quarta-feira, 28 de novembro de 2012

"Está provado que só é possível filosofar em alemão"


José Humberto de Góes Junior


Quatro textos alemães para a seleção de pós-graduação em direito na UnB... é a mais evidente manifestação de um complexo de inferioridade acadêmica que me faz pensar. Não por uma questão de nacionalismo. Mas, por uma questão de libertação das mentes colonizadas que não encontraram o seu lugar, por consequência, a libertação de todos nós e de todas nós. 
Para isso, é preciso, sem dificuldades, constatar que grande parte de nós sofrermos de um complexo de inferioridade acadêmica gerado a partir de um trauma ou, como podemos dizer, de um sócio-trauma, cuja origem se estabelece no misto entre sonhos e desejos incompreendidos, irrefreáveis e irrealizáveis manifestados pela pulsão erótica de sermos quem não somos e de possuirmos o que não possuímos. Neste caso, a racionalidade do outro, a sua forma de viver, a sua forma de estar no mundo.
Sonhamos com o mundo europeu e norte-americano; sonhamos em fazer parte dele; em ganharmos notoriedade e reconhecimento nesses locais (essa seria a tão esperada aprovação da nossa suposta capacidade intelectual!) enquanto o nosso super-ego nos lembra que somos brasileiros, habitantes do terceiro mundo, incapazes de fazermos parte do mundo idealizado como mais racional e mais prodigioso; do mundo que produz a colonização dos demais mundos e dos demais saberes ao impor a sua verdade. Por outro lado, o não saber conviver com a pecha de colonizados, nessa tentativa de ser o que não somos adotando a verdade do colonizador, tentando ser ele, nos obriga a integrar um processo permanente de re-colonização e de re-submissão por meio de uma atitude que reforça o poder do colonizador sobre as mentes, que dá a ele o poder de dizer como todos e todas somos, como pensamos e como devemos pensar e viver. 
Mas, o colonizador, como as elites diante de policiais que incorporam os pontos de vistas dos dominantes para parecerem menos comandados na sua ação contra os oprimidos e explorados, nunca nos deixarão sermos iguais a eles, porque a nossa suposta inferioridade sustenta o seu poder e mantém a sua capacidade de nos dizer o que somos, de nos nomear e impor as palavras com as quais identificamos o nosso mundo. Ele nos quer apenas como mensageiros de uma palavra que não é nossa e não nos é apropriável jamais. 
Nessa condição, fazemos tudo o que manda o mestre sem olharmos ao nosso redor e percebermos que há conhecimento em tudo, que há saberes complexos jamais observados pelo colonizador de mentes e de espaços, porque os seus olhos estão postos desde um lugar e este lugar não lhes dá a capacidade de enxergar tudo em todos os tempos (por isso, é um olhar também frágil, localizado, limitado e parcial de tudo o que existe). Por isso, no processo de repetição, deixamos de visualizar o que há para além do já visto, o que há para além do não visto; que produzimos saberes e conhecimentos científicos, filosóficos e outras ordens de conhecimentos que a razão europeia não é capaz de entender, de tão simples que ela é. 
Mas que isso, deixamos de entender por que fazemos pós-graduação no Brasil, por que gastamos algum dinheiro público em bolsas de pesquisa, por que temos a universidade. É para ser espelho do próspero?
Se não acreditamos que podemos produzir conhecimentos, por que estamos aqui? Por que temos a nossa própria universidade? O que estão nos ensinando? O que estamos ensinando? 
Certamente, estamos repetindo mais e produzindo menos.
Mas, olhando um pouco para a realidade analisada, eu me sinto impelido a lançar também outra tese. É a tese da vaidade!
Afinal, o direito na UnB tem professores bem conhecidos no Brasil todo por suas ideias genais e singulares; tem professores conhecidos no Brasil todo por suas ideias europeias. Tem professores que produzem muitos livros... 
Posso estar errado, mas, talvez, para evitar valorizar os colegas de casa, fortalecer correntes teóricas internas com as quais alguns não concordam; para também evitar colocar em mesa as diferenças de pensamentos localmente produzidos, os nossos professores preferem buscar livros de um outro mundo, de onde bebem alguns que participam de uma disputa acirrada por um poder volátil que só eles enxergam. Essa também é uma forma mais sutil de justificar e enaltecer as ideias que certas pessoas tentam propagar, ideias colonizadas, sem dar a chance para que pensamentos descolonizados se firmem ou se reafirmem, mostrando que a única saída é deixar de ser repetidor ou banir os repetidores, ainda que inteligentes repetidores.

Após alguns debates suscitados por meios eletrônicos em torno dessas ideias, surgem duas teses para defender a escolha dos livros alemães. A primeira delas afirma que a indicação dos textos se deu por mera coincidência. A segunda, aliada à primeira sempre para justificar a boa-fé dos professores que indicaram os textos, anuncia a desimportância da nacionalidade ao se falar em pensamento crítico e em estudos do direito.
Quanto à coincidência, é preciso compreendê-la. Essa co-incidência de pensamento, ou seja, essa convergência de pensamentos, pode revelar a manifestação da incidência de um inconsciente dominado ou devidamente colonizado. Pode manifestar, por exemplo, a uniformidade ou a tentativa de uniformidade de pensamento; a dificuldade de enxergar para além do que se pode ver; pode manifestar a falta, mais que tudo. Além disso, quando não devidamente observadas, as boas intenções, opostas para defenderem o argumento de que não foi proposital a convergência para certos tipos de pensamento, podem se voltar contra si mesmas, podem se voltar também contra o propósito crítico de que elas porventura queiram se munir; de forma simples, podem fazer valer o provérbio de que "de boas intenções o inferno está cheio".
No que concerne à nacionalidade, também não se fala em adotar textos apenas porque são de nacionalidade “A” ou “B”. A nacionalidade dos autores dos textos, a localização deles e de seus escritos, podem não significar nada diante do pensamento colonizado. Na verdade, poderia citar uma enormidade de pessoas nacionais de quaisquer partes que esboçam conservadorismo e capacidade de repetição do pensamento alheio tido como mais importante. O problema está em deixar de olhar para o que fazemos, para o que produzimos, para a sua qualidade; em abdicarmos um pensamento próprio em nome de um pensamento "melhor" que o nosso.
A falta de livros dentro de um contexto brasileiro e latino-americano, em verdade, fala mais do que podemos imaginar. Indica o que há nas nossas estantes e o que falta nelas. Mas também nos faz pensar na razão de faltarem outras leituras. Por isso, não considero que seja uma "divisão bizarra" a colocação de um pensamento do sul diante de um pensamento do norte hegemônico, que já demonstrou quase todos dos efeitos negativos que as suas verdades são capazes de criar.
Sem prender o fascismo ou o menos grave chauvinismo, penso que é preciso olhar mais para o que fazemos e ver o quanto disso fala mais de nós do que as teorias dos outros são capazes de falar de nós. Ainda mais quando vemos que a Europa, tida como a perfeição a ser alcançada, história a ser copiada, futuro de todos os países que se pretendem “ricos” e “verdadeiramente democráticos”, com todas as suas teorias políticas, econômicas, ambientais..., tomba!
E corre maior risco de cair ao deixar à mostra as suas vísceras, ao evidenciar em suas democracias exortadas a base em que está assentada, a legalização da exceção e da violência como meio de realizar os seus processos de socialização. Seja a violência das colonizações, das guerras, seja a violência de uma suposta racionalidade democrática que se levanta para a perseguição dos estrangeiros ou dos seus cidadãos que protestam contra um sistema que os exclui, que os mutila, que os jogam a rua, mesmo em tempos de frio e neve, como agora.
Nos países da democracia e dos direitos humanos, só pra dar um exemplo de algumas das suas criações teóricas mais exportadas para todo o mundo com tanta verdade e inquestionabilidade, o que se vê é uma intensa criminalização dos movimentos sociais sem a existência de mecanismos coletivos de defesa de direitos que não o protesto e a desobediência civil.
Pensar no que lemos e no que impomos como importantes em processos de seleção para programas de pós-graduação críticos em direito como o que temos na UnB significa mais do podemos imaginar. É chamar atenção para o olhar e para como o colocamos no mundo, mas, acima de tudo, é chamar atenção para a complexidade de pensamentos que falam de uma realidade negada da história, como a América Latina e o Brasil, com tantos novos ensinamentos e com tantas teorias que os estrangeiros vêm construir aqui, enquanto nós, com o nosso malinchismo, sequer podemos enxergar que existem.
Por exemplo, em alguns dos argumentos contrários ao que digo, afirma-se que o Brasil possui a Tropicália, o Manguebeat, o Cinema Pernambucano hoje, o Movimento Armorial, a Escola de Direito do Recife (vou acrescentar o Cinema Novo e a Semana de Arte Moderna que inspirou o sentido dos anteriores e deixar em aberto as possibilidades, afinal, criamos muito em todas as partes)... efetivamente, temos tudo isso.
Muitos dos movimentos artístico-culturais indicados surgem no Nordeste brasileiro, tanto quanto surgem por lá muitas teorias, muitos conhecimentos e saberes de outros campos (Paulo Freire, as teorias sobre pesquisa-ação, algumas concepções de direitos humanos mais complexas). Mas, se o Brasil se tem pouco em suas bibliotecas, ele tem menos o Nordeste. Nem nas escolas nordestinas nem nas faculdades nordestinas, conhecemos os pensadores brasileiros, como também não conhecemos os pensadores de lá, a literatura de lá, a música do povo de lá. No caso de Sergipe, temos Tobias Barreto, Sílvio Romero, Gumercindo Bessa, Olímpio Campos, que foram muito responsáveis por erigir a Faculdade de Direito do Recife como uma escola de pensamento jurídico. No campo da educação e, para alguns da sociologia, temos Manoel Bonfim, um sergipano que estuda a América Latina (abandona a medicina para construir teorias sobre uma educação mais apropriada culturalmente a nossa realidade e é também um dos poucos pensadores do início do século 20 que atacam teorias de embranquecimento da população). Infelizmente, só o conheci muito tarde quando, na Argentina, me perguntaram se eu, como sergipano, teria algo dele para emprestar, e, mais profundamente na UnB, quando me inscrevi em uma disciplina no programa de pós-graduação em sociologia, que, em geral, também não lê os brasileiros e os latino-americanos. Foi aí também que eu descobri mais de Tobias Barreto, Sílvio Romero, Gumercindo Bessa... embora não o suficiente.
Fechados os parêntesis, sobre os movimentos que foram citados como contra-argumento, seria interessante observar suas repercussões no nosso modo de fazer de ciência. Afinal, em sua grande maioria, são de natureza antropofágica e criativamente singulares, ou seja, questionam o culturalmente imposto e exortam os nossos artistas a produzirem a música e a literatura brasileiras. Diga-se de passagem, não fizeram mal. Hoje, ninguém diz que estavam errados em criar algo nosso, em criticar o imposto. Com isso, transformaram a música brasileira na mais admirada do mundo.
É disso que falo quando incito a olhar mais para dentro de nós, para a América Latina. Falo em criar algo autêntico que fale de nós, que não precise manter colonizados também do ponto de vista científico, tanto quanto fizemos na música, na literatura, as pintura e em outras artes. Por exemplo, admitindo uma possibilidade concreta de pesquisa especificamente quanto à Tropicália, como seria interessante pensar e entender os seus efeitos no direito brasileiro e na forma como pensamos direitos humanos.
Por fim, estou de acordo que não tenha havido má-fé na escolha dos livros para a seleção. Mas também considero que falta ler para além do que se lê. Se não lemos, não temos outros autores e outros pensamentos para indicar. Saber que esses movimentos existem, que outras ideias existem, que pensamentos brasileiros e latino-americanos existem, não é o suficiente para que, localizados na estante dos “exóticos” dos nossos compartimentos cognitivo-cerebrais, saiam para co-habitar as nossas mesas de cabeceira junto com todos os outros.  



sexta-feira, 9 de março de 2012

Minha esperança, minha Aracaju

Minha linda Aracaju, vivo longe, mas não te deixo porque quero viver sempre por perto... seu cheiro e sua aurora, mesmo quando chove, não me rodeiam, me entremeiam e me fazem ser.
Meu ser está em você e você me faz, assim, tão manso, tão guerreiro, tão ávido. Sua mão me beija e a sua voz me acaricia, mesmo quando o que me deixa é só a sua saudade. É uma pena o que fazem com você agora...
Só vejo coisas que a povoam desde cima, não escuto tua brisa nem o gosto do seu sol. É doído... pisar teu solo porque vejo que ele tem dono e o dono da conivência. Mas, não te abandono, te quero minha e contigo estarei.
Eles vão passar e nosso coração está e estará unido no amplexo surdo de nossa indissociabilidade materna.
Já ouço a sua possibilidade que é um mar... pronto, ali, esperando...
Por enquanto, vou te lutando pra que sejas um dia de teu povo. Terá seus mangues, seus bosques... suas ruas, seu âmago, tudo será vivido com um vívido sem donos que impedem circular... que mandam, que pagam, que compram.
Não importa que vendam, nosso brilho está em nossos pulsos e nossos olhos estão marejados do nosso suor, nosso sangue carrega as pedras do novo dia.

Que não saia dos nossos sonhos, porque de te sonhar, seremos mais, muito mais. Dos vividos tempos, seremos-sempre para ser sempre-aí.

Humberto/Betinho Góes - em homenagem aos 157 anos de Aracaju.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Polícia serve para quê?... vamos perguntar a estudantes de Teresina!


Humberto Góes

Certa vez, escutei de um Coronel da Polícia Militar do Estado de Sergipe após uma ação de terror contra trabalhadores sem-teto em Aracaju (tão violenta como a que vemos em face de estudantes em Teresina), que a polícia sempre precisa agir para garantir a ordem pública e o cumprimento da lei no imediato momento em que uma situação de descontrole está se dando.

Segundo ele, normalmente, o policial, originário de “setores desfavorecidos da sociedade” (palavras que emprega para definir as classes subalternas, dominadas, humilhadas, controladas, dominadas pelo poder econômico que conduz o Estado e impõem a todo povo acreditar que a defesa de certos interesses é a defesa de seu próprio interesse), “não gosta de cumprir certas ordens e participar de certas operações”. De novo aspas, “mas..., a polícia precisa agir de imediato. É como o seu filho em casa, se ele faz xixi no tapete da sala, a empregada doméstica, imediatamente, terá que tomar providências para repreender aquele ato”.

Em outras palavras, o policial parece saber quem manda e a serviço de quem ele se encontra, afinal, ele faz o papel da empregada doméstica, que age segundo as ordens e os interesses do patrão, que deve combater o xixi no tapete da sala imediatamente, sob pena de ela responder perante quem manda, por sua omissão, por não agir na conformidade da ordem que se não conhece, deveria conhecer. Com a diferença que, no caso da criança que faz xixi no tapete da sala, a empregada doméstica, a serviçal, não está autorizada a bater.

Com relação ao que ocorre em Teresina, o impulso mobilizador da garantia da ordem sequer foi de fato observado, afinal de que garantia da ordem se fala: a da falta de licitações do transporte público? A da falta de qualidade e de respeito em relação ao cidadão e à cidadã no cumprimento do seu direito ao transporte e, com efeito, ao seu direito de ir e vir? Não, certamente, não é dessa ordem de que se fala. É da ordem daqueles que usam o aparato do Estado para, através da violência, seguir explorando o povo, ditando regras capazes de gerar controle popular para produzir mais e mais exploração. É da ordem daqueles que fazem do público transporte o seu direito de propriedade. É, enfim, a garantia da ordem daqueles que sempre mandaram e desejam continuar mandando.

Pra isso, necessitam tratar a polícia como seu exército particular de jagunços e fazer o policial acreditar na sua condição de capitão-do-mato na defesa do patrimônio do senhor. Outrossim, assimilar uma postura servil e, para melhor servir, assumir pra si, mesmo tendo sido originado entre os oprimidos, os interesses do senhor como seus próprios interesses; incorporá-lo, pensar como ele pensa, entumecer-se da ira que o senhor teria para revelar em si, a sanha e a violência de quem manda; agir como ele agiria, acreditando que pode mandar como ele, atuando contra quem ousa fugir da ordem, da ordem do senhor, aquela constituída previamente para servi-lo e aos seus interesses.

Como diz Galeano, vivemos “uma escola do mundo ao avesso”. Em lugar de cumprir a ordem e as necessidades do povo, as forças públicas, que são pagas com dinheiro do povo, servem aos interesses privados, agem como forças particulares. É certo, usa o pretexto de que estava liberando uma via pública para a garantia do passo, mas, de fato, no fim da mesma via pública, o que vinha eram ônibus lotados de olhos sedentos e bocas salivantes dos papa-moedas; eram lotações de mais de uns poucos e particulares interesses, daqueles mesmos interesses que, para permanecerem em voga, financiam campanhas políticas de vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e presidente da república; destroem o meio ambiente e “removem” os pobres dos espaços da cidade que interessam para a construção de bairros de luxo, removem comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhos e camponeses para promover o “desenvolvimento” com construção de grandes empreendimentos para escusos interesses travestidos de “interesses do povo”; mais que isso, mantêm o povo refém do “clube dos amigos” e transformam a “indocilidade” dos pobres num “Belo Monte” de problemas que precisa combatido enérgica e imediatamente.

Mas, pra que pensar nisso? Ao final de tudo, depois de ter feito o trabalho sujo da força, quando o policial pega o ônibus e chega em casa, olha pra sua esposa, filhos e filhas, ele volta a ser apenas mais um no meio da multidão. Para ele: Parabéns soldado, você cumpriu o seu papel!

Para saber mais sobre a violência policial contra protestos pacíficos em Teresina pelo direito ao transporte público, acessar:

http://www.portalaz.com.br/noticia/geral/235717_quinze_manifestantes_sao_presos_na_central_de_flagrantes.html

http://www.youtube.com/watch?v=14Fuj344r4g&feature=youtu.be