domingo, 13 de janeiro de 2008

De Tilcara a Pumamarca – a beleza indígena comercializada / 10 de janeiro

Perto de 7h da manha, o celular de Taís nos desperatava, mas, com o cansaco que tínhamos, nao era possível nos levantar. De qualquer forma, nao pudemos dormir porque a cada 15 min. o celular nos lembrava que precisávamos sair a Pumamarca. De qualquer forma, acabamos dormindo até as 9h, quando Juan entrou no quarto para trabalhar no computador.
Era uma grata surpresa acordar com a presenta tao tranquila e forte daquele tipo de ser humano que nao se encontra facilmente. E, por isso, daqueles que de quem nao se pode apartar facilmente. Ainda mais quando se precisa sair para conhecer os lugares que esta regiao da Argentina tem para oferecer.
Assim, ficamos até quase 11h30min. na casa de Juan sem querer sair. Ao mesmo tempo, para nós era importante ir a Pumamarca e nos forcávamos a ir.
Descemos a ladeira de Los Molles, a casa de Juan, passamos no único supermercado que existe por aqui e fomos a rodoviária. Por “coincidencia”, encontramos Irene e a outra menina (depois descobri seu nome - Cari) com quem estivemos ontem na ida para a garganta do diabo. Como também iriam a Pumamarca, nos reunimos e formamos um grupo. E, foi isso que também iria facilitar o nosso deslocamento até as salinas, uma regiao que um dia, a milhares de anos atrás, foi o fundo de um oceano e que mantém 150km de comprimento por 5km de largura pleno de cloreto de sódio.
Por muito tempo, refleti, juntamente com Irene sobre a atitude no dia anterior, de, sem me conhecer, imaginar que poderia querer uma foto com a paisagem das montanhas e se oferecer para ser a agente desta foto que me serviria de recordacao, como ela mesma me disse. Nem ela mesma tinha consciencia de que aquele que poderia ser um pequeno gesto, poderia significar uma grade preocupacao com o ser humano.
Quando chegamos em Pumamarca, encontramos por acaso Mauro, o psiquiatra que me ajudou, juntamente com Taís, a descer até a garganta do diabo, em Tilcara. Mauro estava com um rapaz que era artesao e conversavam sobre a diferenca entre a arte e o artesano. Nao sei porque, me meti nesta conversa e discordei deles. Para mim, esta diferenca é a reafirmacao de uma relacao de poder em que, aqueles que estao em certo patamar, se arvoram do direito de desqualificar o saber e o fazer popular, quase sempre impresso no artesanato.
O rapaz, no entanto, se disse artesao e, por conseguinte, incapaz de ser um artista porque, como disse, suas pecas sao reprodutíveis. Ele mesmo pode reproduzi-las diversas vezes. Nesse sentido, em se tratando de alguém que se assumia e se identificava com determinada leitura de seu próprio fazer, nao discuti mais. Me senti inconveniente. Preferi comecar uma conversa com Mauro, que esperava Irene e Cari, para que organizássemos uma ida todos juntos para as salinas.
Como se trata de um caminho muito sinuoso e cheio de curvas, a viagem foi longa e capaz de fazer a qualquer um passar mal, sobretudo com o modo como o condutor entrava e saía das curvas em subidas e descidas.
Depois de quase 1h30min, em que passamos por pontos muito frios situados a 4070m acima do nível do mar, chegamos ao local das salinas. Segundo o condutor, teríamos 30min. para percorrermos uma parte aberta a turistas e voltarmos ao carro. O tempo curto era uma forma de ele voltar mais rápido para a sede do pueblo e trazer mais pessoas ao local de visitacao, mas, para a gente, era o suficiente para que nao desidratasse naquela regiao desértica, muito quente e com muita luz, devido ao reflexo dos raios solares no branco do sal.
Sem cumprir o tempo pré-determinado, ficamos mais de 50min. circulando pelo local. Percebemos pessoas completamente cobertas esculpindo pecas artesanais e construindo uma casa com blocos de sal, passamos por uma piscina de água completamente salgada (isso mesmo uma psicina) e tiramos muitas fotos.
Apesar de ser uma regiao desértica, sob o sal, muito próximo da superfércie, existe muita água armazenada. Basta cavar um buraco, a água comeca a brotar. Em compensacao, colocar maos e pés na água salgada, além de potencializar a capacidade desidratante do lugar, ainda pode deixar a pele cheia de um sal fino, muito ardente.
Depois deste contato com o deserto salino, voltamos a Pumamarca. No caminho, fiquei observando o jeito de Mauro em relacao a Ignácio, o motorista. Com sua simpatia, conseguia ganhar Ignácio. Com ele, o motorista nunca se irritava, porque Mauro brincava, conversava sobre a estrada, sobre as pessoas que viviam nos vales, sobre seu trabalho. Quando queria que Ignácio diminuísse a velocidade para tirar fotos, usava, carinhosamente, os mais conhecidos palavroes argentinos. Muitas vezes, dizia: - Ignácio, desgracado, nao se pode tirar fotos com toda esta velocidade. Nao seja idiota. Deixe-nos tirar fotos da paisagem que voce tem todos os dias perto de casa. Isso complementado com outras coisas que só se diz na Argentina, mas que nao convém dizer porque, em outra língua ou dito por quem nao é originário de certa cultura, fica falso por nao se saber empregar com a forma e o tom corretos.
Em um momento, apesar de estar Ignácio um pouco enraivado com o fato de as meninas terem atrasado a sua volta, lembrei que havíamos passado pela parte mais alta da regiao na ida e que o motorista nos havia prometido parar para uma foto. Assim, tateando, perguntei se a gente nao poderia parar no marco dos 4.070m de altitude para tirar uma foto de recordacao. Prontamente, Ignácio me afirmou que sim e, mais adiante, parou. Por coisa de cinco minutos mais, aumentamos nossa viagem e levamos uma recordacao da altitude.
Durante a ida e a volta, pela primeira vez, senti um pouco a altitude. Tive uma pequena, bem leve mesmo, fisgada no ouvido. Mas, nao demorou muito. O que mais me incomodou foram as curvas e, nao sei se por causa delas ou da altitude, foi uma sorte que nao houvesse comido antes de entrar naquele carro. Teria vomitado. E, nao apenas eu, mas todos. Porque era uma sensacao geral a de que, com as curvas, poderíamos vomitar.
Quando chegamos na sede do pueblo, Taís e eu queríamos comer alguma coisa, ir ao banheiro e sair rapidamente para conhecer o “Cerro Siete Colores”. Enquanto caminhávamos em direcao ao um “kiosco”, encontramos o casal de Buenos Aires com quem conversamos muito na primeira noite em Tilcara. Nos cumprimentamos, recebemos algumas dicas quanto ao que podíamos conhecer e nos despedimos.
Depois de comer, Taís e eu fomos percorrer uma estrada em direcao ao um mirante. Isso nos faria ver mais de perto e em melhor angulo o “Cerro Siete Colores”. Chegamos ao local indicado, mas nao nos contentamos. Queríamos circular pelo meio daquelas montanhas, plenas de energia.
Havia um caminho, “Camino de los Colorados”, que passava por “Cerros” vermelhos, aparentamente de argila. Era lindo ver como cada um interagia com a forca da natureza. As criancas, como que em excursao do colégio, brincavam, subiam e desciam despenhadeiros, como se estivessem em lugar plano; havia um rapaz que cantava e tocava um instrumento chamos Charanguito, na beira de um precipício enquanto outros faziam malabares; mais adiante, uma menina, sentada na beira do abismo, simplesmente, pensando; eu e Taís apenas caminhávamos inebriados com a beleza e a forca do lugar.
Quando encontramos um lugar para subir, fomos em direcao ao cume de uma das montanhas mais baixas. Estávamos cansados e só queríamos observar a vista.
Por causa das idas e vindas das criancas, Taís ficou um pouco irritada e nao queria ficar mais tempo no topo daquela pequena montanha vermelha. Descemos e continuamos o caminho a Pumamarca. Aí tomaríamos o onibus até Tilcara.
Quando chegamos no onibus, mais outra coincidencia. Mauro vinha também até Tilcara para, sair no outro dia para Humauaca, pueblo mais ao norte de Tilcara, mais próximo da fronteira com a Bolívia.
Conversamos um pouco, mas logo tratamos de descansar um pouco para chegarmos a Tilcara em melhores condicoes físicas.
Depois que descemos em Tilcara, encontramos Gustavo e Dinis, uns portugueses amigos de Fernando e André, que conhecemos em Salta. Ficamos conversando enquanto Taís iria dar uma olhada em seus e-mails e, enquanto conversávamos encontrei duas meninas e o rapaz que tocava instrumentos de sopro, cujos nomes nao lembro, embora também estivessem na casa em que fiquei em Salta. Eles me viram e me cumprimentaram. Em pouco tempo, quando Taís se juntou a gente, eles foram embora, enquanto Gustavo e Dinis nos acompanharam até a casa de Juan. Os portugueses queriam conhecer a pessoa de que tanto falávamos, a pessoa que tanto gostava de música brasileira da melhor qualidade.
Na casa de Juan, percebi que os meninos, de cara, se identificaram com Juan. Comecamos a falar de música de cultura... até que Juan os convidou para um churrasco, de carne e de verduras. Como Gustavo e Dinis já tinham uma janta marcada com as pessoas do hostel em que estao, nao puderam aceitar o convite de Juan. Mas, de qualquer forma, desceram com a gente para comprar algumas coisas para a janta.
Enquanto caminhávamos, Taís comecou a falar de música e, especialmente, do funk carioca. Para ela, o funk podeia ser, em alguns casos, uma grande expresao feminista. Inclusive, Taís falava de um antropólogo, irmao de Herbert Vianna, que constituiu uma tese de doutorado sobre esse ritmo e dava o exemplo de algumas músicas de Tati Quebra-barraco (nao sei como se escreve esse nome). Em alguns momentos, Gustavo, que é músico em Portugal, concordou com ela quanto ao fato de ser o funk uma expressao cultural das favelas cariocas.
Mas, diante do pouco que conheco, nao podia concordar com essa idéia.
Gustavo foi veemente em relacao as minhas idéias e, Taís, mais ainda, me tachou de radical e contraditório quanto ao meu discurso de respeito as diferencas e de conhecer as diferentes culturas...
Tentava dialogar com eles que a massificacao de uma expressao musical opressora e comercial nao poderia ser considerada uma expressao cultural. Pois, cultura é algo que permite a libertacao, a consciencia de sua própria identidade, que produz a refelxao, inclusive, do próprio fazer cultural. E, para isso, nao precisa que venham pessoas de fora das comunidades, intelectuais para dizer o que é cultura, para estudá-la em seu habitat. O povo pode adquirir consciencia de seus tracos a medida mesmo em que sente prazer em mostrar o que tem de mais seu, a medida que expoe seus tracos e os coloca diante de outras exposicoes.
Evidente, que isso pode ser espontaneo ou provado, mas nunca imposto.
Para complementar meus argumentos, lembrava de algumas letras de funk, como aquela que justifica um “tapinha” nas mulheres, lembrava algumas músicas de forró de plástico, como “carinhosamente” chamo a música que alguns fazem no nordeste com a denominacao de forró eletronico, e dialogava, do ponto de vista da libertacao, da afirmacao da democracia, da república, da cidadania e dos direitos humanos, como estas expressoes musicais podem ser uma afronta ao própio povo, uma oposicao ao propósito libertador. Tal como acontece com a música e com o filme “Tropa de Elite”, de Padilha. Ele nao só é a demonstracao de uma prática constante de diferenciacao entre as pessoas da favela, como é também a justificacao inescrupulosa da violencia contra os pobres, que só veem a face policial do Estado.
Sobre o tema da prática de diferenciacao, é importante que se diga que, movido pelos preconceitos e pela discriminacao, pode ser comum entre pessoas excluídas social e moralmente, justificar a violencia ou a exclusao em face de um ser aparentemente sob condicoes iguais de sobrevivencia. E, isso pode ser visto em músicas de funk, pode ser visto no desejo de ser policial para se tornar um ser que se integra ao “asfalto”, como se denominam as partes da cidade diversas daquelas cujos direitos humanos e a dignidade, materializados em políticas públicas de qualidade, pode ser visto na tentativa de obter bens de consumo pouco duráveis...
Com esses argumentos de que o funk pode ser um agente da negacao de direitos, inclusive do direito a cultura, aos quais agreguei experiencias nordestinas satisfatórias de respeito e resgate de expressoes culturais, pasamos muito tempo conversando. Aliás, o tempo suficiente para que Taís e Juan comprassem todo o que precisavam para a janta.
Depois disso, nos despedimos de Gustavo e de Dinis e, quando íamos para casa, Juan passou na casa de seu amigo ceramista, Nadalino, para convidá-lo, juntamente com sua esposa, para a janta em sua casa. Depois, seguimos.
Quando chegamos, Taís e eu ficamos vendo as fotos que tiramos em sua camera, escolhemos aquelas que eu gravaria em meu pen drive e fomos nos juntar a Juan, Ceci e um casal de amigos de Juan que estava em sua casa. Até muito próximo das 2h da manha, ficamos conversando. Em seguida, quando fomos dormir, Juan colocou em um projetor o DVD Partimpin de Adriana Calcanhoto. Com nao tinha mais forcas para segurar as pálpebras, dormi, interrompendo o meu sono somente para ver uma parte da música Eu sem voce, de que gosto bastante em sua voz.

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