segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Carta do encontro do NEDA - 2011

Publicamos a Carta dos enamorados do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo, lida na ocasião do encerramento do V Simpósio de Direito Alternativo, realizado de 25 a 27 de agosto de 2011, em Franca, São Paulo, no campus da UNESP.
Lembrando frase de Antonio Alberto Machado, na ocasião da inauguração da sala, em 23 de outubro de 2001, "O absurdo da condição humana nasce dos anseios do homem diante do silêncio despropositado do mundo, o absurdo do Direito nasce dos anseios por Justiça, Igualdade e Democracia diante do silêncio despropositado da lei".

Segue a íntegra da carta:
"Eis, então, que, no hemisfério sul do planeta, na América Latina, no Brasil, na barranca do rio grande, ousamos nos reunir para celebrar a loucura do desviante. À margem, conclamamos a coragem de realizar a travessia, num trajeto, que, como diria o poeta, só se faz a cada passo: um caminho que se faz ao caminhar. Mas tais passos não se dão sem as mãos, dadas com os oprimidos, com os marginais, e entre nós, num compartilhamento da utopia que sabemos ser possível. Não a metafísica utopia dos sonhos irrealizáveis, mas a utopia do não lugar, sonegada, erigida como não existente, porém insistentemente perseguida. Por isso, esta reunião, este concerto, este balé, este teatro é uma oportunidade de aprendizado, compartilhamento e fortalecimento mútuo, mas é também uma celebração da renitência do conjunto de caminhantes que parte da barranca do rio grande rumo a um mundo de Justiça e Igualdade, que pode até não ser alcançado, mas sua anunciação no horizonte movimenta a caminhada de uma luta que, por si mesma, devolve o retorno libidinal de não cedermos à frigidez e à anestesia do direito pálido.
Propusemos aqui um banquete de possibilidades sinestésicas entre seres reais, com cores, olores e sabores de gente que ousa se tocar e tocar o alijado. E o vinho que degustamos em nosso banquete possui o sabor de idéias. Estas idéias, confabuladas, nos experimentam no sabor da vida. A vida, como as posições da língua, tem uma pontinha doce, mas um fundo amargo. A vida, como a língua, em seus cantos é salgada, e no meio, no meio não é nada. De doce mesmo, a vida tem apenas uma pontinha. E quando a gente pisa na vida, no chão concreto do absurdo, a gente percebe que a qualquer momento a vida pode pisar na gente. Sim, nossa vida pisa nas gentes. Este tipo de vida que não queremos para nós, que temos que enfrentar cotidianamente, com democracia, em todos os lugares e a todo tempo, esta vida miserável que exige a riqueza dos verbos difíceis, esta vida é uma realidade.
Mas o real é suscetível de magia. E se eles são feiticeiros da hipocrisia, ou como se disse, que professam a técnica da mentira, talvez possamos ser feiticeiros de flores e alegrias. Não sem esforço, insistência, intermitência, obstinação, coragem, frustração, revigoração e continuidade, ainda que a história e a vida sejam feitas de descontinuidades, de cortes epistemológicos que nos castram direitos básicos, de atitudes desmedidas que nos caçam as escolhas mais sinceras e nobres, da usurpação diária que a ordem instaura em nosso pequenino mundo humano, que ainda estamos, a passos lentos, conhecendo aos poucos.
Ousamos negar. Ousamos profanar a apropriação perversa das relações humanas, divinizada pelo direito fálico, branquelo e opulento. Não aceitamos as metonímias totalitárias que nos forçam goela abaixo este pão de forma normativo e bolorento. Transformar a parte pelo todo é um barroco torto, obra de um direito putrefato. Queremos regurgitar. Tomamos um lado na luta de classes. Movemo-nos inversamente, inserindo em todas as partes os todos da vida.
A vida que é vivida nem sempre é feita de aplausos. Na maioria das vezes, é feita de fome, de choro, de olhos cabisbaixos, de órfãos, de violência, de Severinos, de Terezinhas, de crianças maltratadas, de idosos esquecidos, de índios massacrados, de negras usurpadas. Até quando silenciar as cantigas de roda e os direitos que brotam das sementes? São tantos e tantos lugares em que o amor foi amado sem sabor, amor amado sem amor, amor que se fez de rogado, amor que ficou calado, amor amarrado, torturado, estuprado. Suas patentes, seus rótulos, seus maquinários mercadológicos, seus aparatos militares, suas normatividades nos arrancaram o direito de amar a vida em sua pureza natural, em nossas colheitas, nas frutas da terra e nos frutos da consciência livre.
Então, viemos aqui lutar pelo direito de amar. Amar é um direito difuso, embora amar nos deixe tantas vezes confusos. O retorno do conteúdo ideológico ao direito de formas puras nada mais é do que o retorno do amor àquelas e àqueles que foram chamados operadores de direitos. Afinal, operadores de direitos necessariamente lidam com as dores dos sujeitos. Sendo assim, precisam estar juntos, tocando-se mutuamente, reconhecendo-se um no outro, procurando-se encontrar fora deste invólucro que denominaram de eu. Porque o eu só pode ser sendo nós. Podemos por fim lembrar os versos socialistas de Tiago de Mello:
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.

Franca, 27 de agosto de 2011.

Subscreve esta carta os enamorados do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo (NEDA), da UNESP/Franca

Rosas vermelhas à intensidade de Lyra Filho



Humberto Góes/Betinho Góes

Fotos: Humberto Góes/Betinho Góes e Luiz Otávio Ribas


Certa vez, uma amiga dada a coisas exotéricas me disse que o número nove, com o qual sempre dizia me identificar, traz consigo o símbolo do recomeço, na dialética constante da vida.
Embora não creia nesse tipo de conhecimento, há instantes em que não posso deixar de reconhecer a coincidência de situações de plena dialética que carregam consigo o número nove. Esta que relato me parece envolta e carregada da capacidade de geração/regeneração/transformação/produção/reprodução/re-produção de tudo o que se renova renovando e renova sendo renovado.


Passava das duas da tarde de uma terça-feira, dia 12 de julho de 2011, quando encontramos a professora Eloette no centro de uma Curitiba quente para este período. Segundo a informação transmitida por Diego Diehl complementada por Luiz Otávio, era ela uma das três pessoas que, sob a sombra de um pinheiro do Paraná, fizeram repousar, há 25 anos, o mentor de tantos sonhos transformadores, e era também ela que nos levaria a seis jovens pesquisadores e pesquisadoras em Direito (Ricardo Pazello, Luiz Otávio Ribas, Diana Melo, Carolina Vestena, Tchena Mazo e eu) a realizar um reencontro com uma memória, com uma obra, cujo sentido dava àquele instante a conotação de tarefa revolucionária.


Digo revolucionária por sua capacidade de renovar a esperança, de alimentar o desejo de ver, na Filosofia do Direito, com reflexos no fazer jurídico hegemônico, ressurgirem, como irmãs siamesas, justiça social e prática jurídica cotidiana, institucionalizada ou não institucionalizada. Mas, como toda autêntica obra dessa natureza, era, ademais de um dever, uma prazerosa e sonhada atividade; era um fazer carregado de emoção e sensibilidade, através de que podíamos reafirmar o nosso compromisso com o mundo, com as transformações necessárias à dignidade e à justiça dos povos oprimidos.


Nossa missão era encontrar com Roberto Lyra Filho no lugar em que fora semeado o seu corpo para alimentar o desejo de, seguir fazendo florescer suas ideias. Nossa guia parecia conhecê-lo bem.


Divididos em dois grupos, tocou-nos a Ricardo Pazello e a mim o prazer de escutar suas estórias durante o trajeto do centro até a rua Padre João Wislinski, 755, no Bairro de Santa Cândida, em que se situava o Cemitério Paroquial de mesmo nome. De sua boca, revelavam-se, junto com a amizade e o profundo respeito, porquês, senões, ideais, amigos, buscas e traços de vida que marcaram a obra poética e filosófica lyriana. Em mim, crônicas dissolvidas em tanto carinho me provocavam lágrimas e reflexões, que, como no percurso marolar sobre a areia de uma praia serena, intercalavam-se em idas e vindas sem alarde.


De Roberto Lyra Filho, podíamos saber da amizade com José Geraldo de Sousa Júnior, com Marilena Chauí; emergiam informações sobre como surgiu a decisão de adotar um filho e de constituir o Paraná como lugar de sepultamento após a morte, ambas coincidentes com o desejo de seguir caminhos sem pré-julgamentos e sem que importasse, primeiro, quem era, qual a sua importância social e intelectual, se tinha bens.


Neste momento, fica a sensação, Roberto queria ser apenas Roberto, um homem entregue ao mundo na simples complexidade de sua existência. E, é o que parece ter-se traduzido também no rito fúnebre que se empreendeu na presença de apenas três pessoas conhecidas, entre elas a professora Eloette, ademais de dezenas de crianças de uma escola que surgiram, minutos antes do sepultamento, na missa de corpo presente. Talvez, estas fossem o símbolo do olhar curioso e igualmente despretensioso que Roberto procurava encontrar nas pessoas, segundo o que podíamos compreender das palavras que se lançavam acerca dele.


No cemitério Santa Cândida, nossa intensidade se aninha a outras intensidades na reunião do grupo para o encontro com a intensidade de Lyra Filho, aquela que nos ligava ali. Tomados todos e todas pela emoção de estar ao lado do ser que em nós se transformava no motor consciencial de nossas ações, pusemo-nos a buscar a sombra da araucária em que deveria repousar Lyra Filho. Era o jazigo 1017, conforme nos indicou em um envelope a funcionária da secretaria paroquial.


À parte exoterismos de todo gênero, não é possível deixar de observar a coincidência de, após uma noite de boas música e companhia num círculo constituído na calçada de uma rua do centro de Curitiba sob o número 359, cuja soma dá 8 (símbolo do infinito), encontrar Lyra Filho no número 1017. A soma deste perfazia um nove, o último dos números “naturais” e, por conseguinte, símbolo que, após sua pronúncia, demanda o recomeço; denota em si a dialética da iminência do fim e de um novo porvir.




Diante da intensidade de Lyra Filho, não podia ser outra a sensação de quem estuda a sua obra, senão a de uma permanência que só faz sentido à medida que se mescla ao gosto pela aventura experiencial e novidadeira da incerteza, que se faz contínua pela capacidade de se transformar e de transformar.

De igual forma, não podia ser outra a nossa homenagem senão com a intensidade das rosas vermelhas. Buscamos rosas fulgurantemente vermelhas porque brancas não seriam apropriadas. Lyra não as aceitaria, sobretudo se precisasse rega-las à poesia de um Noel Delamare ou àquela gerada na confluência de um Ricardo Pazello com um Luiz Otávio pseudonimamente representados, ou ainda, na amorosidade de uma Diana indignadamente sensível. Todos e todas estavam encharcados de palavras emanadas e refletidas desde corações cristãos, ateus, agnósticos, que se comungavam diante de um homem que se fazia presente naquele instante e se faz inspirador de tantas gentes porque, sem ter morrido, jamais morrerá.



De minha parte, depositei uma rosa vermelha à intensidade de Noel Delamare, de Roberto Delamare, Noel DelaLyra, de Roberto Lyra Filho, aqueles que inspiram minhas reflexões e minha luta. Da parte dos demais e das demais, em silêncio ou materializado em palavras, mais sentimentos, tanto quanto aqueles que se esboçam em seu epitáfio:



Roberto Lyra Filho parte e não se ausenta. Para nós que ainda vivemos, nos resta lembrar na memória os gestos, a voz, a grandeza, o amor à terra e ao povo, a confiança no futuro, a fome de justiça e de liberdade, através das lutas sociais.
Não sacrificaremos um só traço, pois em tudo nós o amamos com saudade.
O homem extraordinário também é composto de força e de fraqueza, de acertos e de equívocos, de claridade e sombras.
Hegel dizia: “a luz, afirmam, é ausência de trevas, mas, na pura luz se vê tão pouco, quanto na pura escuridão”.
Descansa em paz, ROBERTO, às sombras dos pinheirais deste teu adotivo Paraná.


Apesar de tão lindas palavras, não é o cheiro de morte que nos fica, quando nos encontramos com Lyra Filho, é o desejo de vida com dignidade esboçado na poesia de Noel Delamare que se arrasta e se arrisca na aventura do tempo:

Envio

Não me lamento, porque canto,
Faço do canto manifesto.
Sequei as águas do meu pranto
Nos bronzes fortes do protesto.

Acuso a puta sociedade,
Com seus patrões, seus preconceitos.
O teto, o pão, a liberdade
Não são favores, são direitos.