quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O primeiro dia do ano

Acordei pensando que era hora de ir. Nao havia dormido muito, mas precisava decidir sobre a partida. Havia gostado muito de Mendoza, mas, como era época de festas e de férias, estava tudo fechado, poucas pessoas na rua para conversar, poucas coisas para ver..., pensei que fosse melhor tentar ir a Córdoba logo e encerrar os meus caminhos pela Argentina.

Estou ansioso para seguir para a Bolívia, ter contato com o povo e com a forte cultura boliviana.

Ao mesmo tempo, a sensaçao era de que nao havia um recomeço, apenas uma continuaçao. A serenidade da entrada de ano novo me dava esta impressao. Nao tinha passado pelo momento de "quebrar" os laços com o ano anterior, como se tudo tudo fosse uma etapa, e via as coisas como continuidades transformantes e transformadoras, capazes de, por afetaçao, nos fazer absorver novas formas de pensar. Ou seja, é preciso vivenciar coisas e nao apenas mudar o número do ano para sentir-se renovado.

Depois de alguns momentos deitado, pensando na possibilidade de ir ou de ficar, levantei e comecei a arrumar minha mochila. Se nao fosse embora, pelo menos, já estava com tudo organizado.

Enquanto tentava arrumar as coisas, com o máximo de cuidado por se tratar de um quarto compartilhado, levantou-se um cara, que nao conseguia identificar muito bem de onde era, e começou a conversar com o outro. Nao entendia muito bem o que diziam, porque, em alguns momentos, falavam em inglês e em outros falavam de um modo bem chiado, mas achei que eles poderia estar comentando sobre o que fazia, que eles poderiam estar incomodados com a minha arrumaçao, e deixei de lado essa idéia. Afinal, era o primeiro dia do ano, todos os que foram para festas estavam querendo dormir e eu, que havia passado a entrada do ano novo muito serenamente, já estava, logo cedo, querendo arrumar coisas...

Desci, como nao havia mais café-da-manha no hostel, comi algumas coisas e fiquei perambulando até encontrar Cèdric. Ficamos conversando até ue se acordasse Julian e pudéssemos ir até a rodoviária comprar passagens para outros lugares.

Na volta, Cèdric propôs que viéssemos por uma rua paralela a avenida que passa em frente à rodoviária, segundo ele, porque poderia ser mais perto. O resultado disso é que caminhamos por lugares que nao conhecíamos e nos perdemos. Quando pedimos informaçoes a umas poucas pessoas que estavam na rua, percebemos que estávamos muito longe de onde iríamos.

Se estava cansado, isso foi o motivo para chegar no hostel e dormir. Quando olhei o relógio e vi eram sete horas da tarde (aqui ainda tem sol até quase 22h neste período), me levantei no susto e comecei a arrumar minhas mochilas, de modo que, no outro dia. quando fosse sair, pela manha, já estivesse tudo pronto e nao precisasse incomodar ninguém.

Além disso, estava com muita fome, porque, durante o almoço, nada estava aberto na cidade e nao consegui comer. Queria ver se os franceses estavam no hall de entrada do hostel para chamá-los para comer.

Quando desci, nao os vi em nenhum lugar. Por isso, esperei um pouco, fundado na possibilidade de que pudessem estar no quarto. Neste momento, escutei alguém falando português. Era Taís, uma menina do Rio Grande do Sul (doutoranda em história), que conversava com os rapazes que nao entendia enquanto arrumava minhas mochilas na parte da manha.

Me aproximei e comecamos a conversar. Rapidamente, descobri que os meninos se chamavam Fernando e André e eram portugueses. Nao os entendia porque falavam português de Portugal e porque, em alguns momentos, falavam inglês.

Comentei com eles sobre o ocorrido na parte da manha e pedi desculpas, mas eles disseram que o que conversavam nao tinha a ver com isso. Ainda estavam bêbados, naquele momento, e lembravam das camisas que tinham tirado por causa do calor e esquecido no lugar da festa.

Ficamos por aí conversando, até que Thaís nos convidou a todos para comer, ao mesmo tempo em que tentava organizar uma ida para Puente del Inca, lugar mais próximo à entrada do Parque Aconcágua, no outro dia.

Como teria que passar o dia todo, até às 22h15min (horário do ônibus para Córdoba) sem fazer nada, resolvi que seria interessante estar próximo dessa montanha de energia que é o Aconcágua.

Mas, como podìamos combinar a saída enquanto comíamos, saímos em busca de um lugar barato e que tivesse uma boa comida. No meu caso principalmente, que tenho feito somente uma refeiçao por dia. As outras, acabo comendo besteiras.

Na esquina, encontramos os três franceses e foi muito engraçado esse momento. Eu, Taís, Fernando e André falavámos português, cada um com seu sotaque, os franceses falavam francês e, em alguns momentos, inglês. Outras vezes, eu falava espanhol e francês... fui uma verdadeira "globalizaçao", todos falavam um monte de línguas e todos se entendiam.

Depois, acabamos percebendo que cada um estava com vontade de comer coisas diferentes e fomos para lados opostos.

Quando sentamos, os portugueses e nós, começamos a conversar sobre diversos temas. O principal deles, fazer o que se gosta em detrimento do que aumenta a capacidade financeira ou o contrário, foi o que tornou conta do nosso jantar.

Por um par de horas, falamos sobre a importância das lutas, falamos sobre os traços marcantes da colonizaçao portuguesa, sobre a universidade e as condiçoes atuais de emprego para as pessoas com graduaçao... de repente, falávamos sobre práticas de "diferenciaçao" entre pessoas que sofrem violência doméstica, mulheres sobretudo, bem de pessoas que sofrem violência policial em favelas, que, muitas vezes, incorporam a violência e a justificam como forma de livrar-se dela, quando entramos no tema dos trotes das universidades portuguesas.

Durante o ano, os calouros sao humilhados e se deixam humilhar, esperando, no futuro, depois de vestir a beca dos veteranos, poderem fazer o mesmo com aqueles que chegam.

Depois da comida, seguimos conversando para o hostel até sentarmos no terraço e ficarmos conversando sobre psicanálise, sobre relaçoes humanas, sobre drogas, sobre percepçao/compreensao do mundo... quanto a este tema, o que mais discutimos foi se era possível separar o percebido do real e como as drogas modificam a percepçao das coisas (sem juízo de valor quanto a ser bom ou ruim o uso de drogas).

Taís e Fernando, inclusive, lembraram que Freud usava cocaína e receitava cocaína a seus pacientes.

Depois de um debate muito legal, em que Fernando pontuou algumas discordâncias em relaçao ao que eu dizia, fui dormir. Já eram 2h da manha e, no outro dia, iria ao Aconcágua às 6h da manha.

Quando menos espero, Fernando me acorda para dizer que ele e André nao iriam no ônibus das 6h e que eu nao os acordassem.

Como eu e Taís estávamos certos de que iríamos bem cedo, tratei de voltar a dormir, embora ainda estivesse refletindo sobre todas as conversas e todos os encontros do dia.

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