domingo, 27 de janeiro de 2008

Buenos Aires – o penúltimo dia (24 de janeiro)

Era o penúltimo dia de minha caminhada pelo sul da América Latina. Se no dia anterior estava me sentindo farto, neste dia me sinto povoado de saudade de tudo o que passei, me sinto pleno de estórias e da história do meu povo latino-americano, me sinto pleno de sensibilidade, pleno de latinoamericanidade, ainda que, conscientemente, tinha apenas a sensação de anestesia e medo de perder tudo.

Não conseguia apenas viver o presente. Lamentava a possibilidade de, no futuro, ser tomado por alguma enfermidade que me tomasse as lembranças, que me impedisse de desfrutar de todas elas, de reviver e de reverberar todos os momentos vividos, evidente, com o sabor do tempo futuro, com olhos de outras experiências.

Neste sentido, pensava em passear na rua, em olhar de novo as ruas e o povo de Buenos Aires, o lugar que começou e estava por terminar a minha experiência daqueles últimos 40 dias. Sentia, de igual modo, necessidade de conseguir alguns objetos que marcassem para mim mesmo a minha passagem por aqueles lugares.

Lembrava que, quando estive em Buenos Aires, no início de toda a caminhada, havia visto calendário e postais com o rosto de Che, bem como bandeirinhas dos países por onde iria passar para fixar na mochila, postais de Buenos Aires...

Com o sentido de encontrar recordações simples e baratas, de Buenos Aires e de tudo o que me fizesse lembrar de minha viagem, embora não quisesse nada muito clichê e nada que se tratasse de miudezas ou trecos, saí, pela manhã para o centro da metrópole argentina.

Era o modo de “compensar” o fato de viajar com mochila e não poder levar muitos suvenires dos lugares. Mas, o que buscava não era muito e não era o que o turista comum procura. Queria a música argentina, fotos que retratassem a diferença, a luta argentina e latina, queria encontrar “As veias abertas da América Latina”, de Galeano, em espanhol, para re-ler, agora, que conheço de perto a realidade cruel das minas de Potosí.

Passei toda a manhã caminhando em Florida e Lavalle. Quando encontrei com as minhas buscas no campo da cultura e, do ponto de vista, da lembrança quanto à relação com a caminhada, voltei ao Clan. Queria falar com Juan, com Sergio e Susana, com Horárcio...

Queria me despedir das pessoas que, generosamente, o universo me presentou naqueles últimos dias.

Tentei falar com Juan, nada. Tentei de novo, falei com Ceci, namorada de Juan. Consegui um número de celular, mas não deu. Sentia o incômodo de não ouvir, antes de voltar para casa, a voz de Juan.

Tentei falar com Sergio e Susana. Também, não consegui. Tentei outras vezes, também não consegui. Quando pensava que iria para o Brasil, semelhante ao que me passava em relação a Juan, sem escutar a voz do Sergio e de Susana, recebo um e-mail de Sergio. Liguei, imediatamente para ele e nos falamos. Marcamos um novo re-encontro para às 22h15min., tempo em que esperava já ter acabado o filme “Amor em tempos de cólera”, baseado na obra de Gabriel Garcia Márquez.

Depois que falei com Sergio, conversava com Julio e Angi, quando chegou Virginia, uma Sevillana, que me fez reviver o sotaque andaluz e repassar mentalmente os momentos que tive na Espanha, em 2001. Por alguns momentos, me vi passeando nos bosques próximos da Universidad Internacional de Andalucía, sede de Santa María de la Rábida, no cais de onde saíram as caravelas que chegaram à América... me lembrava de Mariví, de José Ángel, de Verónica, de Majó...

Não era que a conversa com Julio e com Angi era desinteressante. Pelo contrário, foi exatamente o fato de já estar tomado pelos sentimentos gerado com aquele momento que pude absorver tudo o que a presença de Virginia podia proporcionar.

Julio tem uma história muito bonita, de luta e de movimento. Sua mãe foi uma guerrilheira argentina, por isso, foi perseguida pela ditadura militar, teve que fugir com os filhos para o Peru e para a Colômbia. Já grande, Julio assumiu a luta de sua mãe, tornando-se uma pessoa engajada nos debates políticos sobre seu país e sobre a América Latina, percorrendo a Bolívia, o Chile e voltando ao Peru, onde morou por anos.

À parte isso, Julio registrava em fotografia a dureza do povo latino-americano, escrevia suas impressões sobre o mundo e lia muito sobre as impressões dos outros. Enquanto conversávamos, por exemplo, ele tinha uma revista alternativa que tinha uma entrevista com Walsh, morto pela ditadura argentina, com Galeano e com comentários sobre duas fotografias retiradas em 2001, durante a derrubada dos presidentes argentinos pelo povo.

Falamos um pouco sobre isso até que Angi, Virginia e eu seguimos em direção à Lavalle com o objetivo de assistir a “Amor em tempos de cólera”.

Ao final do filme, enquanto víamos os três falando sobre o que havíamos visto, a riqueza de detalhes, a teatralidade, me dei conta de que antes de viajar, eu tinha assistido a “El pasado” e que as mensagens se complementam, agora, não sei se por coincidência, na minha cabeça.

Enquanto “El pasado” me ajudava a compreender a necessidade de encerrar os ciclos para me sentir livre de certos valores, de certas “prisões”, para começar o caminho, “ O amor em tiempo de cólera” me fazia enxergar a possibilidade da entrega à vida com amor ou, na verdade, a viver a vida por amor. Neste caso, se é certo que o amor de Florentino Ariza era voltado para uma mulher (Fermina Daza) e sua vivência estava baseada na vontade de saborear com todas as cores este amor e tudo o que dele adviesse, a mim o filme dava a lição de que toda a dedicação a esta vida deve se dar com fundamento único no amor. Amor é o que move as lutas, as vontades de justiça e igualdade e enche de esperança o coração, fazendo renascer sempre, mesmo diante de cada contradição, minha e das pessoas, seguir acreditando na humanidade.

Agora, era engraçado pensar que ambos os filmes falam de amor. O primeiro do amor que acabou sem dizer fim. O segundo, do amor que não acabou, mas que, para ser vivenciado, precisava ser libertado. Ter uma liberdade, aliás, que, depois de tantos obstáculos, permitisse perceber que os impedimentos, ao final de tudo, compõem as condições que formaram uma forma de viver, de sentir, de superar os medos, de afirmar a poesia e a vontade de transpor tudo o que se impunha ante os olhos amorosos.

O melhor de tudo era perceber que se, como em “El passado”, deveria fechar e abrir novos ciclos para viver a experiência latino-americana, agora, depois de vivenciá-la, com o máximo de sabor que, diante da minha forma de viver e de perceber o mundo, pude construir e absorver, compreender que o amor, de “O amor em tempo de cólera”, vale a pena mesmo quando parece impossível, porque nos prepara para uma forma de olhar e de viver.

Como Florentino Ariza, que só pôde encontrar seu amor no final de sua vida, eu me achava no final de uma jornada e me sentia pleno daquelas vivências, pleno para re-começar, pleno para perceber-me depois de 40 dias de afetação plena da América Latina.

Em questão de segundos, foram todos estes os pensamentos que me tomaram. Como não consigo pensar sem dialogar, pois minhas idéias fluem quando se vêem verbalizadas e tomam contato com a pele de minha boca, dos meus ouvidos, bem como da pele da boca e dos ouvidos de quem me acompanha, toda a reflexão foi compartilhada e se reproduziu na companhia de Angi e de Virginia.

Enquanto eu mergulhava naquelas vivências, naquelas interpretações do cinema para a minha própria vida, elas me acompanhavam e davam o alimento necessário para a minha mente em efervescência. Algumas vezes, elas me olhavam fixamente e, com os olhos brilhantes, me diziam, em silêncio, sua emoção. Eu, embebido daquele sentimento, me sentia mais apto para seguir acreditando nas mensagens que, agora, pareciam claras na cabeça.

O silêncio das ruas do centro de Buenos Aires, quando não era quebrado pela passagem de algum carro, era rompido pelas idéias de amor e humanidade que povoavam aquela conversa. Foi assim, distraídos com aquele diálogo que, para não sermos atropelados, tivemos que correr. A este episódio dei o nome de “correndo por corrientes”, já que Corrientes era a avenida que estávamos atravessando sem perceber que o semáforo estava aberto para o carros e não para os pedestres.

Neste momento também, recuperei com mais força a única preocupação que me fazia interromper e, ao mesmo tempo, impulsionava as minhas reflexões sobre os filmes, pela grandeza do encontro de vida que se abria para mim, a espera de Sérgio na porta do hostel Clan para que nos despedíssemos.

Já eram quase 23h, portanto, apressei o passo e não me detive mais do que o suficiente para me despedir de Angi e, temporariamente, de Virginia.

De longe, olhava o lugar em que Sergio deixou o carro no dia em que foi me buscar para sair com ele e Susana, com a expectativa de que o meu amigo argentino não tivesse ido embora. Mas, diante da inexistência de seu carro no local, quase me acostumava com a possibilidade de não vê-lo antes de viajar, já planejando ligar para ele e Susana no outro dia, antes de partir, quando vi o seu carro na porta do Clan, pela rua Adolfo Alsina.

Por sorte, Buenos Aires, ainda que reclamem os argentinos de seu “perigo”, é uma cidade em que não é temível caminhar ou permanecer no carro, sozinho, á noite. Digo sozinho porque, como Sergio mesmo tinha dito à tarde, Susana não poderia me ver.

Estava com fome e chamei Sergio para caminhar um pouco pela rua Tacuarí, em busca do único lugar aberto e onde se poderia comer empanadas (pastéis de forno). A tentativa de comer foi em vão. Tudo o que o lugar podia proporcionar tinha algum tipo de carne. Desisti e voltei com o meu amigo para o Clan.

Ficamos, por horas, no terraço refletindo sobre aquela amizade que surgia tão forte e tão linda e, mais ainda, refletia sobre o encontro que tive com todas as pessoas que povoou a viagem que estava na véspera de encerrar sua parte “presencial”.

Em algum momento, comecei a falar com Sergio sobre a coincidência dos filmes antes e depois de tudo, mas, sobretudo, sobre a compreensão, daquele momento, de que estava pronto para o presente e para o futuro, existente mesmo com a morte. Pois, esta não interrompe as experiências e as vivências. Mesmo que um se vá, tudo tem o tamanho tal de compartilhamento que tem sempre permanência na vida de alguém, alimenta ciclos, alimenta o amor e a esperança.

Sergio, mais uma vez, com o seu jeito de olhar pleno de crença, sempre com um sorriso oculto, me fitava embevecido da minha fala, e, com isso, eu me sentia mais pleno de poesia e de reflexões.

Ficamos neste diálogo por horas, até que, perto de 2h da manhã, infelizmente, precisei pedir a Sergio que fosse para sua casa. Estava muito cansado. Queria dormir para enfrentar o dia seguinte, dia da minha viagem.

Descemos até a esquina da Alsina com a Tacuarí, lugar em que Sergio deixou seu carro e ficamos aí por mais um tempo. Como Sergio expressava, era difícil aquela despedida. Eu sentia saudade antecipadamente daquele amigo, enquanto ele me dizia do aprendizado que havia obtido no pouco tempo de convivência, da sua vontade de se entregar apenas àquilo de que gosta, de trabalhar com coisas que lhe dêem prazer, da sua única amizade com alguém de outro país latino-americano, mais surpreendentemente, com um brasileiro... (isso porque, imagino, aprendeu desde criança a acreditar na rivalidade futebolística).

Abracei o meu mais novo amigo e, de verdade, senti, naquele momento, que ele conseguia se libertar das dificuldades que tinha antes para abraçar e expressar seus sentimentos.

Eu me emocionava, Sergio se emocionava... depois de um abraço bem forte, tal como fiz com Juan, deixei Sergio sem olhar para trás, de modo que fosse me acostumando com a sua ausência. Tudo isso porque não sei lidar com a perda e, toda partida para mim é uma forma de perder.

Entrei no Clan com um sentimento indescritível de não saber o que fazer depois de tantas experiências. E, ausente de qualquer compreensão, supus que o sono poderia me fazer assentar os pensamentos e, num cantinho da minha cabeça, construiria uma resposta para aquela dúvida.

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