do
colonizador sobre as mentes, que dá a ele o poder de dizer como todos e
todas somos, como pensamos e como devemos pensar e viver.
Mas, o
colonizador, como as elites diante de policiais que incorporam os pontos de
vistas dos dominantes para parecerem menos comandados na sua ação contra os
oprimidos e explorados, nunca nos deixarão sermos iguais a eles, porque a nossa
suposta inferioridade sustenta o seu poder e mantém a sua capacidade de nos
dizer o que somos, de nos nomear e impor as palavras com as quais identificamos
o nosso mundo. Ele nos quer apenas como mensageiros de uma palavra que não é
nossa e não nos é apropriável jamais.
Nessa condição,
fazemos tudo o que manda o mestre sem olharmos ao nosso redor e percebermos que
há conhecimento em tudo, que há saberes complexos jamais observados pelo
colonizador de mentes e de espaços, porque os seus olhos estão postos desde um
lugar e este lugar não lhes dá a capacidade de enxergar tudo em todos os tempos
(por isso, é um olhar também frágil, localizado, limitado e parcial de tudo o
que existe). Por isso, no processo de repetição, deixamos de visualizar o
que há para além do já visto, o que há para além do não visto; que produzimos
saberes e conhecimentos científicos, filosóficos e outras ordens de
conhecimentos que a razão europeia não é capaz de entender, de tão simples que ela
é.
Mas que isso,
deixamos de entender por que fazemos pós-graduação no Brasil, por que gastamos
algum dinheiro público em bolsas de pesquisa, por que temos a universidade. É
para ser espelho do próspero?
Se não
acreditamos que podemos produzir conhecimentos, por que estamos aqui? Por que
temos a nossa própria universidade? O que estão nos ensinando? O que estamos
ensinando?
Certamente,
estamos repetindo mais e produzindo menos.
Mas, olhando um
pouco para a realidade analisada, eu me sinto impelido a lançar também outra
tese. É a tese da vaidade!
Afinal, o
direito na UnB tem professores bem conhecidos no Brasil todo por suas ideias
genais e singulares; tem professores conhecidos no Brasil todo por suas ideias
europeias. Tem professores que produzem muitos livros...
Posso estar
errado, mas, talvez, para evitar valorizar os colegas de casa, fortalecer
correntes teóricas internas com as quais alguns não concordam; para também
evitar colocar em mesa as diferenças de pensamentos localmente produzidos, os
nossos professores preferem buscar livros de um outro mundo, de onde bebem
alguns que participam de uma disputa acirrada por um poder volátil que só eles
enxergam. Essa também é uma forma mais sutil de justificar e enaltecer as
ideias que certas pessoas tentam propagar, ideias colonizadas, sem dar a chance
para que pensamentos descolonizados se firmem ou se reafirmem, mostrando que a
única saída é deixar de ser repetidor ou banir os repetidores, ainda que
inteligentes repetidores.
Após alguns debates
suscitados por meios eletrônicos em torno dessas ideias, surgem duas teses para
defender a escolha dos livros alemães. A primeira delas afirma que a indicação
dos textos se deu por mera coincidência. A segunda, aliada à primeira sempre
para justificar a boa-fé dos professores que indicaram os textos, anuncia a
desimportância da nacionalidade ao se falar em pensamento crítico e em estudos
do direito.
Quanto
à coincidência, é preciso compreendê-la. Essa co-incidência de pensamento, ou
seja, essa convergência de pensamentos, pode revelar a manifestação da
incidência de um inconsciente dominado ou devidamente colonizado. Pode
manifestar, por exemplo, a uniformidade ou a tentativa de uniformidade de
pensamento; a dificuldade de enxergar para além do que se pode ver; pode
manifestar a falta, mais que tudo. Além disso, quando não devidamente
observadas, as boas intenções, opostas para defenderem o argumento de que não
foi proposital a convergência para certos tipos de pensamento, podem se voltar
contra si mesmas, podem se voltar também contra o propósito crítico de que elas
porventura queiram se munir; de forma simples, podem fazer valer o provérbio de
que "de boas intenções o inferno está cheio".
No
que concerne à nacionalidade, também não se fala em adotar textos apenas porque
são de nacionalidade “A” ou “B”. A nacionalidade dos autores dos textos, a localização
deles e de seus escritos, podem não significar nada diante
do pensamento colonizado. Na verdade, poderia citar uma enormidade de pessoas
nacionais de quaisquer partes que esboçam conservadorismo e capacidade de
repetição do pensamento alheio tido como mais importante. O problema está em
deixar de olhar para o que fazemos, para o que produzimos, para a sua
qualidade; em abdicarmos um pensamento próprio em nome de um pensamento
"melhor" que o nosso.
A
falta de livros dentro de um contexto brasileiro e latino-americano, em
verdade, fala mais do que podemos imaginar. Indica o que há nas nossas estantes
e o que falta nelas. Mas também nos faz pensar na razão de faltarem outras
leituras. Por isso, não considero que seja uma "divisão bizarra" a
colocação de um pensamento do sul diante de um pensamento do norte hegemônico,
que já demonstrou quase todos dos efeitos negativos que as suas verdades são
capazes de criar.
Sem
prender o fascismo ou o menos grave chauvinismo, penso que é preciso olhar mais
para o que fazemos e ver o quanto disso fala mais de nós do que as teorias dos
outros são capazes de falar de nós. Ainda mais quando vemos que a Europa, tida
como a perfeição a ser alcançada, história a ser copiada, futuro de todos os
países que se pretendem “ricos” e “verdadeiramente democráticos”, com todas as
suas teorias políticas, econômicas, ambientais..., tomba!
E
corre maior risco de cair ao deixar à mostra as suas vísceras, ao evidenciar em
suas democracias exortadas a base em que está assentada, a legalização da
exceção e da violência como meio de realizar os seus processos de socialização.
Seja a violência das colonizações, das guerras, seja a violência de uma suposta
racionalidade democrática que se levanta para a perseguição dos estrangeiros ou
dos seus cidadãos que protestam contra um sistema que os exclui, que os mutila,
que os jogam a rua, mesmo em tempos de frio e neve, como agora.
Nos
países da democracia e dos direitos humanos, só pra dar um exemplo de algumas
das suas criações teóricas mais exportadas para todo o mundo com tanta verdade
e inquestionabilidade, o que se vê é uma intensa criminalização dos movimentos
sociais sem a existência de mecanismos coletivos de defesa de direitos que não
o protesto e a desobediência civil.
Pensar
no que lemos e no que impomos como importantes em processos de seleção para
programas de pós-graduação críticos em direito como o que temos na UnB significa
mais do podemos imaginar. É chamar atenção para o olhar e para como o colocamos
no mundo, mas, acima de tudo, é chamar atenção para a complexidade de
pensamentos que falam de uma realidade negada da história, como a América
Latina e o Brasil, com tantos novos ensinamentos e com tantas teorias que os
estrangeiros vêm construir aqui, enquanto nós, com o nosso malinchismo, sequer
podemos enxergar que existem.
Por exemplo, em alguns
dos argumentos contrários ao que digo, afirma-se que o Brasil possui a Tropicália, o Manguebeat, o Cinema Pernambucano
hoje, o Movimento Armorial, a Escola de Direito do Recife (vou
acrescentar o Cinema Novo e a Semana de Arte Moderna que inspirou o sentido dos
anteriores e deixar em aberto as possibilidades, afinal, criamos muito em todas
as partes)... efetivamente, temos tudo isso.
Muitos
dos movimentos artístico-culturais indicados surgem no Nordeste brasileiro,
tanto quanto surgem por lá muitas teorias, muitos conhecimentos e saberes de
outros campos (Paulo Freire, as teorias sobre pesquisa-ação, algumas concepções
de direitos humanos mais complexas). Mas, se o Brasil se tem pouco em suas
bibliotecas, ele tem menos o Nordeste. Nem nas escolas nordestinas nem nas
faculdades nordestinas, conhecemos os pensadores brasileiros, como também não
conhecemos os pensadores de lá, a literatura de lá, a música do povo de lá. No
caso de Sergipe, temos Tobias Barreto, Sílvio Romero, Gumercindo
Bessa, Olímpio Campos, que foram muito responsáveis por erigir a Faculdade de
Direito do Recife como uma escola de pensamento jurídico. No campo da educação
e, para alguns da sociologia, temos Manoel Bonfim, um sergipano que estuda a
América Latina (abandona a medicina para construir teorias sobre uma educação
mais apropriada culturalmente a nossa realidade e é também um dos poucos
pensadores do início do século 20 que atacam teorias de embranquecimento da
população). Infelizmente, só o conheci muito tarde quando, na Argentina, me
perguntaram se eu, como sergipano, teria algo dele para emprestar, e, mais
profundamente na UnB, quando me inscrevi em uma disciplina no programa de pós-graduação
em sociologia, que, em geral, também não lê os brasileiros e os
latino-americanos. Foi aí também que eu descobri mais de Tobias Barreto, Sílvio
Romero, Gumercindo Bessa... embora não o suficiente.
Fechados os parêntesis,
sobre os movimentos que foram citados como contra-argumento, seria interessante
observar suas repercussões no nosso modo de fazer de ciência. Afinal, em sua
grande maioria, são de natureza antropofágica e criativamente singulares, ou
seja, questionam o culturalmente imposto e exortam os nossos artistas a
produzirem a música e a literatura brasileiras. Diga-se de passagem, não
fizeram mal. Hoje, ninguém diz que estavam errados em criar algo nosso, em
criticar o imposto. Com isso, transformaram a música brasileira na mais
admirada do mundo.
É disso que falo quando
incito a olhar mais para dentro de nós, para a América Latina. Falo em criar
algo autêntico que fale de nós, que não precise manter colonizados também do
ponto de vista científico, tanto quanto fizemos na música, na literatura, as
pintura e em outras artes. Por exemplo, admitindo uma possibilidade concreta de
pesquisa especificamente quanto à Tropicália, como seria interessante pensar e
entender os seus efeitos no direito brasileiro e na forma como pensamos
direitos humanos.
Por fim, estou de
acordo que não tenha havido má-fé na escolha dos livros para a seleção. Mas
também considero que falta ler para além do que se lê. Se não lemos, não temos
outros autores e outros pensamentos para indicar. Saber que esses movimentos
existem, que outras ideias existem, que pensamentos brasileiros e
latino-americanos existem, não é o suficiente para que, localizados na estante
dos “exóticos” dos nossos compartimentos cognitivo-cerebrais, saiam para
co-habitar as nossas mesas de cabeceira junto com todos os outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário