sábado, 6 de dezembro de 2008

Alucinação - Belchior

Uma certa vez, estava conversando com um amigo do Piauí (Lucas) e falava sobre formas de lidar com a vida. Prontamente, ele me disse:
- Tem uma música que é a sua cara.
- A minha cara?, perguntei.
Ele disse:
- Sim. Veja isso... e me passou pelo msn a música que me fez começar a buscar mensagens na poesia de Belchior.


Aí está a minha Alucinação...



Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais...

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais...
Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais...
Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai
Do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!...
Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida...
Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais...
Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais...
Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai
Do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!...
Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida...
Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais...

sexta-feira, 27 de junho de 2008

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Agora tenho 30 anos

Passa da meia-noite e sinto uma necessidade imensa de escrever. Já sou um homem de trinta anos completados no dia que acaba de se encerrar, mas, antes de dormir o sono dos balzaquianos (uma leve analogia ao livro de Honoré de Balzac para as mulheres de trinta anos), preciso deixar fluir os pensamentos que reverberam as palavras de minha mãe, para mim, neste dia.

Em alusão a Freud, esta repetição pode ser uma tentativa de, a partir do vínculo intenso e profundo que mantemos com as mães, compreender o seu conjunto de palavras e de preocupações; uma forma de promover a tradução intergeracional ou interpessoal de valores e de modos de vida. Neste caso, entre a forma de viver que adotei pra mim e o sentido que minha mãe gostaria que eu desse a minha própria existência.

A todo momento, vem-me a cena em que ela, lentamente, deixa-se entrar na sala em que estudava, em que lia um livro libertador (A ideologia de Paulo Freire), e afirma com um sorriso leve nos lábios:

- Você tem 30 anos... meu filho, você já tem 30 anos e o que você tem, o que você conquistou? Quando é que você vai começar a pensar na vida?

Apesar de sua fala, eu sabia que ela não tinha sentido. Pelo menos, do meu ponto de vista do que significa conquistar, do que significa pensar na vida. Era um esforço grande estar absorto de todas as conquistas diante de alguém que me olhava e tentava me oferecer como uma receita o seu significante para “vitória” sem poder e sem querer travar debates profundos sobre o assunto.

Na verdade, eu não sei se entendia o porquê da fala. Afinal, ninguém foi tão testemunha de minhas lutas do que minha própria mãe. Mesmo sem compreender, sem me compreender, sem acreditar na importância de algumas delas, minha mãe foi sempre a maior testemunha de que minha vida é plena. São 30 anos de muitas conquistas, de muitas vitórias, de muitas felicidades. São 30 anos muito bem vividos, com experiências, com vivências, com vivenciamentos, que poucas pessoas da minha idade puderam construir.

Mas, o que minha mãe queria dizer em torno da conquista em nada tinha de semelhante com o que foi a minha vida inteira. Somente no âmbito das situações visíveis e mais convencionais ao mundo apegado a títulos e ao triunfo individual, cada dia de minha existência foi uma grande prova de fogo e cada prova se vinculava a um grande projeto de minha vida: terminar os estudos; alcançar um curso de direito de uma universidade pública; construir um escritório de advocacia que se dedicasse a trabalhar para os oprimidos; fazer um primeiro mestrado e ter que abandoná-lo pela necessidade de trabalhar para sobreviver; enfrentar um segundo mestrado com grandes dificuldades financeiras para poder alcançar a possibilidade de, um dia, poder ensinar numa universidade pública...

O que mais poderia ser uma conquista? Essa era a minha conquista!

Não posso dizer que chego aos 30 anos como um possuidor de bens, ao menos dos bens que muitas pessoas supõem serem os mais importantes. Mas, chego aos 30 anos feliz, pleno de sorrisos, pleno de amor, pleno de poesia, pleno de sonhos, pleno de música, pleno de ser gente, pleno de ser criança, pleno da crença de que posso errar e de que posso acertar, pleno de pessoas ao redor, pleno de perseverança, pleno de vontade de seguir lutando, pleno de fragilidade e força para, todos os dias, acordar, contemplar o novo dia e agradecer pelo fato de poder estar vivo e lutar.

Cada dia, quando acordo, agradeço pela possibilidade de seguir lutando.

Por isso, era mais um dia em que estava feliz. Tinha passado um dia sereno, um dia de reflexões, um dia de sorrisos e de lembranças impulsionados pelos recados que recebi no Orkut de pessoas que fazia muito tempo que não via, mensagens por e-mails, telefonemas.

Eram tantas declarações de amor, de amizade, de respeito, de admiração...

Minha própria mãe tinha me feito o que eu mais gosto que se faça no dia do meu aniversário: um caruru.

No início da noite, tinha recebido a visita inesperada de Lídia, Kátia, Aninha, Andréa e Roberta, companheiras de lutas pelos direitos da criança e do adolescente em Sergipe, cantando parabéns na porta da minha casa, diante de quem quisesse ver e ouvir, me presenteando com abraços e com uma tentativa de cancã...

Mas, nada disso foi visto. Foi preciso a pergunta que, quase sem a sensibilidade de perceber o que mais me importa, me indicou como um ser sem bens, um ser que havia deixado de pensar na própria vida.

Minha reação, ao contrário do que pensei que seria, foi tranqüila. Ainda tentei explicar alguma coisa, até perceber que nenhuma explicação daria conta de expressar tudo o que significa, para mim, ter vivido o que vivi, com tantas conquistas. Entre estas, estão a certeza de que tudo o que se fiz de minha vida construiu esta mesma vida, de que tudo o que sou ou estou sendo é tudo o que fiz sabendo sempre o que estava fazendo, é o conjunto de minhas dores, de meus sorrisos, dos atos de amor que se voltaram a mim, dos atos de amor que eu mesmo fui capaz de produzir, é um pouco de cada pessoa com quem encontrei, são as nuvens que cacei, são os abraços sinceros, são o chão e a água, são o vento e o mar, é a música, são os pequenos gestos de carinho e de afeição.

E, pensando nisso, por um momento me vi andando de novo pela América Latina, como se do alto dos Andes, olhasse o caminho que percorri e dissesse: essa é a minha conquista.

Eu podia ver as pessoas; eu podia ver meus amigos; eu podia ver o ser humano que foi se formando em cada momento de sua vida, com a certeza de que todos os instantes foram vividos com intensidade; eu podia agradecer.

Que mais eu poderia querer? Que mais eu poderia chamar de conquista? Que mais podia representar a minha vitória?

Nada!!!!!

As pessoas são a minha maior conquista. Viver e ser feliz todos os dias é a minha maior conquista. Estar com o mundo e com os outros é a minha maior conquista.

Quanto aos meus bens, nenhum bem é mais precioso do que recostar o coração em outro coração dentro de um sincero abraço.

Diante de todas essas crenças, que mais podia eu senão me tornar possuidor de mais desses bens. Se é no contato com o mundo que se lhes adquire, fui em busca de meus amigos.

Acumulei novos abraços, doados por Pablo, Silvinha, Biel, Vinny e Ize.

Fui merecedor do compartilhar feliz de Adônis por sua formatura e de Kelly por sua gravidez. Tudo isso no mesmo dia.

Agora, tenho 30 anos. E, além da idade, tenho, num mundo de incertezas, mais certeza de penso na vida, de que sou um vitorioso e de que devo seguir lutando para merecer os sorrisos e as palavras que pude receber no dia que acaba de acabar.

domingo, 9 de março de 2008

O que representou Taís na viagem...

Embora a viagem tenha acabado fisicamente no dia 25 de janeiro, não tenho conseguido para de refletir sobre sua importância em minha vida. Já pensei que, pela grande quantidade de experiências, pudesse me sentir demasiadamente pleno, completo, sem mais necessidades de busca, sem mais para conquistar enquanto ser humano, mas, de fato, o que me faz seguir esta viagem em terra é o processo de assimilação das novas, intensas, inéditas e profundas experiências vividas para o meu cotidiano.

Muitas vezes, retomo fotos, retomo conversas e, com isso, retomo todas as sensações que povoaram muitos momentos daqueles dias, me sinto de novo inebriado de latinoamericanidade, mas também de um crescimento humano imensurável.

É dentro deste diálogo comigo e com as pessoas, enquanto relato as experiências, que descobri a importância de Taís em toda esta viagem, apesar de só tê-la encontrado no meio do caminho. E, isso, porque não consigo olhar para a viagem por pedaços. O que fica em mim é toda a complexidade da caminhada. As reflexões que me vêm não chegam aos pedaços. Somente o todo é que faz sentido, enquanto experiência vivida, enquanto aprendizado. Portanto, Taís não é uma parte da viagem, ela me ajuda a compreender toda a viagem. E, mais interessante é que a sensação que tenho, ao pensar assim, é que cada coisa, enquanto caminhava, aconteceu a seu tempo. Existe uma complementaridade fundamental entre todos os instantes, cujo tempo e o espaço se fundem na experiência.

Pensar em Taís é o mesmo que pensar em Tilcara e em Juan. Esta viagem não faria sentido algum sem estas pessoas e sem aquele lugar. Como bem me disse Juan, há lugares pelos quais a gente passa e é como se não tivesse passado e há outros lugares que tomam uma intensidade tão grande que valem toda uma viagem. Agora, pensando em Taís, pensando em Juan, compreendo que estes lugares valem toda uma viagem por causa das pessoas. Sem elas, eles não valeriam absolutamente nada. Ao mesmo tempo, esta predisposição das pessoas em estar com as outras, sua forma de ser, sua doação, só fazem sentido quando se compreende o lugar ocupam no mundo.

Quando digo isso, quero afirmar que as pessoas não podem ser se não se conhece o lugar delas em dois sentidos: o seu lugar de fala, sua compreensão do mundo, suas vivências, suas inclinações; e, literalmente o lugar em que vivem, seu espaço.

Afinal, qual o sentido de alguém ser? Quem pode ser? Como se pode ser? O ato de ser é um ato que está em si ou no outro?

Evidente, estas são perguntas extremamente complexas e, talvez, isso daria um grande tratado de psicanálise. Como não é o objetivo fazer um tratado de psicanálise ou o de colocá-la a serviço de um conhecimento disciplinado, longe do mundo da vida, espero poder responder a estas indagações através de algumas reflexões e de mais questões, das quais as primeiras não se independizam e as quais não encerram as possibilidades de análise: há possibilidade de ser sem o espaço coletivo, se não vivêssemos com outras pessoas teríamos a possibilidade de ser? Se não houvesse quem nos reconhecesse, seríamos algo ou alguém? E, mais, é possível ser sem as interações que fazemos com o mundo? Que lugar ocupam as nossas experiências com o mundo e com os outros na formação do nosso ser?

Com estas últimas perguntas, já me aproximo de novo do que gostaria de falar quando buscava compreender a importância de Taís na viagem. Mas, ainda não é o momento de discorrer diretamente sobre o assunto. Antes disso, será necessária uma contextualização maior, bem como a análise das indagações acima ou mesmo de uma resposta complexa para minhas dúvidas primeiras, de uma resposta que reúna todas as perguntas em uma única reflexão.

Nesta direção, sei que é impossível separar o reconhecimento que o outro tem em relação a nós do que pensamos de nós mesmos. Sei que o que somos está muito povoado do que pensam de nós e das idéias que se constroem em torno de nossa forma de ser. Mas, ao mesmo tempo, suponho que este reconhecimento que se tem de nós e que temos de nós é um ato de interação, um ato que mescla as condições do lugar em que estamos com as interações humanas. Isto porque, reconhecer está no ato mais simples de enxergar o outro, de perceber o outro, até o ato mais profundo de conhecer o outro, de saber de suas potencialidades e limitações, de se encantar ou de negar encantamento com a forma de ser do outro. Reconhece

r, em contrapartida, é sentir a presença do outro, saber que não pode ocupar o seu lugar no espaço enquanto esta pessoa estiver ali. Ou seja, é, igualmente, um ato físico, um ato de percepção, aliado à compreensão de que não se pode circular de qualquer modo em certo espaço povoado de pessoas ou de uma pessoa. É um ato que está acoplado à percepção de que é preciso desviar de alguém que está a nossa frente quando queremos seguir adiante, de que não podemos atravessar o corpo de alguém se queremos pegar algo que se encontra próximo deste. E, quando falo corpo, evidentemente, não quero deixar de perceber que corpo é mais que um objeto, que ele representa uma pessoa, um ser, cuja existência se dá na interação complexa entre seu físico e as idéias que, através dele, é capaz de criar sobre outras pessoas, sobre o mundo e sobre si mesmo, capaz de orientá-lo a ação, ao comportamento.

Retomando, toda interação ocorre sobre um espaço e só podem ser compreendidas no seu conjunto, porque vivenciadas no seu conjunto, com as sensações que o espaço, que as limitações e/ou permissões que este vai provocando no ato mesmo de vivenciar.

Dou o exemplo de duas pessoas para quem que o ato de amar está proibido ou está escondido, está ainda oculto aos olhos de certas pessoas. A interação com o espaço para vivenciarem toda a relação, o aguçamento dos sentidos para poderem deixar fluir o prazer sem terem o desgosto do flagrante, ficam muito presentes. Quem viveu isso em algum momento da vida sabe de que falo. Não se pode descuidar dos acontecimentos que se dão no espaço, nem aqueles externos a quem quer vivenciar sua relação nem aqueles que ocorrem entre quem quer vivenciar sua relação. E, ao final, quando sentam ambos para dialogar sobre o momento, impressionante, que a vivência é observada em completo, nada se aparta, nada tem menos importância. Tudo é a experiência. A parte está no todo e todo está nas partes. Se uma das partes é retirada, não se tornará somente uma parte, será uma outra experiência. Espaço e tempo não se separam como não se separam os momentos, sensações, situações que compõem o todo.

Portanto, jamais poderia ser latino-americano, me deparar com a minha latino-americanidade, como gostaria no início da viagem se não conhecesse a América Latina. Para conhecer um povo, preciso conhecer o seu lugar e o modo como ele interage com este lugar.

Antes, queria apenas conhecer as pessoas e não percebia que, para isso, precisava conhecer o seu lugar. Temia encontrar lugares bonitos, receava encontrar lugares cujo sentido para muitas pessoas era exclusivamente turístico, e não os buscava. Até mesmo rechaçava.

Quando encontrei Taís, que estava em busca de lugares bonitos, quando coloquei os meus propósitos em diálogos com os seus propósitos, percebi, ainda que não conscientemente, que valia a pena encontrar-me também com lugares, mesmo quando os lugares ficavam mais distantes devido aos poucos recursos financeiros.

Taís me ensinou a buscar alternativas para interagir com os lugares, para chegar até eles. Se eu podia caminhar durante horas no meio da cidade para observar as pessoas, para conversar com as pessoas, para conhecer novos amigos, podia sair da cidade, podia pegar uma bicicleta e sair de um lugar para outro, podia caminhar pelas estradas em direção montanhas, cachoeiras, podia superar o meu medo de altura para atravessar pontes sobre despenhadeiros ou descer uma encosta agarrado pela mão... tudo para entender que o mundo das pessoas é também formado pelo mundo em que elas vivem.

No decorrer da viagem, devido à interação com Taís, quando percebi que os rumos que já se constituíam iam de novo se desfazendo e dando lugar a outros rumos, até pus em dúvida o que estava fazendo, até me deixei povoar de reflexões sobre os sentidos que surgiam em minha mente para as reformulações de roteiro, para os diálogos. Mas, passado esse período, vivido um tempo apenas reverberando a viagem sem estar no seu interior, ainda que ela esteja sempre em mim, me fez perceber que o rumo que a presença de Taís deu, que o sentido que tomou a viagem foi um sentido importante para minha vida. Não posso dizer se foi o melhor sentido porque, para isso, o conjunto teria que ter sido de outra forma, mas sei que foi um bom sentido, um importante sentido para me fazer ser-estar-sendo com sinto que sou-estou-sendo hoje.

domingo, 27 de janeiro de 2008

25 de janeiro – o dia de voltar pra casa

Era o último dia em Buenos Aires. Estava ansioso para voltar para casa e saber o que tinha de novo em mim, na minha cidade, nas pessoas que eu amo, nos meus amigos, ou seja, queria saber que novo olhar eu colocaria sobre tudo.

Ao mesmo tempo, tinha a manhã para aproveitar Buenos Aires, para caminhar no centro, para olhar aquele céu azul indescritível, para olhar aquelas pessoas e escutar o seu sotaque.

Mas, parecendo que o universo sabia do meu sentimento dividido entre voltar e permanecer, da minha tristeza-alegria daquele instante, o céu tinha se postado nublado. Estava de cara fechada, como se tivesse de mal comigo.

Mesmo assim, não me mandou a chuva. Me deixou caminhar pelo centro e aproveitar a linda, colorida, apressada, barulhenta e populosa, Buenos Aires.

Tinha acordado às 7h da manhã, movido pela pura ansiedade de retornar e de ficar ali o quanto pudesse naquele último dia, e pude aproveitar mais 4h de caminhada, entre às 9h e às 13h.

Depois de depositar o meu olhar contemplativo, embora apressado e encharcado da Buenos Aires que tanto amo e que me afeta inigualavelmente, depois de encontrar Vinícius na rua, voltei ao Clan, agora, para disfrutar um pouco mais da companhia daquelas pessoas que tanto e tão bem me atenderam nas idas e vindas de minha caminha.

Somente não conseguia interagir com Gonzalo, como sempre pleno de seu estresse e da grosseria que o acompanhava naqueles momentos agoniados. Pelo menos, podia brincar com Julio, com Emiliano, com Leandro, com uma menina novata, cujo nome não lembro, com Silvana e com Mari.

Tirei uma última foto com algumas dessas pessoas, falei com Rob, que, de novo, estava no Clan, com Roberto e tomei o rumo do aeroporto.

Enquanto aproveitava os meus últimos minutos de interação com aquele lugar, tive o prazer de ser conduzido por um taxista (infelizmente não perguntei o seu nome nem ele me disse espontaneamente) muito simpático, cheio de estórias, alegre pela vista de tantas pessoas. Quando, diante de sua pergunta sobre minha nacionalidade, lhe disse que era brasileiro, ele tomou um susto.

Segundo ele, porque nunca tinha visto um brasileiro com um espanhol como o meu.

Aproveitei que ele havia me falado sobre isso e dialoguei um pouco sobre a questão da suposta rivalidade entre os argentinos e brasileiros, originada pelo futebol. Nossa conversa foi ainda mais reforçada quando passamos pelo centro de treinamento da seleção argentina e quando lhe contei o episódio que vivenciei em Córdoba.

Sua resposta foi simples e segura: há gente idiota disposta a tudo.

Consciente de que, como brasileiro, não era malquerido naquele lugar, cheguei ao aeroporto. Era como se tudo o que tivesse ido fazer naquele país fosse ter a certeza de que, como brasileiro e por causa de futebol, não precisava ser odiado pelas pessoas. De que podia dialogar, construir compreensões de mundo, unir lutas...

Passei pelo “check in”, paguei a taxa aeroportuária de U$ 18,00 e fui para a sala de embarque. Aí, enquanto esperava por quase duas horas de atraso do vôo JJ 8005 para São Paulo, resolvi tentar mais uma vez falar com Juan. Em vão. Liguei, portanto, para Sérgio. Tinha poucos créditos no cartão telefônico e não pude falar muito. Inclusive, não consegui dizer adeus.

Pode ser que esta seja uma forma de voltar a ver este amigo e a linda Argentina.

Perto de 18h30min. partir da capital portenha e, por volta de 21h, cheguei a São Paulo. Quando sobrevoava a cidade, em procedimento de aterrissagem, empreendi uma conversa com duas mulheres que estavam do meu lado. Chamavam-se Sandra e Márcia. Não sei de que modo, começamos a falar sobre as nossas viagens, sobre nossas experiências, até que contei um pouco de tudo o que havia passado.

Rapidamente, elas se interessaram em saber um pouco mais e conhecer o meu diário de bordo, postado na internet. Márcia queria mostrá-lo a sua filha, também no vôo, estudante de jornalismo que vai, no próximo semestre, cursar uma disciplina sobre turismo, mas também queria tomar contato com a minha vivência e com as fotos com que o deverei ilustrar.

Depois que descemos, fizemos todo o procedimento de entrada no país, passamos pela polícia federal e pela alfândega, pegamos as nossas bagagens e nos despedimos.

Quando estava na sala de embarque para pegar o avião para Aracaju, fazia o olhar passear em busca de alguém conhecido. No primeiro momento, a única pessoa com quem tomava contato era um senhora que, apesar de muito simpática, não parava de falar. Me contava estórias de sua família, me dizia que iria a Aracaju para a formatura em enfermagem de uma afilhada sua...

Enquanto conversamos, tivemos a presença de uma mulher no nosso diálogo. Eu sabia que a conhecia de algum lugar, até que ela revelou que se chamava Simone e que era juíza da 3ª Vara Cível de Aracaju. Foi a oportunidade para que ambas soubessem que eu era advogado e que fazia mestrado em direitos humanos.

A partir daí a primeira mulher com quem conversava só me chamava de doutor. Era muito engraçado.

De repente, outra pessoa conhecida, Wellington Mangueira. Rapidamente, nos falamos porque ele, além de falar com Simone, estava com dor de ouvido. Não queria incomodá-lo.

Quando começou os procedimentos de embarque, me despedi de Simone, que iria para Florianópolis visitar uma filha e segui com a minha bem falante mais nova “desconhecida” amiga. Digo desconhecida porque não sei o seu nome, porque é uma das pessoas que marcaram a minha vida, cujo nome não sei.

Dentro do avião, na poltrona 5F, só para saber que o mundo é feito de grandes, médias e pequenas contradições, me deparei com duas meninas. Pela vestimenta, pela forma de falar, pelos assuntos, e, principalmente, pela tentativa de dialogar frustrada que tive come elas, descobri que se tratavam de um perfil elitista e pouco sociável em relação aos “reles mortais” como eu. Calei e me fiz acompanhar, tal qual tinha feito em uma parte da primeira etapa daquele retorno para casa, pelo samba de Maria Rita.

Ao som daquela suave e humana mulher, cheguei a Aracaju e tive minhas reflexões interrompidas pela minha amiga que gritava incansavelmente “doutor” “doutor”... para que eu pegasse sua mala, a primeira que aparecera na esteira.

Sob os risos e sob a alegria de saber que podia fazer parte da felicidade de uma sergipana residente em São Paulo ao voltar para sua terra natal, não exitei em ajudá-la. Em seguida, nos despedimos e fui buscar minha mãe. Queria abraçá-la. Mas, igual ao que me aconteceu quando voltei da Espanha em 2001, não havia ninguém para me esperar.

Supus que havia esquecido, como da outra vez. Esperei por meia hora e peguei um táxi para voltar para casa.

Com a simpatia de mais um taxista desconhecido, cheguei em casa e descobri que minha mãe tinha ido para o aeroporto.

Enquanto não chegou, perto de 2h da manhã, não fui dormir. Mas, foi só chegar, ouvir suas reclamações, que, aliás, continuavam as mesmas, para que eu fosse deitar.

Imaginava, também, que tudo podia ser diferente daquilo que se mostrava num primeiro instante com a minha mãe. Que a admiração e o carinho que sinto por ela, não precisa nos levar a vivenciar freudianamente nossa relação.

No sábado, enquanto esperava minha irmã e meus sobrinhos, para irmos para a casa de meu irmão, perto de 18h, resolvi ligar a TV e, no canal público brasileiro, passava um documentário (Kollasuyo é o nome) sobre a luta dos indígenas no norte da Argentina e na Bolívia.

Parecia um presente e uma forma de, em mais esta coincidência, ter a compreensão de que a experiência daquela viagem me povoaria por muito tempo. Com lágrimas nos olhos enquanto reconhecia os lugares, a Quebrada de Humauaca, La Quiaca, a fronteira da Argentina com a Bolívia, Villazón, Potosí...

Em Potosí, as minas do Cerro Rico, as mulheres com suas vestimentas típicas (polleras), as injustiças da exploração daquele povo...

Naquelas imagens podia reviver todos os meus sentimentos ao tomar contato com aquele povo, com a forma como os brancos agem injusta e desrespeitosamente com os indígenas e com a incomunicabilidade, apesar das fronteiras impostas pela geopolítica que lhes pertence, de seu território. Mas, em tempo, tinha impressão de, não obstante as contradições do nosso governo federal, liderado pelo Partido dos Trabalhadores, pela primeira vez, o Brasil voltar-se para a América Latina, em relação a que sempre esteve de costas.

E, não era só por causa do documentário que se perguntava e perguntava “onde está a América Latina?”, era porque, pela primeira vez, com a criação de uma TV pública nacional e com a programação com a qual tomei contato antes de viajar, podíamos olhar os povos tradicionais latino-americanos sem julgamentos indevidos e injustos em relação ao seu de viver, mostrando sua cultura, suas lutas, a beleza de seu modo de viver e de superar suas contradições.

Com este documentário, por outro lado, pude compreender que me sinto preparado para olhar, para inebriar-me, para indignar-me com as injustiças, bem como para povoar-me do sentimento e das lutas latino-americanas.

Mais uma vez a descoberta: EU SOU LATINO-AMERICANO!

É assim que volto para casa, LATINO-AMERICANO.

Buenos Aires – o penúltimo dia (24 de janeiro)

Era o penúltimo dia de minha caminhada pelo sul da América Latina. Se no dia anterior estava me sentindo farto, neste dia me sinto povoado de saudade de tudo o que passei, me sinto pleno de estórias e da história do meu povo latino-americano, me sinto pleno de sensibilidade, pleno de latinoamericanidade, ainda que, conscientemente, tinha apenas a sensação de anestesia e medo de perder tudo.

Não conseguia apenas viver o presente. Lamentava a possibilidade de, no futuro, ser tomado por alguma enfermidade que me tomasse as lembranças, que me impedisse de desfrutar de todas elas, de reviver e de reverberar todos os momentos vividos, evidente, com o sabor do tempo futuro, com olhos de outras experiências.

Neste sentido, pensava em passear na rua, em olhar de novo as ruas e o povo de Buenos Aires, o lugar que começou e estava por terminar a minha experiência daqueles últimos 40 dias. Sentia, de igual modo, necessidade de conseguir alguns objetos que marcassem para mim mesmo a minha passagem por aqueles lugares.

Lembrava que, quando estive em Buenos Aires, no início de toda a caminhada, havia visto calendário e postais com o rosto de Che, bem como bandeirinhas dos países por onde iria passar para fixar na mochila, postais de Buenos Aires...

Com o sentido de encontrar recordações simples e baratas, de Buenos Aires e de tudo o que me fizesse lembrar de minha viagem, embora não quisesse nada muito clichê e nada que se tratasse de miudezas ou trecos, saí, pela manhã para o centro da metrópole argentina.

Era o modo de “compensar” o fato de viajar com mochila e não poder levar muitos suvenires dos lugares. Mas, o que buscava não era muito e não era o que o turista comum procura. Queria a música argentina, fotos que retratassem a diferença, a luta argentina e latina, queria encontrar “As veias abertas da América Latina”, de Galeano, em espanhol, para re-ler, agora, que conheço de perto a realidade cruel das minas de Potosí.

Passei toda a manhã caminhando em Florida e Lavalle. Quando encontrei com as minhas buscas no campo da cultura e, do ponto de vista, da lembrança quanto à relação com a caminhada, voltei ao Clan. Queria falar com Juan, com Sergio e Susana, com Horárcio...

Queria me despedir das pessoas que, generosamente, o universo me presentou naqueles últimos dias.

Tentei falar com Juan, nada. Tentei de novo, falei com Ceci, namorada de Juan. Consegui um número de celular, mas não deu. Sentia o incômodo de não ouvir, antes de voltar para casa, a voz de Juan.

Tentei falar com Sergio e Susana. Também, não consegui. Tentei outras vezes, também não consegui. Quando pensava que iria para o Brasil, semelhante ao que me passava em relação a Juan, sem escutar a voz do Sergio e de Susana, recebo um e-mail de Sergio. Liguei, imediatamente para ele e nos falamos. Marcamos um novo re-encontro para às 22h15min., tempo em que esperava já ter acabado o filme “Amor em tempos de cólera”, baseado na obra de Gabriel Garcia Márquez.

Depois que falei com Sergio, conversava com Julio e Angi, quando chegou Virginia, uma Sevillana, que me fez reviver o sotaque andaluz e repassar mentalmente os momentos que tive na Espanha, em 2001. Por alguns momentos, me vi passeando nos bosques próximos da Universidad Internacional de Andalucía, sede de Santa María de la Rábida, no cais de onde saíram as caravelas que chegaram à América... me lembrava de Mariví, de José Ángel, de Verónica, de Majó...

Não era que a conversa com Julio e com Angi era desinteressante. Pelo contrário, foi exatamente o fato de já estar tomado pelos sentimentos gerado com aquele momento que pude absorver tudo o que a presença de Virginia podia proporcionar.

Julio tem uma história muito bonita, de luta e de movimento. Sua mãe foi uma guerrilheira argentina, por isso, foi perseguida pela ditadura militar, teve que fugir com os filhos para o Peru e para a Colômbia. Já grande, Julio assumiu a luta de sua mãe, tornando-se uma pessoa engajada nos debates políticos sobre seu país e sobre a América Latina, percorrendo a Bolívia, o Chile e voltando ao Peru, onde morou por anos.

À parte isso, Julio registrava em fotografia a dureza do povo latino-americano, escrevia suas impressões sobre o mundo e lia muito sobre as impressões dos outros. Enquanto conversávamos, por exemplo, ele tinha uma revista alternativa que tinha uma entrevista com Walsh, morto pela ditadura argentina, com Galeano e com comentários sobre duas fotografias retiradas em 2001, durante a derrubada dos presidentes argentinos pelo povo.

Falamos um pouco sobre isso até que Angi, Virginia e eu seguimos em direção à Lavalle com o objetivo de assistir a “Amor em tempos de cólera”.

Ao final do filme, enquanto víamos os três falando sobre o que havíamos visto, a riqueza de detalhes, a teatralidade, me dei conta de que antes de viajar, eu tinha assistido a “El pasado” e que as mensagens se complementam, agora, não sei se por coincidência, na minha cabeça.

Enquanto “El pasado” me ajudava a compreender a necessidade de encerrar os ciclos para me sentir livre de certos valores, de certas “prisões”, para começar o caminho, “ O amor em tiempo de cólera” me fazia enxergar a possibilidade da entrega à vida com amor ou, na verdade, a viver a vida por amor. Neste caso, se é certo que o amor de Florentino Ariza era voltado para uma mulher (Fermina Daza) e sua vivência estava baseada na vontade de saborear com todas as cores este amor e tudo o que dele adviesse, a mim o filme dava a lição de que toda a dedicação a esta vida deve se dar com fundamento único no amor. Amor é o que move as lutas, as vontades de justiça e igualdade e enche de esperança o coração, fazendo renascer sempre, mesmo diante de cada contradição, minha e das pessoas, seguir acreditando na humanidade.

Agora, era engraçado pensar que ambos os filmes falam de amor. O primeiro do amor que acabou sem dizer fim. O segundo, do amor que não acabou, mas que, para ser vivenciado, precisava ser libertado. Ter uma liberdade, aliás, que, depois de tantos obstáculos, permitisse perceber que os impedimentos, ao final de tudo, compõem as condições que formaram uma forma de viver, de sentir, de superar os medos, de afirmar a poesia e a vontade de transpor tudo o que se impunha ante os olhos amorosos.

O melhor de tudo era perceber que se, como em “El passado”, deveria fechar e abrir novos ciclos para viver a experiência latino-americana, agora, depois de vivenciá-la, com o máximo de sabor que, diante da minha forma de viver e de perceber o mundo, pude construir e absorver, compreender que o amor, de “O amor em tempo de cólera”, vale a pena mesmo quando parece impossível, porque nos prepara para uma forma de olhar e de viver.

Como Florentino Ariza, que só pôde encontrar seu amor no final de sua vida, eu me achava no final de uma jornada e me sentia pleno daquelas vivências, pleno para re-começar, pleno para perceber-me depois de 40 dias de afetação plena da América Latina.

Em questão de segundos, foram todos estes os pensamentos que me tomaram. Como não consigo pensar sem dialogar, pois minhas idéias fluem quando se vêem verbalizadas e tomam contato com a pele de minha boca, dos meus ouvidos, bem como da pele da boca e dos ouvidos de quem me acompanha, toda a reflexão foi compartilhada e se reproduziu na companhia de Angi e de Virginia.

Enquanto eu mergulhava naquelas vivências, naquelas interpretações do cinema para a minha própria vida, elas me acompanhavam e davam o alimento necessário para a minha mente em efervescência. Algumas vezes, elas me olhavam fixamente e, com os olhos brilhantes, me diziam, em silêncio, sua emoção. Eu, embebido daquele sentimento, me sentia mais apto para seguir acreditando nas mensagens que, agora, pareciam claras na cabeça.

O silêncio das ruas do centro de Buenos Aires, quando não era quebrado pela passagem de algum carro, era rompido pelas idéias de amor e humanidade que povoavam aquela conversa. Foi assim, distraídos com aquele diálogo que, para não sermos atropelados, tivemos que correr. A este episódio dei o nome de “correndo por corrientes”, já que Corrientes era a avenida que estávamos atravessando sem perceber que o semáforo estava aberto para o carros e não para os pedestres.

Neste momento também, recuperei com mais força a única preocupação que me fazia interromper e, ao mesmo tempo, impulsionava as minhas reflexões sobre os filmes, pela grandeza do encontro de vida que se abria para mim, a espera de Sérgio na porta do hostel Clan para que nos despedíssemos.

Já eram quase 23h, portanto, apressei o passo e não me detive mais do que o suficiente para me despedir de Angi e, temporariamente, de Virginia.

De longe, olhava o lugar em que Sergio deixou o carro no dia em que foi me buscar para sair com ele e Susana, com a expectativa de que o meu amigo argentino não tivesse ido embora. Mas, diante da inexistência de seu carro no local, quase me acostumava com a possibilidade de não vê-lo antes de viajar, já planejando ligar para ele e Susana no outro dia, antes de partir, quando vi o seu carro na porta do Clan, pela rua Adolfo Alsina.

Por sorte, Buenos Aires, ainda que reclamem os argentinos de seu “perigo”, é uma cidade em que não é temível caminhar ou permanecer no carro, sozinho, á noite. Digo sozinho porque, como Sergio mesmo tinha dito à tarde, Susana não poderia me ver.

Estava com fome e chamei Sergio para caminhar um pouco pela rua Tacuarí, em busca do único lugar aberto e onde se poderia comer empanadas (pastéis de forno). A tentativa de comer foi em vão. Tudo o que o lugar podia proporcionar tinha algum tipo de carne. Desisti e voltei com o meu amigo para o Clan.

Ficamos, por horas, no terraço refletindo sobre aquela amizade que surgia tão forte e tão linda e, mais ainda, refletia sobre o encontro que tive com todas as pessoas que povoou a viagem que estava na véspera de encerrar sua parte “presencial”.

Em algum momento, comecei a falar com Sergio sobre a coincidência dos filmes antes e depois de tudo, mas, sobretudo, sobre a compreensão, daquele momento, de que estava pronto para o presente e para o futuro, existente mesmo com a morte. Pois, esta não interrompe as experiências e as vivências. Mesmo que um se vá, tudo tem o tamanho tal de compartilhamento que tem sempre permanência na vida de alguém, alimenta ciclos, alimenta o amor e a esperança.

Sergio, mais uma vez, com o seu jeito de olhar pleno de crença, sempre com um sorriso oculto, me fitava embevecido da minha fala, e, com isso, eu me sentia mais pleno de poesia e de reflexões.

Ficamos neste diálogo por horas, até que, perto de 2h da manhã, infelizmente, precisei pedir a Sergio que fosse para sua casa. Estava muito cansado. Queria dormir para enfrentar o dia seguinte, dia da minha viagem.

Descemos até a esquina da Alsina com a Tacuarí, lugar em que Sergio deixou seu carro e ficamos aí por mais um tempo. Como Sergio expressava, era difícil aquela despedida. Eu sentia saudade antecipadamente daquele amigo, enquanto ele me dizia do aprendizado que havia obtido no pouco tempo de convivência, da sua vontade de se entregar apenas àquilo de que gosta, de trabalhar com coisas que lhe dêem prazer, da sua única amizade com alguém de outro país latino-americano, mais surpreendentemente, com um brasileiro... (isso porque, imagino, aprendeu desde criança a acreditar na rivalidade futebolística).

Abracei o meu mais novo amigo e, de verdade, senti, naquele momento, que ele conseguia se libertar das dificuldades que tinha antes para abraçar e expressar seus sentimentos.

Eu me emocionava, Sergio se emocionava... depois de um abraço bem forte, tal como fiz com Juan, deixei Sergio sem olhar para trás, de modo que fosse me acostumando com a sua ausência. Tudo isso porque não sei lidar com a perda e, toda partida para mim é uma forma de perder.

Entrei no Clan com um sentimento indescritível de não saber o que fazer depois de tantas experiências. E, ausente de qualquer compreensão, supus que o sono poderia me fazer assentar os pensamentos e, num cantinho da minha cabeça, construiria uma resposta para aquela dúvida.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A reta final

Acho que já estou um pouco farto de viajar. Não sei se já cumpri o propósito do meu percurso ou se, simplesmente, já não consigo enxergá-lo nas andancas que faço.
Depois de 39 dias, viajar não me permite encontrar nada novo e nem encontrar com o novo, do ponto de vista físico. Por isso, suponho que não me inspiro para os encontros espirituais.
Sair de Montevidéo para Buenos Aires, mesmo que tivesse que passar por Colônia do Sacramento antes, nao me afetava. Estava cansado dos dias anteriores em bicicleta e a pé, queria dormir, queria chegar a Buenos Aires, na esperanca de que pudesse me aproximar do dia de voltar para casa. Reviver a minha cultura e, diante dela, absorver o que haveria me proporcionado esta viagem.
Afinal, somente revivendo o cotidiano, posso compreender o que estes dias fora me proporcionaram.
Era este o desejo que me movia desde a noite anterior, quando me separei dos brasileiros em Punta del Este. Precisava cumprir a etapa e me aproximar de casa.
Assim fui dormir e, assim me levantei, depois que fui acordado perto das 5h da manhã, por um pessoal que nao compreende o compartilhamento de dormitórios e arrumava suas mochilas dentro do quarto sem qualquer preocupação em não incomodar as pessoas com o barulho.
Como não consegui dormir, apreveitei o tempo e o computador livre em Montevidéo para escrever as memórias dos últimos dias, ou pelo menos, aquilo que me mais me afetou e, portanto, ficou em minha mente, nos passados mais próximos 3 dias. O reflexo dos momentos constituídos desde a saída de Buenos Aires até Montevidéo e a minha permanencia na capital uruguaia.
Apesar da ansiedade para escrever, para registrar tudo, com o passar da hora, ía ficando nervoso e preocupado em terminar logo para seguir em direçaõ a Colônia. Chegar cedo a esta cidade me faria aproveitá-la um pouco, sem o risco de perder o barco para a capital portenha. Mas, só parei quando meus pensamentos se materializaram completamente em meus escritos.
Perto das 8h saí para tomar um banho, em seguida comi, registrei minha saída e fui, de ônibus, em direção à rodoviária. Isso me demandou tempo suficiente para perder o transporte das 9h30min para Colônia.
Um pouco chateado, quase iria comprar passagem para as 11h30min quando achei melhor perguntar se não havia outra empresa que fizesse o percurso mais cedo.
Acabei viajando às 10h e chegando perto de 13h em Colônia. Minha meta seria deixar as mochilas em um guarda volumes ou despachar no porto com a empresa responsável pela travessia.
Tudo em vão. A empresa que faz a travessia estava sem pessoal para fazer "check in" naquele momento e, na rodoviária, bem próxima ao porto, nao havia vagas para colocar as mochilas.
Duas opções me restavam: ficar parado das 12h45min até as 17h, quando sairia o barco, ou aproveitar a cidade como desse, cheio de mochilas e de peso. Claro, optei por caminhar com as mochilas.
Nao iria deixar que aquele instante passasse por mim sem que eu o aproveitasse de alguma forma. Ainda que já estivesse cansado de viajar, ainda que estivesse com vontade de voltar para casa... não poderia deixar a oportunidade de conhecer outro lugar passar por mim.
Percorri o centro antigo, de colonização portuguesa, onde se travaram batalhas entre portugueses e espanhóis pela região uruguaia. Enquanto fazia isso, procurava um lugar para deixar as mochilas, mas só me deparei com uma pessoa que se ofereceu para isso quando já se aproximava a hora de voltar ao porto.
Tive que fazer toda a minha andança com o peso mesmo. Até que, quase caindo, resolvi passar numa sorveteria, descansar um pouco e tomar quase meio quilo de sorvete. Esse seria o meu almoco.
Em seguida, voltei a caminhar e, já sem rumo, voltei ao porto.
Perto de 17h, embarquei em direção a Buenos Aires. No caminho, conheço Oda, da Suíca, que vai se juntar a uma amiga na capital portenha e seguir novas viagens, bem como uma senhora da província de Neuquén, no sul da Argentina, em que está situada Bariloche.
Foi quase uma hora de muita conversa e de compartilhamento. Nem vi o tempo passar. Neste momento, falávamos sobre a forma das pessoas, sobre as impressões de cada um acerca das pessoas dos distintos países que conhecíamos, que visitávamos, Oda e eu, e compartilhávamos com as interpretações que tinha a senhora sobre as pessoas argentinas e uruguaias.
Já no porto, Oda foi embora que nem se despediu (forma de ser muito estranha de alguns europeus), enquanto a senhora, ao sair, desejou sorte e uma linda permanencia em Buenos Aires.

Satisfeito pela existência de mais encontros, apesar do meu problema em iniciar conversas, da minha dificuldade, agora mais clara na cabeça, de impulsionar, em primeiro momento, os contatos, peguei minhas mochilas e segui pelo centro de Buenos Aires até o Clan. Pelo caminho, não encontrava aquela cidade tranquila que vi no domingo pela manhã. O barulho, a loucura, a presenca de muitas pessoas... tornavam Buenos Aires a cidade louca de que tanto os que vivem aqui falam.
Também, no caminho presenciei dois protestos. O primeiro na praca de Maio, movido por funcionários de um cassino recén-fechado e outro, na Avenida de Maio, cercado pela polícia de choque. Eram jovens que cantavam, tocavam tambores, mas não carregavam faixas, não carregavam cartazes ou outras formas visuais de demonstrar suas reivindicações. Por isso, não consegui descobrir o que exigiam.
Segui meu caminho até o Clan e, pela primeira vez, nao fui bem recebido por aqui. Mesmo quando nao tinha reservas e não tinha vaga, Nico, um dos gerentes daqui, sabendo que já havia estado no local antes, me conseguiu um colchão e tratou de resolver o problema. Ontem, infelizmente, mesmo com reserva não havia vagas e fui antendido por Gonzalo. Este, muito bruto, antes que resolvesse as coisas, tratou de, primeiro, ser mal-educado, de dizer um monte de bobagens, entre elas, que a palavra de que tinha feito a reserva não valia, que só tinha validade a palavra comprovada por um e-mail ou por anotação do pessoal local.
Embora pedisse para que olhasse o caderno de reservas, ele, o que fez foi me pedir que não fôssemos procurar culpados uma hora daquelas.
No final, conseguiu um colchão e me colocou no mesmo quarto em que estava antes de sair para Montevidéo, agora, na parte de cima.
Muito chateado, dialoguei sobre o assunto com Vinícius. Mas, não deixei que isso me tirasse completamente do propósito de aproveitar o final da minha estada em Buenos Aires. Ao mesmo tempo, estava tão cansado que comi, tomei um banho e apaguei.
No meio da noite, chega Owen, com toda a sua atenção e simpatia. Ele me acorda e me oferece a sua cama. Ele iria dormir na casa de sua namorada e deixaria seu lugar vazio.
Como já estava bem instalado no meu colchão, agradeci e lhe pedi apenas que apagasse a luz.
Ele, com mais prova de respeito pelas pessoas, voltou o ventilador para mim, me perguntou se estava melhor para dormir e saiu.
Satisfeito por merecer o carinho de uma pessoa que conhecia muito pouco, voltei a dormir.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Punta del Este - a Miami Uruguaia - 22 de janeiro

Quando pensava que passaria mais um dia sem muita coisa para fazer, sobretudo porque estava cansado dos dias anteriores, já tinha conhecido o que esperava conhecer em Montevidéo... os três brasileiros que estavam no quarto me chamam para ir até Punta del Este com eles e um casal de irmaos que também estavam no hostel.
Pensei pensei... ate que resolvi acompanhá-los. Seria uma forma de interagir com outras pessoas, seria uma forma de brincar e me divertir um pouco na minha própria língua.
Perto de 10h, saímos Heri, Cris e eu, de ônibus, enquanto Conrado, Albertino e Yuri pegaram um táxi do hostel até a rodoviária. Todos levavam suas bagagens, embora somente Cris e Henri fossem registrar sua entrada em um hostel. Os demais iriam deixar suas mochilas em algum lugar e passariam a noite vagando até às 5h30min da manha do outro dia, horário em que voltariam para Montevidéo e, em seguida, sairiam para Colônia e, daí, para Buenos Aires.
Durante toda a viagem de ônibus Henri e eu conversamos, enquanto todos os outros dormiam. Eram vários temas ligados ao nosso dia-a-dia, as nossas formas de vida... até que chegamos ao tema das Fundaçoes de Amparo em Universidades Públicas.
Henri, estudante de Administraçao, defendia a sua existência como forma de garantir a estrutura dos cursos e de aprimorar a qualidade do ensino, embora reconhecesse que isso é mais difícil para os cursos das áeras humanas e que seria importante que os governos federal e estadual (no caso da USP, onde estuda), promover maior aporte de recursos, de modo que nao fosse necessário haver fundaçoes.
Eu, por outro lado, argumentava que as fundaçoes sao uma forma sutil de privatizaçao das universidades, que a manutençao dos cursos através de empresas determinava a formaçao pouco crìtica dos estudantes e profissionais, que os cursos de maior "rentabilidade" se esquivam de lutar pela universidade pública, gratuita, voltada para os interesses públicos...
E, mais ainda, argumentei que as fundaçoes usam o nome da universidade, cobram altos valores por cursos promovidos e nao devolvem nada para as Universidades, principalmente em termos materiais.
Enquanto nos empenhávamos nesta conversa, chegamos ao nosso destino Punta del Este.
Da rodoviária, fomos procurar um lugar para que Cris e Henri pudessem ficar e os meninos pudessem deixar suas mochilas até o outro dia. Em seguida, como precisava de uma boa alimentaçao, insisti na necessidade de procurar um ugar para comer, barato e de boa qualidade.
Sob o efeito de ter econtrado uma boa salada, com preos muito mais baixos que em Montevideo, comprei logo no primeiro lugar em que cheguei. Os meninos, mais espertos e muito cheios de malandragem, tentam baixar o preço do que gostariam de comer, e, tentativas em vao, foram para outro lugar.
Quando chegamos aí, era tudo ainda mais barato. Ah, como me arrependi!!!
Pelo menos, pue complementar minha salada com outras coisas.
Devidamente alimentados, depois de Henri insinuar para uma senhora uruguaia que precisava de casa por milhares de vezes e de sorrirmos muito com tudo o que acontecia, inclusive das compreensoes equivocadas que elas faziam do que Henri e os meninos falavam, fomos para a praia.
Sob muitos apelidos que íamos nos dando, caminhávamos e ríamos sem parar.
A mim, me chamavam de Profeta, de Jesus Cristo, de Che Guevara, Argentino... era muito engraçado e en cantador estar com aquelas pessoas naquele dia.
Era igualmente encantador ver a uniao, o carinho e o respeito que Cris e Henri nutriam um pelo outro. Eram irmaos incrivelmente unidos.
Mais tade na praia tirávamos fotos juntos, caminhávamos, conversávamos...
Até que os meninos, depois de uma caminhada que fiz com Albertino e Yuri em que falávamos sobre o direito, sobre o comportamento dos juízes diante de certos casos, resolveram jogar futebol. Eles que já tinham batido a Argentina no dia anterior por 12 a 11, queriam um novo jogo.
Desse vez, foi um 12 a 4 e um elogio no final de "os brasileiros jogam bonito". Os meninos e Cris, também fanática por futebol e que brincava como uma criança no meio de tantas outras na praia, eram só alegria e comentários do jogo.
No fim da tarde, ao sair da praia, resolvemos passar no supermercado e ir para a rodoviária. No caminho, entretanto, vi uma linda paisagem e tive vontade de conhecer o lugar. Era a praia do outro lado da península de Punta del Este. Era linda, com um pôr-do-sol impressionante, com um pier, com uma passarela de madeira, uma ilha ao fundo...
E, apesar de parecer com Miami, tinha, muito próximo, uns jardins com flores coloridas, lugar em que pedi para que Cris, com a sua beleza, ao mesmo tempo angelical e selvagem, posasse para umas fotos.
Sob brincadeiras e piadas, tirei várias fotos da linda morena dos olhos verdes e, em seguida, fomos para a rodoviária.
Enquanto esperávamos, mais brincadeiras, músicas e algazarra. Cris puxava o coro e, na despedida, gritavam: - vai profeta, vai Jesus Cristo. E, eu, morto de vergonha, tentava fazer de conta que nada daquilo estava acontecendo, embora estivesse, igualmente, feliz pela demonstraçao de carinho.
Às 21h, com o céu ainda avermelhado, tomei o ônibus para Montevidéo e, nas duas horas seguintes, além do cochilo, vim contemplando a lua cheia. Sua beleza era o presente por aquele dia e sua plenitude era o retrato de como me sentia naquele instante.
Perto de 23h20min. cheguei no hostel, organizei minhas coisas, falei com Lis sobre Salvador, sobre a casa de Paulo, dei os telefones dele para ela, tomei um banho e fui dormir.
Queria estar tranqüilo para viajar bem cedo no outro dia.

Montevidéo em bicicleta - 21 de janeiro

A capital Uruguaia parecia pequena e, segundo todos os que a visitam, é pequena. Movido por esta crença, na cidade quase plana, resolvi conseguir uma bicicleta para passar o dia, percorrer as ruas, conhecer as praias...
Na segunda-feira, foi um susto ao sair do hostel e encontrar tudo exatamente como nao era antes. A pressa, a fumaça dos carros e ônibus, o barulho, a quantidade de pessoas... essa nao era a Montevidéo que bailava ao vento, como no dia anterior.
Fui até o hostel "Ciudad Vieja", indicado pelo pessoal do Che Lagarto, para alugar uma bicicleta. Mas, sem encontrar alguma bicicleta em condiçoes de, ao menos, andar, o baixo preço foi apenas uma forma de me deixar chateado. Principalmente, quando chego no Montevidéo hostel para alugar e qualquer bicicleta custava o dobro.
Como queria conhecer mais rápido e percorrer distâncias mais consideráveis do que aquelas que posso fazer em mesmo tempo à pé, aluguei a bicicleta. Isso me custaria o almoço, mas aluguei a bicicleta.
Rapidamente, me dirigi à costa. Ao longo de 19km, passando pelas praias de Pocitos, do Bueceo e dos Ingleses, percorri as margens do Rio da Prata quase confundíveis com o oceano Atlântico.
Nao sei se por que se já tinha caminhado e andado de bicicleta tantos dias, além de ter mais hemácias por causa da altitude que enfrentei no norte da Argentina, no Chile e na Bolívia, nao sentia o esforço. Imprimia boa velocidade e em três horas, percorri os 38km de ida e volta por uma parte da costa de Montevidéo. Só assim, decobri que nao se trata de uma cidade pequena, como, de fato, imaginava. Quando pensava que a cidade se acabava, uma nova enseada se abria ao final de outra...
A cidade linda, moderna, antiga, de algumas poucas subidas e descidas, se mostrava para mim.
Ao chegar próximo do Centro, resolvi desviar da costa e entrei pelo Parque Rondó. Agora, por dentro da cidade, disputava o trânsito com outros tantos ciclistas, carros, motos e ônibus para ver lugares mais distantes, ainda nao visitados.
Depois de 6h30min, agora sim, destroçado, sem forças, tinha que devolver a bicicleta e voltar para o hostel, a poucos quarteiroes de lugar em que deixaria a companheira daquele dia.
Quando cheguei no hostel, tentando comer alguns doces que havia encontrado pelo caminho, se acerca de mim, Ana, uma da pessoas que trabalham na limpeza do hostel. Ficamos conversando por um tempo, até que a ofereci alguns doces. Estava com fome, mas, recuperadas as energias, já nao aguentava mais olhar para coisas com açúcar.
Em seguida, chegou Gisele, uma outra brasileira do Rio Grande do Sul, formada em Administraçao, que tinha vindo passar uns dias em Montevidéo e estava trabalhando uma parte do dia no hostel para pagar sua estada. Conversávamos ate que chegou um rapaz de Salvador e se integrou por um momento ao nosso diálogo. Bom, neste momento, ele cortou a prática de espanhol que eu fazia com Gisele, já que ela está aprendendo a língua.
Mas, como ela precisa trabalhar, isso nao foi de todo um problema. Saímos da sala de TV e fomos para o bar, onde Gisele desepenharia suas atividades nas próximas horas.
Enquanto conversávamos, chegaram três norte-americanos (outros norte-americanos surpreendentes). Chamavam-se Lis, Luís e hava uma outra menina cujo nome nao lembro. Todos, incluídos em um programa de aprendizado da lingua espanhola no Chile, falavam espanhol e eram bastante abertos ao conhecimento de novas culturas. Luís, incusive, é um grande conhecedor da história e da geografia de outros países do mundo.
Diante de tamanha simpatia, nao pude resistir em tentar ajudar Lis, quando ela me disse que iria para Salvador nesta quinta-feira.
Rapidamente, enviei um recado para Paulo, um amigo que tenho em Salvador, para saber da possibilidade de hospedá-la, juntamente com uma amiga.
E seguida, dei-lhe o e-mail de Paulo e os meus contatos, caso quisesse chegar até Aracaju.

O vento baila em Montevidéo - 20 de janeiro

Às 6h30min. da manha me despertei para enfrentar uma nova viagem. Agora, em barco até a cpital do Uruguai, Montevidéo.
Esperava uma nova jornada cheia de novas pessoas, mas traqüila em sua passagem, sobetudo, pelo cansaço físico que já começa a se estabelecer. Afinal, têm sido dias e dias de caminhadas, saídas em bicicleta...
Até perto de 8h esperei a chegada de Nacho no Clan, de modo que pudesse saber se o desconto que me havia prometido se efetivaria. Foi em vao. Ele nao chegava e tive que regitrar a minha saída com Max.
Este só me abateu o valor dos dias em que dormi no chao, ou seja, o valor de duas noites.
Registrada a saída, tomei o rumo à pé do porto em que pegaria o barco para o outro lado do largo Rio da Prata.
No domingo pela manha, Buenos Aires ainda dormia linda e calma. O silêncio era violado apenas pelo cantar de alguns pássaros ou, raramente, por algum automóvel. Era possível apreciar, ao rescente nascer do sol, suas ruas e avenidas completamente vazias de pessoas e plenas de história e de arquitetura.
Com quase 20kg nas costas, depois de 20min. de caminhada, cheguei ao local de saída do barco, em que passei quase 30min. esperando para tirar as mochilas, fazer a emigraçao da Argentina e fazer a imigraçao no Uruguai, tudo no mesmo lugar, numa zona internacional do Porto.
Saído o barco, depois de 3h de convivência com o mundo elitizado dos free shops, das madames e cavalheiros enlouquecidos por perfumes, produtos eletrônicos, comidas de "fino paladar", cheguei ao porto de Montevidéo.
Nao havia nada aberto. Nenhuma informaçao possível. Tentei encontrar um meio com uma mulher da empresa que faz a travessia, mas ela, muito grossa, me pediu que pegasse um táxi ou perguntasse a algum motorista de ônibus.
Resolvi sair do porto e buscar; por mim mesmo, os detalhes de como chegar aos inúmeros endereços de hostéis que, por sorte, havia buscado na internet no dia anterior.
Na saída, um marinheiro e uma recepcionista. Fui em direçao a eles, mas ninguém sabia do que se tratava um hostel ou hostal (coo se costuma chamar em alguns lugares de fala espanhola). Quando apenas indiquei os endereços para os quais gostaría de ir, tudo ficou fácil. E, melhor, pude ter as informaçoes das regioes por onde nao passar, tendo em vista a existência de pessoas que podem cometer furtos e assaltos.
Caminhando pelas lindas ruas, também vazias naquele domingo, do centro antigo de Montevidéo, era como se outro novo se me abrisse. Ao mesmo tempo em que via a arquitetura e o formato das cidades do sul brasileiro e de Buenos Aires, via a sigularidade, via a Montevdéo, apenas.
Até que tive estes sentimentos cortados pela gravaçao de um filme. Tendo algumas ruas cortadas, carregando peso, tive que fazer arrudeios e mais arrudeios, portando, sair da rota traçada pelos únicos informantes que encontrei.
Passava por uma rua, o filme, outra rua, outra cena do filme, uma praça, mais filme...
Depois de caminhar mais de uma hora, cheguei, quase morto, ao Che Lagarto, na praça da Indepedência, sede do governo Uruguaio. Acertei minha entrada, tratei de escrever algumas coisas e saí para comer alguma coisa.
De pronto, percebi que Montevidéo nao é uma cidade barata como me diziam. Para comer qualquer besteira, sempre gastava o equivalente a R$ 9,00 ou R$ 10,00, quando, por esse preço, é possível almoçar em alguns lugares de Aracaju.
Em seguida ao "almoço", fui caminhar. Estava morto, mas queria conhecer a cidade e, para isso, só caminhando.
Por quase 4h percorri, ida e volta, uma avenida que corta a cidade desde o centro antigo até a parte nova de Montevidéo.
O sol era forte, mas o vento frio bailava sobre a cidade tranqüila. O céu azul me ajudava a olhar com mais vigor para as fotografias que a cidade me proporcionava de suas cúpulas, de sua gente, de suas fontes e de suas inúmeras estátuas de cavalos (como podia e esquecer que aqui o que mais tem é estátua de cavalo?).
Via crianças brincando (aproveitando as praças), casais namorando... eu me perdia nas brincadeiras das crianças...
Enquanto voltava, quase sem forças nas pernas, encontro, numa praça, um grupo de pessoas idosas , ao som do tango de baile (mais lento e menos caras e bocas), dançando, arrodeado de outros idosos. Era lindo!
Naquele momento, era como se Montevidéo dançasse para mim, bailasse, empurrada pelo vento fresco, e fizesse, com o seu movimento, bailarem aquelas pessoas. Eram quase 21h e o céu ainda tinha um resto de sol.
A poesia foi apenas interrompida pelo desejo incontrolavel de ir ao banheiro. Queria fazer xixi, mas estava tudo fechado, tentava encontrar um lugar, mas tinha polícia, tinha gente...
Mesmo assim, queria, ainda, aproveitar o pôr-do-sol na beira do Rio da Prata, antes do seu encontro com o mar. As gaivotas faziam no céu, em homenagem ao dia que jazia, um outro baile.
Com aquelas imagens , voltei ao hostel, queria tomar um banho, sair para comer algo e dormir.
Quando cheguei no hostel, encontrei, no mesmo quarto que eu, um grupo de três brasileiros, dois de Minas Gerais, estudantes de direito, e um do Rio de Janeiro, formado em Economia.
Saímos juntos para comer e conversar. Mas, nao fomos muito longe. Depois de nos sentirmos ameaçados por um cara que nos seguia e pedia dinheiro, no calçadao do centro antigo de Montevidéo, acabamos parando em uma pizzaria. Neste lugar, encontrei saladas e suco. Tudo o que eu precisava, depois de dias sem me alimentar bem.
Enquanto comíamos, nao sei em que momento, surge a conversa sobre Direitos Humanos, políticas públicas, direitos do trabalhador...
Para Conrado, o economista, e para Yuri, um dos estudantes de direito, os encargos sociais e os direitos dos trabalhadores, precisavam ser relativizados. Segundo eles, é muito caro manter os postos de trabalho e, cortar direitos seria uma forma de aumentar o número de empregos formais.
Evidentemente, discordei dessa posiçao, acompanhado por Abertino, formando em direito. A exploraçao do trabalho, como melhor pode ser chamada a relativizaçao dos direitos trabalhistas, jamais será uma garantia de emprego. No atual estado de coisas, exige-se um padrao de trabalhador e trabalhadora altamente qualificados e dispostos a ganhar menos. A populaçao de "sobrantes", pessoas que nao tiveram oportunidade de estudar e nao têm "lugar" de trabalho possível, continuará sem emprego em qualquer circunstância, salvo uma açao direta do Poder Público para a criaçao de condiçoes (cooperativas, associaçoes) para que, grupos humanos, completamente excluídos de condiçoes dignas de vida e de trabalho, possam encontrar sua vocaçao.
Para completar estas idéias, levantei ainda o argumento de que a economia precisa enxergar as pessoas, antes de mirar os interesses das empresas.
Sob este tema de discussao, comemos e nos dirigimos para o hostel. Mas, enquanto fui dormir, os três resolveram sair para um barzinho e tomar algumas cervejas.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Caminhos cruzados

Buenos Aires parecia parada aos meus olhos e, para que nao me cansasse de passar todos os dias pensando somente, resolvi caminhar mais um dia. Era como se quisesse fatigar o meu corpo e sentir tudo o que a cidade pudesse oferecer a um caminhante.
Assim, depois das 10h da manha, saí em direçao a lugar nenhum, em busca de nao sei o quê.
Segui por Corrientes... tomei como referência shoppings para ter uma idéia do quanto iria caminhar e para ter, pelo menos, condiçoes de encontrar mais facilmente informaçoes e pedidos de ajuda, em caso de eventual perda do caminho.
Depois de 2h, cheguei próximo do número 3400 em Corrientes. Era um shopping, cujo nome nao lembro, em que fiz um rápido percurso e saí. Tomei o metrô de volta ao Obelisco, na praça da República, e daí, reiniciei a caminhada.
Fui até Palermo, em uma área linda e bem afastada do centro de Buenos Aires Capital Federal. Aí, sabia o que buscava. Queria encontrar uma loja que fabrica e vende malabares.
Pelo que vi na internet, eram coisas muito legais e queia ver se encontrava algo que pudesse levar para o Brasil.
Bom, mas era tudo muito caro e resolvi deixá-los todos em seu devido lugar.
Quando ía em direçao ao centro, resolvi ligar para Sergio e Susana para ver se conseguíamos sair, pelo menos, à noite, depois da tentativa frustrada do dia anterior.
Consegui falar com Sergio, que às 20h passaria no Clan para me pegar.
Sair com Sergio e Susana foi o que de mais importante me passou no dia. De fato, foi uma linda encruzilhada.
Depois de rodar em carro por quase 1h30min, com os meninos perdidos em sua própria cidade, chegamos à praça Itália em Palermo. Em meio aos milhares de pessoas que se amontavam nas calçadas e de bares e restaurantes de Palermo, buscamos um lugar onde aportar e passar alguns momentos conversando.
Quando encontramos um lugar que nos agradou, nao havia lugares na calçada, somente na parte de dentro. Ao entrarmos, Susana percebeu que havia uma mesa recém-desocupad. Enquanto Sergio e ela davam a volta temerosos por nao perder a mesa, eu, que nao perder a criança que tem dentro de mim, pulei a janela e me sentei.
Isto foi o mote para que inciássemos uma linda conversa sobre molecagem, ser criança, tolhimento...
Em seguida, como Sergio e Susana têm um encantamento pelos sons da língua portuguesa, ficamos brincando com as palavras que tinham sentido diferente, embora se escrevessem de forma semelhante, nas nossas línguas.
A melhor parte dessa conversa foi quando começamos a falar dos palavroes. Susana era pudica. Tudo o que se dizia, ela afirmava que era pesado, nao repetia os palavroes, nao queria que Sergio me ensinasse ou repetisse quando nao entendia. Por isso, começamos uma conversa filosófica sobre a repressao da sexualidade e sua face disposta na negaçao do corpo humano com lugar de beleza e satisfaçao. Afinal, todos os palavroes tem algo a ver com o corpo e com a expressao da sexualidade.
Em alguns momentos, Susana aproveitava para brincar com o meu modo de falar espanhol, que se assemelha mais ao modo ibérico que ao argentino, e fazer algumas correçoes no meu modo de dizer algumas coisas. Por um segundo, quando lhe disse algo sobre a imposibilidade de falar tudo perfeito como uma pessoa de fala espanhola, ela pensou que eu estivesse chateado e me disse que nao iria mais falar sobre isso.
Na verdade, eu gosto que me corrigem porque tenho mania de perfeiçao, e essa seria uma forma de tornar o meu espanhol cada vez melhor. Quando as pessoas dizem que falo perfeito, nao acredito. Sei que ainda posso melhorar.
Bom, ficamos horas conversando, até que bateu o cansaço e a lembrança de que no outro dia iria para Montevidéo bem cedo.
Tiramos fotos juntos... tirei algumas fotos de Susana e Sergio e iniciamos o caminho para o hostel.
Enquanto percorríamos os caminhos portenhos, ambos me falavam do nosso encontro, de sua satisaçao em me conhecer, de como falavam de mim para sua família... nem de perto imaginavam como eu era quem estava feliz em ter encontrado pessoas tao lindas, nem imaginavam que sua existência em minha vida a havia posto publicamente para que todos os meus amigos, amigas e quem quisesse ler o que escrevo, pudessem saber deles.
Para completar sua entrega, na porta do Hostel, Sergio, com os olhos molhados, e Susana, chorando, me disseram que a minha vida havia tocado suas vidas. E, mais... com um pouco de exagero, me lembraram que já tinham me dito que eu parecia com Jesus Cristo e que, para eles, eu era o seu Jesus Cristo. Que era um modelo de ética e de dedicaçao para as pessoas.
Fiquei feliz com tudo isso. Mas, ao mesmo tempo, me senti obrigado a suportar, mais uma vez, a responsabilidade de seguir uma vida com etica, respeito e dedicaçao às pessoas sem decepcioná-las. O que, às vezes, me tira o direito de ser eu mesmo, com os meus limites e capacidades. Me impede de dar outros rumos a minha vida, quando nao quero seguir a mesma rota.
Cantei para eles Cançao da América. Emocionados, nos abraçamos...
Embora muito aberto fisionomicamente para a vida, senti que Sergio tem problemas com o abraço. Nao consegue dar-se no momento do abraço.
Os argentinos se cumprimentam com beijos, mas tudo isso é, muitas vezes, apenas um modo automático e sem sentimento de se encontrar com as pessoas. O próprio Sergio confirmou que isso lhe passava, que nao conseguia dar um abraço, nao obstante quisesse libertar-se do fato nao saber fazê-lo.
Em seguida, me disse que, de outra vez, me daria um verdadeiro abraço.
Evidentemente, nao deixei que essa outra vez se demorasse. Naquele mesmo momento, dems um grande e emocionado abraço. E, a ele unimos Susana. Ficamos os três abraçados por algum tempo, no meio da rua, sem que ninguém pudesse entender o que passava. Apenas sentíamos a existência um do outro.
Ao final, nos despedimos mais uma vez e entrei no Clan. De cara, encontrei Vinícius, lhe contei o que passou e ele também se emocionou. Em seguida, me deu tambem um abraço, antes que me emprestasse seu desertador/celular para ajudar-me no outro dia.
Encantado pela magia daqueles momentos, arrumei as mochilas e fui domir. Cansado e feliz em existir, em encontrar pessoas, em ser um caçador de nuvens.
Um caçador de nuvens... como é bom caçar nuvens.