domingo, 18 de janeiro de 2009

08 de julho - a experiência de um acidente e outra vivência

Durante muito tempo relutei em escrever a experiência de ter passado por um acidente de carro no mesmo dia em que realizava o sonho do mestrado. Mas, passados meses desse momento e já superados os traumas que poderiam ter resultado daquele instante[imagino], jamais poderia deixar de absorver o aprendizado que uma vivência como essa pode ensejar.
Pensei muito antes de escrever qualquer coisa. Se, por uma lado, acreditava que precisava parar e pensar em todo o ocorrido, por outro lado, supunha que expor conclusões, certamente parciais [ninguém é capaz de compreender completamente uma experiência], seria uma bobagem, uma ridícula expressão típica de tempos tecnologia da informação, através de que se torna público ou que nem sempre precisaria sê-lo. Em outras palavras, temia estar absorto de um novo modo de vida capaz de me incitar a crer na necessidade de se mostrar, de transformar vivências pessoais cotidianas em um grande espetáculo para o mundo.
Como este não é um blog conhecido e divulgado; como sua utilização se dá, por minha parte, como um local de registro de experiências, resolvi que, em algum momento, relataria o acidente do dia 08 de julho de 2008, próximo das 8h da noite.
Antes de tudo, para que não gere qualquer tipo de especulação, o fato de colocar o acontecimento com reprodução do número oito não tem intenção em manifestar ou dar margem para coincidências numerárias ou cálculos numerológicos. É simplesmente um dado que poderia ser expressado de outras formas, por exemplo, entre 7h30min. e 8h da noite, ou 19h30min. e 20h. Quis expressá-lo relacionando data, ano e horário. Foi uma escolha linguística, tanto quanto ter saído de João Pessoa, após um dia inteiro de expectativas, cansaço e de muito dispêndio pessoal.
Mas, eu queria participar de um momento importante como a comemoração dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente em Brasília no dia 10 de julho. Para tanto, precisava estar em Aracaju na manhã do dia 09 e pegar o avião rumo à capital federal na tarde deste mesmo dia. Optei por dirigir à noite e chovendo. É certo que vinha acompanhado de Greg e Margaux (um casal de amigos franceses que viajara comigo pra João Pessoa), tinha pedido ajuda de Robson Anselmo com a condução do carro durante a noite e tinha convicção de que não precisaria correr, de que podia chegar em Aracaju no meio da manhã da quarta-feira.
Margaux e Robson, mais prudentes do que eu, diziam do seu desconforto em viajar à noite com chuva, pediam pra dormirmos em João Pessoa com o compromisso de sairmos às 4h da manhã. Mas, eu resolvi arriscar. Não sem cuidados, mas resolvi arriscar.
Como sabia que o casal francês poderia querer viajar como fizeram na ida pra João Pessoa, revezando-se no banco de trás para dormir, pedi que colocasse o cinto de segurança e que não tirassem em momento algum. Isso foi crucial para que nada acontecesse durante o acidente.
Mais ou menos uma hora após sairmos de João Pessoa, após uma chuva que nos impedia de enxergar o caminho que tínhamos para percorrer, enquanto a fila de carros em que nos encontrávamos se dissipava, resolvi sair da média entre 40km/h e 60km/h para 80km/h. Minha idéia era impedir a passagem de uma carreta que dava jogo de luz e acelerava em minha direção. Supunha que se começasse a chuva novamente teria que ficar atrás de um “muro da insegurança”.
De repente, olho pelo retrovisor e vejo um carro “costurando” entre os demais. Em alta velocidade, ultrapassava quem podia. Apesar de me alertar quanto a sua passagem, levei um susto com quando cruzou na minha frente e saí um pouco para o acostamento. Tentei voltar sem reduzir a velocidade e o carro, que tinha pneus novos, roçou o lado do pneu dianteiro direito no desnível da pista para o acostamento, jogou o fundo,atravessou a pista, girou no ar e caiu numa vala de um pouco mais de 2m de altura. Era a construção da duplicação da BR 101 entre Recife e João Pessoa.
Por sorte, ainda tive presença de espírito para, quando percebi que o carro havia saído de meu controle, não tentar frear ou segurar o volante. O risco de ficar rodando na pista seria grande e, como vinham carros atrás e adiante, poderia ser o fim de todas as pessoas que estavam comigo e meu também.
Por questão de milésimos de segundos, mantive a calma, fiz a opção que parecia mais plausível e esperei. Não havia mais o que fazer. De olhos abertos, vi os faróis dos carros lateralmente entrando no carro, ouvi um abafado “hugh” de Robson e alguns sons emitidos por Margaux. Minha esperança era de que todos ficassem bem ao final de tudo.
Ao paráramos, ainda com uma dor no pescoço, só queria mesmo era saber se todos estavam bem, sem qualquer dor pelo corpo. Ainda sem saber muito bem o que tinha acontecido, mas mantendo a calma, pedi desculpas aos companheiros e à companheira e agradeci. Não sabia bem a quem ou ao quê, até porque passava por um momento de discutir comigo mesmo minha crença em Deus, mas agradeci o fato de estar vivo e de poder continuar a experiência de ter experiências [a vida].
Liguei para minha irmã, Fabíola, que ia com um grupo em uma van fretada para trazer alguns amigos para a defesa. Passavam por Recife, quando minha irmã pediu que parassem para aguardar que nós chamássemos a Polícia Rodoviária Federal e um guincho que retirasse o carro daquele local.
Minha alegria pela aprovação no mestrado, fazia de mim uma pessoa anestesiada e tranquila. Pronta para resolver todos os problemas. Só não sabia como reagiria ao encontro com minha mãe, integrante do grupo que ia no outro carro e que tinha lutado muito para conquistar aquele carro.
E foi difícil realmente. Quando avistei minha mãe, só pensava em pedir desculpas, nada mais. Todas as falas de culpabilização foram expressadas por todas as pessoas, e eu só tinha como possibilidade o pedido de desculpas.
Não era tempo de conversar sobre os fatos, eu mesmo queria absorver as experiências do momento, mas não conseguia. Era tudo muito recente e ainda estava no calor da emoção.
Somente dias depois consegui chorar e expulsar os sentimentos que acumulava na cabeça. Durante semanas, tive a impressão de que o dia 08 de julho não tinha acabado. Três meses depois, não lembro exatamente porque, mas, talvez, porque tenha conseguido refletir.
Hoje, sei que, na vida, sempre corremos riscos e que caminhar é correr riscos. Mas, por outro lado, não posso ser negligente, não posso expor a vida de outras pessoas; preciso reconhecer ainda mais os meus limites para não querer fazer tudo ao mesmo tempo. A paciência precisa ser minha palavra de ordem, de modo que não é apenas que a ação não precisa estar aliada ao resultado que gostaria de alcançar e que devemos fazer tudo o que pudermos para transformar o mundo. Mas, minha ansiedade por transformações no mundo não pode fazer de mim a única pessoa apta a realizar intervenções transformadoras, que não posso cumular responsabilidades sobre minha cabeça, que não sou invencível, que posso padecer.
Por outro lado, aprendi que a vida é curta, que não posso deixar de viver sentimentos importantes em nome, exclusivamente, da ação social.
Por isso, fiz a escolha, após a realização de alguns trabalhos, de passar por uma intervenção cirúrgica para superar uma miopia de 4,25.
Somente após dez dias começo a enxergar de novo. Tive um atraso na cicatrização.
Foram dias sem sair de casa, sem poder realizar os trabalhos que me dispus a realizar, sem poder aproveitar o restante dos dias que as férias de professor me permitiriam aproveitar. Fora a preocupação de alguns amigos e de minha mãe, foi minha companhia a música e os pensamentos. Mais uma vez, exercitei a paciência.
Na verdade, não foi apenas a paciência que exercitei. O medo de não voltar a enxergar, minha dúvida quanto à existência de Deus, o temor de que o meu ateísmo fosse castigado com a cegueira, também me povoaram.
Imaginava como seria viver agora sem a fotografia, sem poder escrever, sem poder ler... mas, ambiguamente, pensava em que ficar sem enxergar completamente podia me ensinar. Era o momento em que a viagem que me ensinou tanto e que foi motivo para a existência desse blog fazia seu aniversário de um ano. Lembrava das pessoas que conheci, das experiências que vivi.
Todo o tempo, revivia e revia as paisagens, as pessoas, os horizontes e as esperanças que tive um ano atrás quando iniciei o caminho pela América Latina.
Hoje, penso que, se não tivesse tido esse tempo, não poderia ter exercitado a lembrança como deveria. Não poderia ter exercitado outros sentidos, algo que tanto prego para pessoas que desejam enveredar pela educação popular em direitos humanos e na luta pelos direitos da criança e do adolescente.
Agora, volto a enxergar [não completamente ainda], mas posso registrar a experiência e a reflexão ainda inacabada de instantes que fazem parte do ser em que estou me transformando.