domingo, 12 de dezembro de 2010

Pode a universidade não ser amancipatória?

Em meio a esta pergunta, muitas pensadoras e muitos pensadores têm construído as bases teóricas e práticas para tornar a universidade um espaço autêntico de emancipação.

Sobre o tema, cuja abordagem lança novas perguntas e desafios teóricos para se pensar a educação superior e suas condições de libertação, indica-se o acesso a:

http://odireitoachadonarua.blogspot.com/2010/12/pode-universidade-nao-ser-emancipatoria.html

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

DÚVIDA INSANÁVEL: COMO DEVE SER PARA UM MINISTRO DO STF CONVIVER COM O PODER DE MUDAR A HISTÓRIA E A CULPA DE NÃO TÊ-LO FEITO?

José Humberto de Góes Junior

Esse ano e num futuro bem próximo, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentará temas muito importantes para o Brasil. Na configuração da justiça brasileira implantada pela Emenda Constitucional nº 45 e no estágio atual da luta por direitos e por justiça, que faz resvalar nas Cortes problemas sociais historicamente negados às instituições públicas brasileiras, serão temas que exigirão do Judiciário, pela primeira vez, tomar assento, como parte, nas discussões sobre os problemas nacionais; assumir sua responsabilidade ética e constitucional no processo de superação das desigualdades e das opressões, ocasionadas pelo patrimonialismo, pelo patriarcalismo, por conseguinte, pela corrupção endêmica, que ainda povoa nossa realidade nacional.
Em outras palavras, terá o STF a chance de, percebendo-se co-responsável pelos problemas brasileiros, bem como, seus Ministros e Ministras, devolvendo-se a si mesmos e a si mesmas a condição de cidadãos ativos e cidadãs ativas, realizar ou de contribuir decisivamente para a realização do art. 3º da Constituição Federal de 1988. Poderão ser co-partícipes do processo de promoção do desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza e das formas de marginalização, de discriminação e preconceito; poderão, acima de tudo, contribuir para a construção do bem de todas as pessoas e da justiça social.
Mais de 20 anos após iniciada a luta do povo brasileiro pela democratização do país e pela configuração de um Estado que se voltasse à realização de direitos dos oprimidos e explorados, grandes temas silenciados na história pelo autoritarismo começam a ser enfrentados.
O passado precisa mesmo ser revolvido para construirmos o futuro com justiça.
Iniciamos a nossa terapia enquanto povo. Foi longo o caminho, mas estamos reconhecendo as nossas angústias sociais, os nossos traumas. Em alguns casos, já demos respostas satisfatórias no processo de construção do futuro (demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol); em outros, devido aos medos que ainda pairam sobre nós, não fomos fortes o suficiente para enfrentá-los. É o que ocorreu, por exemplo, com o julgamento da constitucionalidade da Lei de Anistia, evitando que houvesse um passo adiante na superação da tortura e da violência como elementos centrais da ação estatal em face do povo brasileiro.
Outros temas, como as cotas raciais nas universidades, a intervenção terapêutica em mulheres portadoras de fetos anencéfalos, a união homoafetiva, a transposição do Rio São Francisco, estão próximos de serem enfrentados.
Hoje, dia 22 de setembro de 2010, mais uma do que um julgamento técnico, porque este revela as posturas e as compreensões de mundo que carregamos conosco, o STF tem a possibilidade de escolher seu lado. Assumir sua responsabilidade ética, ao lado do povo, na construção efetiva da democracia ou ficar contra o povo devolvendo para o palco das eleições pessoas que reconhecidamente sempre atuaram em desfavor do Brasil.
É exatamente a escolha de lado o que representa o julgamento de Joaquim Roriz. É a escolha entre estar “deitado em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo” (ou, no máximo, manter-se à janela, em dia de parada, enquanto passa o grito dos excluídos) e pegar, junto com o povo, as ferramentas, os blocos e o cimento para começar a construir uma sólida casa para o abrigo da democracia.
Num campo mais estrito, o STF terá que escolher entre negar o passado, fazendo surgir a alvura da “ficha” de Roriz e de muitos outros que concorrem no pleito de 2010, e afirmar que Roriz e outras dezenas de candidatos e candidatas não atendem aos critérios de moralidade que mais de 2.000.000 (dois milhões) de pessoas apresentaram para votação no Congresso Nacional, atendendo todos os critérios constitucionais de proposição legislativa.
O certo é que, se perder a chance de decidir em favor do povo, como perdeu no julgamento da Lei de Anistia, o STF e seus Ministros e Ministras estarão, mais uma vez, aditando elementos para o seu próprio julgamento na história desse país.
Além disso, aqueles e aquelas que votarem pela ética de Roriz e dos outros que serão julgados com ele hoje terão que conviver com a responsabilidade de terem optado pela não-democratização do Brasil e, pior, de terem votado em favor corrupção, do desrespeito e da violência, contra o povo brasileiro. Afinal, não deve ser fácil saber que teve o poder e a chance para mudar a história de um país inteiro e optou por não tomar a decisão necessária para tanto.
Quem pensem nisso os Senhores Ministros e as Senhoras Ministras antes de dizerem não ao povo brasileiro!

terça-feira, 14 de setembro de 2010

EDITORIAL DE DOMINGO: É PRECISO PARAR PARA PENSAR

José Humberto de Góes Junior

O editorial do Correio Braziliense deste domingo, dia 12 de setembro de 2010, ao abordar a greve dos servidores técnico-administrativos da Universidade de Brasília, faz uma relação direta do movimento reivindicativo com a possibilidade e mesmo com a emergência concreta de prejuízos à sociedade, sobretudo, quanto à continuidade de pesquisas desenvolvidas pela Instituição em áreas importantes do conhecimento científico.

É certo, como afirma o texto referido, que a UnB é uma das mais importantes instituições superiores de educação (o que deve sempre incluir a atividade de pesquisa) do Brasil e não pode ficar parada. Suas atividades de excelência, por isso mesmo, sua capacidade de irradiar conhecimentos sobre outras regiões deste país e do mundo, não podem ser comprometidas.

Uma Universidade se faz da ação empenhada de sua comunidade, professores, estudantes e técnicos. São estes os responsáveis pela grandeza dos trabalhos que a Universidade Pública brasileira ainda, apesar das dificuldades, da omissão de governos, dos baixos orçamentos, em muitos casos, consegue manter em favor da sociedade. Se a UnB é grande é porque sua comunidade a faz grande. É o compromisso de seus docentes, técnicos e estudantes que a torna importante polo nacional, internacional e local de conhecimento.

Ao esquivar-se, deliberadamente, de discutir o mérito da greve dos técnico-administrativos, ou seja, o corte determinado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, MPOG, do Governo Federal, de 26,05%, mais de ¼, dos salários dos servidores, o Correio deixou de pontuar um dos temas mais importantes para a garantia da qualidade da educação da UnB e da Universidade Pública brasileira.

Normalmente, às greves de servidores públicos são opostos discursos de prejuízos sociais e interrupção de serviços à comunidade. De verdade, estes existem, mas não são maiores do que aqueles causados pela omissão do Poder Público, pelo desprestígio dos governos em relação à educação, por funcionários mal-remunerados, prestando serviços precários à população. Além disso, em tempos de aumentos salariais escassos, reduzidos a margens percentuais abaixo de 10%, uma perda de 26,05% é extremamente significativa. Inegavelmente, pode comprometer a sobrevivência de famílias inteiras. Colocando-se no lugar das pessoas que sofrem um dano dessa magnitude, é possível entender que há razão para a manifestação dos técnicos da UnB através da greve. Qualquer trabalhador faria o mesmo para evitar que a sua sobrevivência e que a sua condição de dignidade na relação laboral fosse prejudicada.
Neste caso, culpar os servidores pelas dificuldades que a UnB acaso enfrenta ou pelos prejuízos em tese que a sociedade pode estar sofrendo, seria, no mínimo, transferir a responsabilidade do Governo Federal para aqueles que, com o seu trabalho, ajudam a mover, apesar dos obstáculos causados à educação, a UnB. Em outras palavras, seria exigir que os servidores assumissem, com o seu sacrifício e de sua família, a responsabilidade pela qualidade da educação, como parece insinuar o editorial do Correio deste domingo.

O exercício do direito de greve pelos servidores técnico-administrativos da UnB é legítimo. Como reconheceu também o Judiciário, a greve hoje instaurada na Universidade também é legal.

Apesar da mesa de negociação instalada na instituição, não está ao alcance da gestão universitária dar uma solução definitiva para as reivindicações dos servidores da UnB. De fato, negociar localmente resultou na continuidade dos serviços do Restaurante; da Biblioteca Central; das atividades de ensino, pesquisa e extensão; na realização de encontros estudantis com mais de 2.000 pessoas vindas de diversas partes do Brasil, como foi o caso Encontro Nacional de Estudantes de Direito; e promoção de outros importantes eventos, como o Seminário sobre a Federalização de Crimes contra os Direitos Humanos, realizado no dia 08 de setembro com a presença de importantes juristas brasileiros e do Ministro Paulo Vanucchi, e do Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direitos Humanos, que acontecerá no final dessa semana. Mas, por se tratar de redução salarial determinada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e não especificamente pela UnB, caberia ao Ministério a responsabilidade de solucionar o problema gerado por sua ação desmedida, e, em caso de omissão, ao Judiciário, por ter sido a demanda judicializada e a greve considerada legal.

Como a UnB não pode parar, interessante que a dignidade dos servidores fosse respeitada, que a íntegra de sua remuneração fosse mantida e que os governos se comprometessem efetivamente com a educação, direito de todos e dever do estado, conforme afirma a Constituição Federal de 1988. Isso, de fato, evitaria prejuízo à sociedade, pois teria pessoas respeitadas para seguirem mobilizando a pesquisa, o ensino, a extensão e, em outros termos, para produzirem conhecimentos capazes de corresponder aos reais interesses da sociedade brasileira. Afinal, como diria Darcy Ribeiro, fundador da UnB, esta universidade foi fundada para pensar mecanismos de desenvolvimento econômico, político, social, cultural, artístico, para o Brasil.

domingo, 25 de julho de 2010

O homem da "casa" de papelão - Direito da indiferença

Por anos, às portas da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, na esquina das Ruas Merlon de Morais com a Senador Pompeu, uma “casa” de papelão abrigou um homem.
A indiferença, apesar do tempo de compartilhamento do espaço, impediu que se conhecesse seu nome, de onde vinha, por que estava ali, ou mesmo, na falta de ações elementares como as anteriores, que se promovesse qualquer intervenção transformadora na vida dessa pessoa com que se convivia sem vê-la.
Por isso, também o homem da casa de papelão morreu sem ser percebido. Somente depois de algum tempo os integrantes da comunidade acadêmica da escola de direito da UFC notaram a falta de sua “casa” na esquina.
Ironicamente, uma faculdade de direito pôde conviver longamente com a falta de direitos sem se sentir responsável por isso. Mas, não são poucas as faculdades de direito que, negando-se a repensar as bases em que estruturam a educação que são capazes de prestar, eximem-se da responsabilidade de interferir nos problemas sociais e de formar pessoas capazes de realizar, promover e defender direitos humanos.
Sob o signo da neutralidade e da arrogância teórica, sustenta-se certa forma de educar, através de que se reforça e se propaga o direito da indiferença. Mas também, erguem-se muros, nem sempre visíveis, embora reais, que separam estudantes, professores e professoras da realidade, mesmo que esta esteja inegavelmente muito próxima.
Pensar o direito como legítima organização social da liberdade, à Lyra Filho, exige decerto uma virada epistemológica que não coaduna com a compreensão estabelecida no modelo central de ensino jurídico que se propaga pelo Brasil. Impõe que sejam revistas concepções e que se avaliem as condições de elaboração do pensamento hegemônico para vencer o conjunto de crenças e métodos cognitivos que impedem de se instalar nos ambientes de formação jurídica uma compreensão de que o direito nasce no seio de uma sociedade conflituosa, não-harmônica, ou seja, nasce na rua, no calor das lutas e das reivindicações sociais, e se destina a uma eterna e dialética busca da justiça, cujo conteúdo se delineia também no universo cultural, político e histórico, sem um a priori pré-definido, construído e atualizado no tempo e no processo mesmo de sua busca/realização na dinâmica da sociedade. Portanto, não é fruto exclusivo do poder político do Estado, não se reduz à expressão normativo/legalista, não se basta no espaço institucional que é, a um só tempo, criatura e criador da própria lei. E, acima de tudo, não é neutro. Estabelece um compromisso inevitável com a emancipação humana; não admitindo sua dicotomia em relação aos direitos humanos, porque só existe autenticamente enquanto elemento de superação de todas as formas de opressão.
Ainda, no seio dessa virada epistemológica, em que o direito se mostra complexamente no campo da eticidade, colocando-se inseparavelmente como forma de pensamento, realização e difusão de uma perspectiva libertadora, não eurocêntrica e colonialista, de direitos humanos, deslegitima-se o discurso da desigualdade e do desrespeito como problemas individuais; passa a ser fundamental eliminar a indiferença e a omissão como comportamento face aos problemas sociais e, o compromisso com a transformação da realidade de injustiças e vulnerabilidade social à violação de direitos se transforma no centro do universo de estudantes, educadoras, educadores e outros profissionais de direito.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Globo, BBB10 e LGBT's - o Mito

Lia na lista de e-mails da Rede Nacional de Assessoria Jurídica uma mensagem que se intitulava “Globo, BBB10 e LGBT’s”.

A matéria, retirada pelo seu transmissor do sítio eletrônico: http: //gay.com.br/ 2010/01/06/ big-brother-brasil -arco -iris/, iniciava com a seguinte afirmação:

Apesar de todas as críticas que podemos tecer contra a Globo quando o assunto é homofobia, a última edição do BBB 10 traz uma "drag queen", um gay e uma lésbica assumidos, além da "simpatizante" Elenita (dona da comu "Homofobia Já Era", do Orkut - a maior referência orkutiana no combate à homofobia), uma defensora intransigente dos direitos dos LGBT's.

Além disso, mais adiante, para iniciar sua defesa da atitude da Rede Globo e enobrecer a participação de pessoas homossexuais num dos programas de maior audiência da TV brasileira, em letras garrafais, sub-titulava a matéria com a frase “Big Brother Brasil Arco-íris”.

De fato, como diz Galeano, estamos mesmo vivendo “De pernas pro ar – uma escola do mundo ao avesso”. Vivemos efetivamente um momento de inversão de valores e, às vezes, não nos damos conta disso.

Observando que na sociedade de consumo tudo se transforma em coisa a ser consumida; observando que a TV é uma grande parceira na construção de um modelo de sociedade que reduz as pessoas a coisas; observando que o Big Brother Brasil é uma das formas mais sofisticadas de violência que se vê na TV brasileira, porque trata todos como peças, como objetos de um comandante que expõe os corpos, que faz expor nas pessoas a sua raiva, o seu desejo, que planta emoções conforme a dominação e manipulação de situações, que se estabelece de certo modo sobre o outro com um “biopoder”, como diria Foucault, eu não seria tão romântico na análise sobre a participação LGBT no BBB10.

Ao contrário de tudo o que foi dito, depois de transformar e reforçar a imagem de homens e mulheres heterossexuais em objeto, agora é a hora e vez das pessoas homossexuais.

É certo que conhecer e ver é um bom mecanismo para respeitar, mas ninguém é respeitado sendo tratado e mostrado como objeto da sanha ardente de uma TV que, em nome do lucro, transforma tudo,como num toque de Midas, em algo a ser, somente em tese, apreciado. Digo somente em tese, porque não ajuda a discutir o modelo de sociedade e o lugar que cada pessoa, com as suas peculiaridades, tem nessa sociedade de origem patriarcal, patrimonialista, clientelista, paternalista, voluntarista, fundada na violência contra a diferença.

Vejo que é preciso cuidado por parte daqueles e daquelas que deixam os olhos brilharem com o menor sinal de respeito aos direitos humanos. Até mesmo quando se trata de um sinal que indica exatamente o contrário do que parece indicar. Quem sempre viola e propaga a violação de direitos humanos não passa de uma hora para outra à condição de defensor de direitos humanos.

Das boas intenções, quase sempre, há que se desconfiar. "De boas intenções, o inferno está cheio".

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

PNDH 3: Por que mudar? - Revista Carta Maior

Matéria da Editoria:
Política

19/01/2010


PNDH 3: Por que mudar?

O que está posto como desafio não é mudar o PNDH. O que está posto como desafio é tomar o PNDH como instrumento para mudar a sociedade, para aguçar ainda mais os compromissos democráticos com a participação, com a justiça, com a liberdade – com a realização dos direitos humanos. Por isso, o que está previsto no PNDH 3 precisa, com urgência, se tornar efetividade, a fim de que os direitos humanos sejam conteúdo substantivo na vida cotidiana de cada pessoa. O artigo é de Paulo César Carbonari.

Paulo César Carbonari

Data: 15/01/2010
Nas últimas semanas direitos humanos tornou-se uma das principais pautas da imprensa. Particularmente, o novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), lançado pelo governo federal no dia 21 de dezembro de 2009, tem sido objeto de atenção. Por incrível, “nunca antes na história deste país” um programa governamental de direitos humanos ganhou tanta atenção, provocou tanto debate. Isto é ótimo, afinal direitos humanos passam a ganhar a atenção que merecem.

As reações ao PNDH 3 começaram nos setores militares. A elas se seguiram as dos ruralistas, dos donos da imprensa, de grupos católicos. O que há de comum a todas estas reações é que vêm orientadas por inspiração conservadora e reativa. Não são estranhas. Estas inspirações historicamente tem sido refratárias aos avanços exigidos pelos direitos humanos. Estão longe de qualquer tipo de unanimidade. Até porque, vários setores democráticos têm dito que o PNDH 3 representa um avanço ao ter uma compreensão ampla e contemporânea de direitos humanos e por trazer para o campo programático das políticas públicas um tema que ainda está mais no campo normativo e jurídico.

Os dissensos servem para que a opinião pública conheça as várias posições sobre direitos humanos que estão na sociedade. Dissensos são ótimos porque abrem o debate, cobram posicionamentos. Não fossem os dissensos não haveria democracia.

Um tema em particular merece atenção: a polêmica sobre a criação da Comissão da Verdade. Não é novidade que setores militares e seus apoiadores entre os donos do dinheiro e do poder sejam contra revelar à sociedade brasileira o que ocorreu nos porões da ditadura. Nunca concordaram em colaborar para que a memória pudesse ser construída como bem público e que para tal pudesse contar com informações e com posicionamentos alternativos. Em nome de manter a memória dos próceres do autoritarismo, sempre se esmeraram para preservar a memória dos que promoveram o arbítrio e as violações de direitos e, para esconder – e até apagar – a memória dos que lhes resistiram e que lançaram as sementes da democracia. Sempre fugiram da verdade, ou melhor, sempre quiseram que somente sua própria verdade prevalecesse; que nenhuma verdade alternativa à que se agarram pudesse ser construída pela sociedade. Sua postura não é diferente daquela dos donos do poder e do dinheiro de outras épocas também autoritárias e opressoras de nossa história e que foram responsáveis pela eliminação dos povos indígenas, pela escravidão e por outras formas de autoritarismo de Estado.

Por isso, ao propor a criação de uma Comissão da Verdade, o PNDH compromete o Estado brasileiro com o encaminhamento de condições para que a sociedade possa abrir espaço para que outras vozes – aquelas que foram caladas historicamente – digam a sua verdade. Como bem público, a memória e a verdade não são propriedade de uns ou de outros, mas também não estão descoladas dos contextos e dos agentes que as constroem. Por isso, que seja bem-vinda a Comissão da Verdade.

Em linhas gerais, o debate sobre o PNDH revela ao menos duas vertentes fortes na compreensão de direitos humanos: de um lado, os que aceitam os direitos humanos, quando os aceitam, mas apenas para si próprios ou para proteger seus privilegiados interesses privados e privatistas; de outro, os que compreendem direitos humanos como conteúdo substantivo da luta cotidiana para que cada pessoa possa ser o que quer ser e não como uns ou outros gostariam que fosse.

No fundo do debate, os brasileiros e as brasileiras comuns, as pessoas simples, que ainda não se reconhecem nos direitos humanos, até porque historicamente foram desinformadas a respeito ou informadas para que não os tomassem como bandeiras de resistência e de luta e nunca pretendessem aparecer nem mesmo dizer o que pensam. No fundo, as mesmas pessoas simples, no cotidiano de sua resistência à desigualdade, à opressão, à discriminação, à injustiça, à violência, também veem nos direitos humanos uma agenda que as inclui e as reconhece como sujeitos de direitos, sem mais.

Ora, se o debate revela compreensões tão distintas de direitos humanos, não há como passar por ele sem posicionamento, sem que sejam feitas escolhas. Cada brasileiro e cada brasileira está chamado a responder ao debate. Os brasileiros e as brasileiras que estão em posição de poder têm mais responsabilidade ainda. Ou seja, o momento exige que o governo, de modo particular o presidente Lula, tenha posição firme e clara. Não basta amainar os mais emocionados. É necessário que o governo seja coerente com os compromissos a que tem que responder. Aliás, ao publicar o PNDH 3 o governo fez escolhas, assumiu posição. O que justificaria que viesse a mudá-las? Por que abriria mão de se alinhar aos setores mais comprometidos com uma visão contemporânea e pública dos direitos humanos para atender a interesses privados?

Que bom que o Presidente não atendeu aos apelos por mudanças pautadas por interesses privados. Que bom que a resposta a todo o “alvoroço conservador” tenha sido instituir o grupo de trabalho responsável pela elaboração da legislação que o governo enviará ao Congresso a fim de instituir a Comissão da Verdade [conforme Decreto assinado no dia 13 de janeiro]. Que se possa estabelecer um debate para sobre o que será a Comissão da Verdade é já, por si, uma vitória – mesmo que parcial – da luta por direitos humanos. Claro que ainda há muito caminho a ser percorrido, o projeto de lei precisa ser elaborado, o Congresso o analisará e o votará.

Enfim, fortalece-se formalmente, com este ato, a agenda concreta de luta pelo direito humano à memória e à verdade. Lamentavelmente, num primeiro momento com pouca participação da sociedade civil, já que o Decreto que constitui o grupo de trabalho prevê a participação de apenas um membro que não seja de órgão governamental – e o que é da sociedade civil é indicado por um órgão governamental, a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Isto, todavia, não vai inibir e nem inviabilizar a participação da sociedade civil neste processo. Antes, é um motivo a mais para que seja vigilante e que exerça seu papel legítimo de pressão, de proposição e de cobrança. Tenho certeza que as organizações de direitos humanos estarão alerta e promoverão ampla campanha de mobilização da sociedade para que a Comissão da Verdade não seja só um acordo para “selar a paz” no governo e sim para que ela efetivamente seja concretizada.

Enfim, o que está posto como desafio não é mudar o PNDH. O que está posto como desafio é tomar o PNDH como instrumento para mudar a sociedade, para aguçar ainda mais os compromissos democráticos com a participação, com a justiça, com a liberdade – com a realização dos direitos humanos. Por isso, o que está previsto no PNDH 3 precisa, com urgência, se tornar efetividade, a fim de que os direitos humanos sejam conteúdo substantivo na vida cotidiana de cada pessoa. Este é o sentido do PNDH; esta é a principal mudança que esperamos ele ajude a promover.

(*) Mestre e professor de filosofia no Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo, RS) e conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

domingo, 17 de janeiro de 2010

O FETICHE DA TV: PARADOXOS DAS DISCUSSÕES SOBRE CONTEÚDO E INTERATIVIDADE.

José Humberto de Góes Junior

Esta semana, no bojo dos debates acerca Programa Nacional de Direitos Humanos3 – PNDH3, lançado pelo Governo Federal ainda em dezembro de 2009, observava o teor das discussões movidas em torno da comunicação social, mais especificamente, do direito à comunicação, e percebia que, embora o PNDH3 ataque corajosamente pela primeira vez os fatores de promoção da desigualdade e da negação da diferença na sociedade brasileira, o foco central da contenda ideológica parece ser a preocupação do Programa com o conteúdo transmitido por meios de comunicação de massa como a televisão.
É certo que, por não termos cuidado devidamente ao longo dos anos de existência deste elemento da comunicação que possui maior capacidade de produzir subjetividade, é legítimo que as pessoas e o governo assumam os conteúdos transmitidos pela TV como um importante componente quando se trata de pensar mecanismos de construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos.
Afinal, a TV está em quase todos os lares brasileiros e, ao fazer uso de técnicas de linguagem, que aliam abordagens lúdicas com de imagens, sons e textos para criar contextos, trabalha com a fantasia, ativa os sentidos, provoca a sensação de viver em tempo real experiências alheias como pertencentes ao/à espectador/a. A TV adota, reelabora e apresenta um mundo que, em cada um/a de nós, pode invocar a esfera dos desejos, das rejeições, dos símbolos, das representações sociais, dos valores, e, por conseguinte, guarda a condição de (re)produtora de uma moral, de um modo de viver. E, isso, por si só, já torna fundamental observar com mais acuidade o conteúdo televisivo.
Sendo a televisão um meio de comunicação concentrado, não podemos deixar de perceber que é igualmente privatizado e privativo a certos grupos e interesses. Sua moral, suas compreensões de mundo, as ideias que propaga como noções universais, revelam-se como significantes particulares, localizados, espacialmente, em determinados centros de elaboração e, ideologicamente, no seio de grupos minoritários, que dependem da ventilação de conceitos específicos através da grade de programação para a garantia das estruturas de poder em que estão assentados. O que torna ainda mais relevante discutir o conteúdo transmitido pela televisão e sua capacidade de formar uma sociedade voltada a uma democracia efetiva, com promoção e defesa de direitos humanos.
Em paralelo a esse debate concernente à programação e aos discursos que direta ou indiretamente aí se implementam, ocorre também em certos canais de TV discussões sobre o modelo de TV digital que ora se implanta no Brasil. Especialistas, a figura do momento nos meios de comunicação, concentram-se no que chamam de interatividade para descrever a relação que as pessoas têm com o aparelho de TV. À possibilidade de apenas escolhermos entre programas propostos em um menu determinado, chamam pseudo-interatividade; à participação em enquetes, pesquisas, votações em reality shows, seja pelo telefone ou pela internet, chamam interatividade simples; e, por último, a possibilidade de usar o aparelho de TV para, por exemplo, marcar consultas no Sistema Único de Saúde, para acessar o correio eletrônico, para pedir uma pizza, para conversar com os apresentadores e apresentadoras de TV, entre outras coisas, intitulam de interatividade plena. É esta que se defende como instrumento de exercício da democracia através da televisão digital.
Sem querer desqualificar os debates sobre o conteúdo da programação dos canais de TV e sua necessária aproximação do caráter educativo e ainda sobre o uso de novas tecnologias para a televisão, não podemos esquecer que a tentativa de evitar a concentração das ideias e das decisões sobre o formato da comunicação social brasileira, que movimenta as discussões, será vazia se uma preocupação anterior for abandonada.
Em quaisquer dos casos, para sabermos que rumos tomar, é preciso entender qual o lugar que ocupa e qual o lugar que queremos dar à televisão na sociedade brasileira; que papel tem a TV e qual é aquele que queremos tenha; por que ocupa o centro da casa das pessoas, dos lares, das famílias; por que a TV é o objeto em torno do qual as famílias se reúnem, as pessoas sufocam a solidão; por que se tornou o parâmetro de avaliação e de existência dos acontecimentos; quais são os discursos que sustentam esta centralidade da TV e se a criação de mais elementos para que as pessoas se postem diante do aparelho de televisão não contribui ainda mais para o fortalecimento do fetiche da TV.
Dialogar e pôr em destaque estes temas pode impedir que, mais uma vez, fiquemos reféns do botão do controle remoto, que criemos ainda mais mecanismos para colocarmos nossas vidas à disposição do aparelho de TV, por conseguinte, à disposição de discursos que nos enclausuram em nossas casas diante da televisão com o pretexto de nos proteger da violência, que professam o individualismo e o isolamento dos/as integrantes da família, que promovem os valores da sociedade de consumo, que nos tiram do espaço de reivindicação da rua e reduz a democracia à escolha do canal de TV.