sábado, 12 de novembro de 2011

A luta indígena contra a especulação imobiliária no DF


por Betinho Góes/Humberto Góes

Uma obrigação militante me mobiliza a produzir um relato minucioso sobre uma grave violação de direitos humanos que tenho acompanhado em Brasília, juntamente com outros companheiros e companheiras da Advocacia Popular radicados no DF. É a situação hoje vivenciada pela Comunidade Indígena Fulni-Ô/Tapuya, que, contrariamente aos interesses de empreiteiras financiadoras dos governos de Roriz, de Arruda, que contribuíram para o mensalão do DEM, luta para permanecer em suas terras tradicionalmente ocupadas em Brasília.

Como a situação de conflito, a destruição da terra e as prisões de estudantes e apoiadores da causa indígena no DF não param de acontecer, o trabalho não cessa. Todos os dias, estamos tentando obter decisões judiciais, promovendo novas ações, bem como ocupar espaços na Câmara e no Senado Federais e em outros lugares que possam fazer surtir efeito a luta do povo Fulni-Ô/Tapuya na DF.

Se não fossem os estudantes da UnB, que promovem ações diretas, param máquinas, se colocam diante da polícia, dos seguranças das empresas, os índios já teriam perdido essa luta. Pois, como todos sabem, o Judiciário demora o tempo suficiente pra que as empresas consumem a sua destruição e nada mais se possa fazer. Nesse momento, o "princípio da precaução", que deve inspirar as questões ambientais e indígenas, não vem sendo considerado, como não foi considerada a presença indígena durante todo o processo de licenciamento ambiental.

Apesar de os documentos informarem que existiam índios na área e que esta representava uma ocupação tradicional, os órgãos, entidades ambientais e a FUNAI foram omissos quanto à observação do componente indígena no licenciamento ambiental e em alguns casos até admitem a retirada da comunidade de suas terras (o que é vedado pela Constituição Federal de 1988). No caso da TERRACAP, empresa pública do DF que faz as licitações de terras, houve uma demonstração de interesse pela retirada dos índios desde o primeiro momento. Em ofício para a FUNAI, o presidente do órgão em 1999, mesmo sabendo que terra ocupada por índios pertence à União, chega a dizer que está tomando todas as providências para "desobstruir a área", o que significa retirar os índios e entregá-las às grandes construtoras, aqueles que financiam as campanhas e determinam os interesses que serão movimentados no Distrito Federal.

Por hora, envio links para que a luta Fulni-Ô/Tapuya, tribo já excluída de seu local de origem, o município de Águas Belas, Pernambuco, há anos atrás, não termine da forma como começou, com a expulsão dos índios de suas terras tradicionalmente ocupadas.

sábado, 8 de outubro de 2011

Andarilhando com Paulo Freire


Tinha que ler o Thomas Marshall e o Damatta, mas, antes de tudo, era preciso expressar, em palavras, a minha leitura do mundo: a leitura do que vi e daquilo de que fui capaz de me encharcar – um dia inesquecível de momentos dedicados a Paulo Freire – a UnB e cada um de nós andarilhando com Paulo Freire.

É confortante, ao deixar a obrigação pragmática para entregar-me à criatividade e à emoção das palavras, perceber que não custa seguir o trajeto daquele que, apesar de nomear-se “Reglus”, é o retrato da subversão por uma amorosidade encantada, emocionada, pelo mundo; é a negação do que tolhe, do que enrijece, do que maltrata. É a incorporação humilde de uma ira justa, aquela que movimenta esperançosamente em direção a um outro mundo possível. É o grito manso e igualmente bravio que anda em comunhão com o sorriso, com a criatividade, com a entrega, com o estar gostoso andarilhando e fazendo caminhar. É aquela mansidão que, como a brisa leve, arrebata e reúne engenhosamente os finos grãos de areia em gigantescas dunas. É a força do ser que jamais admite deitar seu corpo, nem depois da morte, em jazigo perpétuo da indiferença.

Preciso dizer do encontro de hoje, que é materialização de tantos desse mesmo dia e de tantos de dias idos; daqueles da própria vida, que só se fez e se faz existência encontrando outras existências.

Devo mencionar a inédita e estremecedora comunhão de falas com Diego Diehl proporcionada pela semana desta Universidade Necessária, que é de Darcy Ribeiro e nossa, em torno de Paulo Freire e do Direito (mediatizados pela UnB, foi possível renovar a cumplicidade transformadora, ávida, cheia de brilho nos olhos, por um mundo justo, que nos irmana).

Necessito falar do encontro entre Darcy Ribeiro e Paulo Freire, lembrado por Layla Jorge e reconstituído de forma afável pelo professor José Geraldo na cerimônia de concessão póstuma de título de doutor por causa honorífica a este último (enquanto se entrelaçavam as ideias desses seres tão preocupados com a nossa gente, podia viver a alegria daquele instante, sem nunca de ter estado lá).

Mas, quando eu supunha que este dia 06 de outubro, já tinha sido povoado de emoções suficientes, por um instante, interrompendo a conversa para tirar fotos com algumas das pessoas presentes, recebi das mãos de Nita Freire uma pasta. Na capa, letras douradas apontavam “Paulo Reglus Neves Freire”.

Chegava casualmente as minhas mãos todo o fazer de um ser que não “pensava pensamento” hipostasiado no diploma que a UnB lhe concedia. Compartilhei com Layla a minha emoção e a vontade de abrir para vê-lo. Esperei Nita voltar, pedi permissão para olhar de perto, o que me foi concedido.

De imediato, revivi todo o encontro, tão intenso e motivador, com as ideias de Paulo Freire.

Vieram-me à mente tantos outros lindos estar-no-mundo de que participei ao ter a vida tocada pela filosofia freireana; as possibilidades de (re)conhecer pessoas e de me (re)conhecer em cada pessoa com quem compartilhei fragmentos ou partes tão grandes de um existir que se fez enquanto se fazia com o mundo e com o outro.

Refiz o tempo da manhã tão forte desse dia. Passaram-se pelos olhos entrecruzados aos brilhantes e emocionados olhos Layla a vivacidade de tantos outros olhos e olhares lançados firmemente ao horizonte, apesar dos pés doídos de marchar.

Com o diploma de Paulo Freire diante de mim e tão perto, como se eu segurasse a sua mão, aquela mesma que o permitiu exercitar o seu direito de dizer a sua palavra constatadora, mas, acima de tudo, amorosa e ansiosamente transformadora, voltei a me inspirar nos caminhos que percorro e naqueles que percorri no chão quente dessa nossa América, a Latina. Estive de novo com os sorrisos, com os abraços, com as conversas, com as lutas, com os aprenderes...

Refletia sobre a existência mesma e sobre a fugacidade da morte diante da lembrança...

Por frações de segundo, estava nas comunidades, nos movimentos sociais, com os estudantes e com as estudantes, estava com meninos e meninas de rua, conhecendo gente, aprendendo a ser gente, construindo lutas.

Vivia a UnB, a utopia de Darcy e nossa utopia, estava feliz por estar ali, saboreava de novo o traçado de seus caminhos, a intensidade de seus ipês amarelos mais lindos e de seus flamboyants mais vermelho-alaranjados na moldura do azul do ceumar de Brasília. Trazia à memória a semana universitária de 2010, o compartilhar rico com as falas dos professores Carlos Rodrigues Brandão e Renato Hilário, do poeta e cantador Chico Nogueira, todos freireanamente postos no mundo.

Ao tempo, lembrava do que não vivi e abria a vida para o futuro...

Se me projetava à terça-feira da semana passada, em que, ao tomar posse como professor na Universidade Federal de Goiás, ouvi um “seja bem-vindo professor” que me caiu como um “faça surgir o EDUCADOR!”, era porque a força daquele encontro com Paulo Freire, a força de todos os encontros posteriores mediatizados pelo anterior, ganhava fôlego para seguir adiante. Tanto quanto se avolumava a vontade de iniciar meu trabalho de professor/educador neste dia 07 de outubro. Tanto quanto tomava mais corpo a vontade de viver e seguir com a responsabilidade de perpetuar encontros, de produzir novos, de reanimar os antigos e de fazer deles todos os de sempre.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Latinoamérica - Calle 13





Soy, Soy lo que dejaron, soy toda la sobra de lo que se robaron. Un pueblo escondido en la cima, mi piel es de cuero por eso aguanta cualquier clima. Soy una fábrica de humo, mano de obra campesina para tu consumo Frente de frio en el medio del verano, el amor en los tiempos del cólera, mi hermano. El sol que nace y el día que muere, con los mejores atardeceres. Soy el desarrollo en carne viva, un discurso político sin saliva. Las caras más bonitas que he conocido, soy la fotografía de un desaparecido. Soy la sangre dentro de tus venas, soy un pedazo de tierra que vale la pena. soy una canasta con frijoles , soy Maradona contra Inglaterra anotándote dos goles. Soy lo que sostiene mi bandera, la espina dorsal del planeta es mi cordillera. Soy lo que me enseño mi padre, el que no quiere a su patria no quiere a su madre. Soy América latina, un pueblo sin piernas pero que camina.  Tú no puedes comprar al viento. Tú no puedes comprar al sol. Tú no puedes comprar la lluvia. Tú no puedes comprar el calor. Tú no puedes comprar las nubes. Tú no puedes comprar los colores. Tú no puedes comprar mi alegría. Tú no puedes comprar mis dolores.  Tengo los lagos, tengo los ríos. Tengo mis dientes pa` cuando me sonrío. La nieve que maquilla mis montañas. Tengo el sol que me seca  y la lluvia que me baña. Un desierto embriagado con bellos de un trago de pulque. Para cantar con los coyotes, todo lo que necesito. Tengo mis pulmones respirando azul clarito. La altura que sofoca. Soy las muelas de mi boca mascando coca. El otoño con sus hojas desmalladas. Los versos escritos bajo la noche estrellada. Una viña repleta de uvas. Un cañaveral bajo el sol en cuba. Soy el mar Caribe que vigila las casitas, Haciendo rituales de agua bendita. El viento que peina mi cabello. Soy todos los santos que cuelgan de mi cuello. El jugo de mi lucha no es artificial, Porque el abono de mi tierra es natural.  Tú no puedes comprar al viento. Tú no puedes comprar al sol. Tú no puedes comprar la lluvia. Tú no puedes comprar el calor. Tú no puedes comprar las nubes. Tú no puedes comprar los colores. Tú no puedes comprar mi alegría. Tú no puedes comprar mis dolores.  Você não pode comprar o vento Você não pode comprar o sol Você não pode comprar chuva Você não pode comprar o calor Você não pode comprar as nuvens Você não pode comprar as cores Você não pode comprar minha felicidade Você não pode comprar minha tristeza  Tú no puedes comprar al sol. Tú no puedes comprar la lluvia. (Vamos dibujando el camino, vamos caminando) No puedes comprar mi vida. MI TIERRA NO SE VENDE.  Trabajo en bruto pero con orgullo, Aquí se comparte, lo mío es tuyo. Este pueblo no se ahoga con marullos, Y si se derrumba yo lo reconstruyo. Tampoco pestañeo cuando te miro, Para q te acuerdes de mi apellido. La operación cóndor invadiendo mi nido, ¡Perdono pero nunca olvido!  (Vamos caminando) Aquí se respira lucha. (Vamos caminando) Yo canto porque se escucha.  Aquí estamos de pie ¡Que viva Latinoamérica!  No puedes comprar mi vida.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Carta do encontro do NEDA - 2011

Publicamos a Carta dos enamorados do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo, lida na ocasião do encerramento do V Simpósio de Direito Alternativo, realizado de 25 a 27 de agosto de 2011, em Franca, São Paulo, no campus da UNESP.
Lembrando frase de Antonio Alberto Machado, na ocasião da inauguração da sala, em 23 de outubro de 2001, "O absurdo da condição humana nasce dos anseios do homem diante do silêncio despropositado do mundo, o absurdo do Direito nasce dos anseios por Justiça, Igualdade e Democracia diante do silêncio despropositado da lei".

Segue a íntegra da carta:
"Eis, então, que, no hemisfério sul do planeta, na América Latina, no Brasil, na barranca do rio grande, ousamos nos reunir para celebrar a loucura do desviante. À margem, conclamamos a coragem de realizar a travessia, num trajeto, que, como diria o poeta, só se faz a cada passo: um caminho que se faz ao caminhar. Mas tais passos não se dão sem as mãos, dadas com os oprimidos, com os marginais, e entre nós, num compartilhamento da utopia que sabemos ser possível. Não a metafísica utopia dos sonhos irrealizáveis, mas a utopia do não lugar, sonegada, erigida como não existente, porém insistentemente perseguida. Por isso, esta reunião, este concerto, este balé, este teatro é uma oportunidade de aprendizado, compartilhamento e fortalecimento mútuo, mas é também uma celebração da renitência do conjunto de caminhantes que parte da barranca do rio grande rumo a um mundo de Justiça e Igualdade, que pode até não ser alcançado, mas sua anunciação no horizonte movimenta a caminhada de uma luta que, por si mesma, devolve o retorno libidinal de não cedermos à frigidez e à anestesia do direito pálido.
Propusemos aqui um banquete de possibilidades sinestésicas entre seres reais, com cores, olores e sabores de gente que ousa se tocar e tocar o alijado. E o vinho que degustamos em nosso banquete possui o sabor de idéias. Estas idéias, confabuladas, nos experimentam no sabor da vida. A vida, como as posições da língua, tem uma pontinha doce, mas um fundo amargo. A vida, como a língua, em seus cantos é salgada, e no meio, no meio não é nada. De doce mesmo, a vida tem apenas uma pontinha. E quando a gente pisa na vida, no chão concreto do absurdo, a gente percebe que a qualquer momento a vida pode pisar na gente. Sim, nossa vida pisa nas gentes. Este tipo de vida que não queremos para nós, que temos que enfrentar cotidianamente, com democracia, em todos os lugares e a todo tempo, esta vida miserável que exige a riqueza dos verbos difíceis, esta vida é uma realidade.
Mas o real é suscetível de magia. E se eles são feiticeiros da hipocrisia, ou como se disse, que professam a técnica da mentira, talvez possamos ser feiticeiros de flores e alegrias. Não sem esforço, insistência, intermitência, obstinação, coragem, frustração, revigoração e continuidade, ainda que a história e a vida sejam feitas de descontinuidades, de cortes epistemológicos que nos castram direitos básicos, de atitudes desmedidas que nos caçam as escolhas mais sinceras e nobres, da usurpação diária que a ordem instaura em nosso pequenino mundo humano, que ainda estamos, a passos lentos, conhecendo aos poucos.
Ousamos negar. Ousamos profanar a apropriação perversa das relações humanas, divinizada pelo direito fálico, branquelo e opulento. Não aceitamos as metonímias totalitárias que nos forçam goela abaixo este pão de forma normativo e bolorento. Transformar a parte pelo todo é um barroco torto, obra de um direito putrefato. Queremos regurgitar. Tomamos um lado na luta de classes. Movemo-nos inversamente, inserindo em todas as partes os todos da vida.
A vida que é vivida nem sempre é feita de aplausos. Na maioria das vezes, é feita de fome, de choro, de olhos cabisbaixos, de órfãos, de violência, de Severinos, de Terezinhas, de crianças maltratadas, de idosos esquecidos, de índios massacrados, de negras usurpadas. Até quando silenciar as cantigas de roda e os direitos que brotam das sementes? São tantos e tantos lugares em que o amor foi amado sem sabor, amor amado sem amor, amor que se fez de rogado, amor que ficou calado, amor amarrado, torturado, estuprado. Suas patentes, seus rótulos, seus maquinários mercadológicos, seus aparatos militares, suas normatividades nos arrancaram o direito de amar a vida em sua pureza natural, em nossas colheitas, nas frutas da terra e nos frutos da consciência livre.
Então, viemos aqui lutar pelo direito de amar. Amar é um direito difuso, embora amar nos deixe tantas vezes confusos. O retorno do conteúdo ideológico ao direito de formas puras nada mais é do que o retorno do amor àquelas e àqueles que foram chamados operadores de direitos. Afinal, operadores de direitos necessariamente lidam com as dores dos sujeitos. Sendo assim, precisam estar juntos, tocando-se mutuamente, reconhecendo-se um no outro, procurando-se encontrar fora deste invólucro que denominaram de eu. Porque o eu só pode ser sendo nós. Podemos por fim lembrar os versos socialistas de Tiago de Mello:
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.

Franca, 27 de agosto de 2011.

Subscreve esta carta os enamorados do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA), da UNESP/Franca

Rosas vermelhas à intensidade de Lyra Filho



Humberto Góes/Betinho Góes

Fotos: Humberto Góes/Betinho Góes e Luiz Otávio Ribas


Certa vez, uma amiga dada a coisas exotéricas me disse que o número nove, com o qual sempre dizia me identificar, traz consigo o símbolo do recomeço, na dialética constante da vida.
Embora não creia nesse tipo de conhecimento, há instantes em que não posso deixar de reconhecer a coincidência de situações de plena dialética que carregam consigo o número nove. Esta que relato me parece envolta e carregada da capacidade de geração/regeneração/transformação/produção/reprodução/re-produção de tudo o que se renova renovando e renova sendo renovado.


Passava das duas da tarde de uma terça-feira, dia 12 de julho de 2011, quando encontramos a professora Eloette no centro de uma Curitiba quente para este período. Segundo a informação transmitida por Diego Diehl complementada por Luiz Otávio, era ela uma das três pessoas que, sob a sombra de um pinheiro do Paraná, fizeram repousar, há 25 anos, o mentor de tantos sonhos transformadores, e era também ela que nos levaria a seis jovens pesquisadores e pesquisadoras em Direito (Ricardo Pazello, Luiz Otávio Ribas, Diana Melo, Carolina Vestena, Tchena Mazo e eu) a realizar um reencontro com uma memória, com uma obra, cujo sentido dava àquele instante a conotação de tarefa revolucionária.


Digo revolucionária por sua capacidade de renovar a esperança, de alimentar o desejo de ver, na Filosofia do Direito, com reflexos no fazer jurídico hegemônico, ressurgirem, como irmãs siamesas, justiça social e prática jurídica cotidiana, institucionalizada ou não institucionalizada. Mas, como toda autêntica obra dessa natureza, era, ademais de um dever, uma prazerosa e sonhada atividade; era um fazer carregado de emoção e sensibilidade, através de que podíamos reafirmar o nosso compromisso com o mundo, com as transformações necessárias à dignidade e à justiça dos povos oprimidos.


Nossa missão era encontrar com Roberto Lyra Filho no lugar em que fora semeado o seu corpo para alimentar o desejo de, seguir fazendo florescer suas ideias. Nossa guia parecia conhecê-lo bem.


Divididos em dois grupos, tocou-nos a Ricardo Pazello e a mim o prazer de escutar suas estórias durante o trajeto do centro até a rua Padre João Wislinski, 755, no Bairro de Santa Cândida, em que se situava o Cemitério Paroquial de mesmo nome. De sua boca, revelavam-se, junto com a amizade e o profundo respeito, porquês, senões, ideais, amigos, buscas e traços de vida que marcaram a obra poética e filosófica lyriana. Em mim, crônicas dissolvidas em tanto carinho me provocavam lágrimas e reflexões, que, como no percurso marolar sobre a areia de uma praia serena, intercalavam-se em idas e vindas sem alarde.


De Roberto Lyra Filho, podíamos saber da amizade com José Geraldo de Sousa Júnior, com Marilena Chauí; emergiam informações sobre como surgiu a decisão de adotar um filho e de constituir o Paraná como lugar de sepultamento após a morte, ambas coincidentes com o desejo de seguir caminhos sem pré-julgamentos e sem que importasse, primeiro, quem era, qual a sua importância social e intelectual, se tinha bens.


Neste momento, fica a sensação, Roberto queria ser apenas Roberto, um homem entregue ao mundo na simples complexidade de sua existência. E, é o que parece ter-se traduzido também no rito fúnebre que se empreendeu na presença de apenas três pessoas conhecidas, entre elas a professora Eloette, ademais de dezenas de crianças de uma escola que surgiram, minutos antes do sepultamento, na missa de corpo presente. Talvez, estas fossem o símbolo do olhar curioso e igualmente despretensioso que Roberto procurava encontrar nas pessoas, segundo o que podíamos compreender das palavras que se lançavam acerca dele.


No cemitério Santa Cândida, nossa intensidade se aninha a outras intensidades na reunião do grupo para o encontro com a intensidade de Lyra Filho, aquela que nos ligava ali. Tomados todos e todas pela emoção de estar ao lado do ser que em nós se transformava no motor consciencial de nossas ações, pusemo-nos a buscar a sombra da araucária em que deveria repousar Lyra Filho. Era o jazigo 1017, conforme nos indicou em um envelope a funcionária da secretaria paroquial.


À parte exoterismos de todo gênero, não é possível deixar de observar a coincidência de, após uma noite de boas música e companhia num círculo constituído na calçada de uma rua do centro de Curitiba sob o número 359, cuja soma dá 8 (símbolo do infinito), encontrar Lyra Filho no número 1017. A soma deste perfazia um nove, o último dos números “naturais” e, por conseguinte, símbolo que, após sua pronúncia, demanda o recomeço; denota em si a dialética da iminência do fim e de um novo porvir.




Diante da intensidade de Lyra Filho, não podia ser outra a sensação de quem estuda a sua obra, senão a de uma permanência que só faz sentido à medida que se mescla ao gosto pela aventura experiencial e novidadeira da incerteza, que se faz contínua pela capacidade de se transformar e de transformar.

De igual forma, não podia ser outra a nossa homenagem senão com a intensidade das rosas vermelhas. Buscamos rosas fulgurantemente vermelhas porque brancas não seriam apropriadas. Lyra não as aceitaria, sobretudo se precisasse rega-las à poesia de um Noel Delamare ou àquela gerada na confluência de um Ricardo Pazello com um Luiz Otávio pseudonimamente representados, ou ainda, na amorosidade de uma Diana indignadamente sensível. Todos e todas estavam encharcados de palavras emanadas e refletidas desde corações cristãos, ateus, agnósticos, que se comungavam diante de um homem que se fazia presente naquele instante e se faz inspirador de tantas gentes porque, sem ter morrido, jamais morrerá.



De minha parte, depositei uma rosa vermelha à intensidade de Noel Delamare, de Roberto Delamare, Noel DelaLyra, de Roberto Lyra Filho, aqueles que inspiram minhas reflexões e minha luta. Da parte dos demais e das demais, em silêncio ou materializado em palavras, mais sentimentos, tanto quanto aqueles que se esboçam em seu epitáfio:



Roberto Lyra Filho parte e não se ausenta. Para nós que ainda vivemos, nos resta lembrar na memória os gestos, a voz, a grandeza, o amor à terra e ao povo, a confiança no futuro, a fome de justiça e de liberdade, através das lutas sociais.
Não sacrificaremos um só traço, pois em tudo nós o amamos com saudade.
O homem extraordinário também é composto de força e de fraqueza, de acertos e de equívocos, de claridade e sombras.
Hegel dizia: “a luz, afirmam, é ausência de trevas, mas, na pura luz se vê tão pouco, quanto na pura escuridão”.
Descansa em paz, ROBERTO, às sombras dos pinheirais deste teu adotivo Paraná.


Apesar de tão lindas palavras, não é o cheiro de morte que nos fica, quando nos encontramos com Lyra Filho, é o desejo de vida com dignidade esboçado na poesia de Noel Delamare que se arrasta e se arrisca na aventura do tempo:

Envio

Não me lamento, porque canto,
Faço do canto manifesto.
Sequei as águas do meu pranto
Nos bronzes fortes do protesto.

Acuso a puta sociedade,
Com seus patrões, seus preconceitos.
O teto, o pão, a liberdade
Não são favores, são direitos.