terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Estava cancando nuvens... acho que encontrei

Temia comecar a escrever as experiências de Valdívia e das "nuvens" que andei encontrando por aqui. Nao sei também nao seria consequências do processo reflexivo em que me encontro devido a tudo o que significou o dia de ontem para a minha vida ou se era simplesmente por nao saber como fazer isso.

O dia comecou muito forte com a conversa que tive com Yesi. Senti que nos emocionamos e que expusemos os nossos espíritos latinoamericanos, cada um a sua forma, para que o outro pudesse conhecer. Eu, com minha brasilidade sedenta por perder-se em minha latinoamericanidade. Ela, com sua chilenidade sedenta por perder-se em sua latinoamericanidade. Ambos, com sua intencao de entregar-se a um sentimento que se vai mais além do que o que se pode encontrar em seus próprio lugar, mas que nao se encontra se cada um nega sua própria identidade. Isso é como um dialogar intercultural que só existe se, provocados pela diferenca e pelas semelhanca que todos temos, nos dispomos a seguir com o diálogo e com a compreensao do que significa compartilhar a humanidade.

Infelizmente, Yesi tinha que organizar as coisas no hostel e nao podíamos passar todo o dia conversando, inebriando-nos um da cultura do outro, um das lutas que cada um enfrenta em seus países.

Assim, meio sem sentido, sem rumo, acabei indo para a rua. Queria depurar as idéias que se haviam construído naquela conversa em torno de situacoes comuns que enfrentamos com nossa gente. Dos problemas ambientais, da exploracao do trabalho das pessoas, das contradicoes de nossos governos, em tese, de esquerda, da nossa sumissao aos países desenvolvidos... mais especificamente do Brasil, sobre a existência de escravos, de criancas vítimas de exploracao sexual... e, também, de experiências de enfrentamento: dos pescadores de Mehuin, dos sem-terra, de Paulo Freire e de sua pedagogia do oprimido...

A rua era só um espaco para fazer os sonhos brotarem... e, por isso, nao sabi muito o que fazer. Em alguns momentos, queria percorrer a cidade, em outros, queria conhecer as praias do oceano pacífico. Durante quase duas horas, rodei sem rumo por Valdívia.

De repente, peguei um ônibus até Niebla e depois para Los Molinos. Fiz algumas fotos, mas tinha voltade de voltar. O que buscava nao estava aí. E, tinha uma forte sensacao de que deveria estar no hostel para me sentir melhor.

Para voltar, caminhava por uma estrada estreita, ainda pensando em tudo o que me acontecia em Valdívia. As pessoas que estava conhecendo, as conversas, as experiências... em determinada altura da praia de Los Molinos, peguei um outro ônibus que me levasse direto para a sede do muncípio de Valdívia. Parecia que nao queria perder mais tempo.

Em quarenta minutos, estava de novo no hostel. Quando cheguei aí estava Germán, o administrador do hostel que se havia ido para Pucón, na regiao dos vulcoes passar uns dias. Yesi me havia faldo dele, de sua música, de seus talentos e de sua simpatia.

De fato, foi muito fácil comprovar tudo isso. Conversamos muito. Ele me contava que é jornalista e trabalha em cinema em Santiago. Agora, está filmando um documentário sobre uma pianista Rapa Nhui (da ilha de Páscoa). Mas, como se passa com aqueles que tentam fazer trabalhos independentes, nao tem dinheiro. Está fazendo conforme vai conseguindo.

Ele conhece muitos movimentos culturais e de luta por direitos humanos na América Latina. Me contou toda a história do Mehuin, pescadores que conseguiram mobilizar todo a sua comunidade para impedir que uma empresa de papel e celulose se instalasse e puesesse seu lixo nos mares onde pescam, me contou a história dos indígenas no Chile, lhe contei dos sem-terra, dos trabalhos de combate a exloracao sexaul de criancas e adolescentes, falei das contradicoes do governo Lula, ele me disse das contradicoes de Michel Bachelet...

Passamos toda a tarde conversando. Nao conseguíamos parar. Germán queria conhecer, eu queria conhecer... à parte isso, queríamos desfrutar de um sentimento comum de latinoamericanidade. Isso até necessitarmos ir ao supermercado comprar coisas para fazer algo para a noite de Natal.

No supermercado, Germán, Tim e eu tivemos que nos separar porque estava muito cheio, o calor estava enorme, as pessoas agoniadas... era Natal e todos queriam estar o mais rápido possível em suas casas. Nós também. Em meu caso, queria voltar para seguir o processo de compartilhamento.

Com problemas no caixa que escolhi porque era o aparentemente mais vazio, fui o último a chegar... todos já estavam cozinhando, preparando as coisas. as meninas da Alemanha (Janna, Patricia e Montana), já estavam com quase tudo pronto. Tim preparava, junto com Germán, um churrasco em que misturavam carnes com algumas verduras e, eu, apenas tinha que esperar para me preparar algo.

Quando estava cozinhando, chegaram mais três pessoas no hostel. Um estadunidense, Michael, e um casal, Marcel (de Chile) e Sezanne (de EUA), que vive em Austrália.

Ao terminarmos tudo, comecamos o compartilhamento. O casal ainda estava se organizando, mas as pessoas acabaram sentando à mesa e comendo. Isso porque também já eram 22h e, para quem tinha passado o dia caminhando, já estava muito tarde.

Depois da comida, comecamos uma conversa entre todos. Esse foi um dos momentos mais lindos de toda a minha vida. Pudemos fazer as distintas culturas, ainda que sob o mesmo espectro, o da ocidentalidade, conversar. Falávamos das relacoes colonialistas. De como os europeus e norte-americanos exploram a nossa américa latina... neste momento, falava do livro de Frantz Fanon (os condenados da terra), mais especificamente do prefácio de Sartre, que diz que todos os europeus precisam parar para pensar sobre sua culpa em relacao ao modo como vivem os países colonizados, sua culpa de antes e de agora, de como para que tenham uma vida mais digna, necessitam de nossa riqueza, de nossas pessoas, de como EUA necessita dos latinos..., quando Janna, visivelmente emocionada, interrompeu e perguntou como era isso da culpa e o que podíam fazer para mudar isso.

Minha resposta mais imediata veio no sentido de que, no mínimo, os europeus e norte-americanos precisam aprender a votar. Porque, os líderes que escolhem lá, resvala nas pessoas aqui.

Foi muito tempo de conversa... ficamos todos muito emocionados... até que me pediram para cantar algo da música brasileira. O primeiro que veio na minha cabeca, porque é a única música que tenho de cor, foi "no woman no cry". Cantei, depois, voltamos a conversar, depois me pediram mais música... o que fiz foi cantar à capela.

Em seguida, para que nao cansasse as pessoas, pedi para Germán tocasse seu acordeon. Ele relutou um pouco, mas, num momento, comecou a contar uma história de como comecou sua relacao com o instrumento.

De forma muito emocionada, disse que era um desejo de seus pais que estudasse acordeon. Ele nao queria, até o dia em que sua mae o levou para matricular-se em uma escola de música. No caminho, propôs o que toda crianca cansada de ter que fazer algo que nao está afim proporia. Ele disse muito claramente: Mamá, ¿por qué no volvemos a la casa y no le decimos a papá que la escuela no estaba abierta, que no pudimos hacer la inscripción?

Sua mae, muito seriamente lhe devolveu uma proposta: Si no quieres hacerte las clases, ¿por qué no te decis a tu padre que no te quieres hacértelas?

Segundo ele, nao teve "cojones" de dizer ao pai que nao queria e comecou a estudar. Por um tempo, abandonou o instrumento em favor do violao, paixao dos jovens, e, agora volta a aproximar-se do acordeon.

Depois disso, Germán nos presenteou com três lindas músicas. Ficamos todos inebriados, com os olhos mareados...

Finalizada a música, Germán nos pediu que cantássemos mais coisas do Brasil e do outras partes. Marcel nao se conteve e comecou uma música no violao, depois Suzanne cantou uma múcia folclórica de EUA e eu voltei a cantar algumas coisas do Brasil.

Quando já ninguém mais cantava, Marcel propôs que cantássemos, cada um em sua língua, "noite feliz". Esse foi um momento mágico. Era um coro lindo de 9 pessoas que, pela música, fizeram sua língua comum.

Todos fomos capazes de nos compreender e dar ao outro o que tínhamos de melhor. Oxalá pudesse o mundo fazer o mesmo. Oxalá, pudéssemos todos os dias trazer essa experiência renovadora para a nossa vida, para a forma como conversamos com as pessoas de todas as partes, inclusive, mas próximas. Oxalá, o mundo pudesse compreender que os seres humanos podem conviver juntos, sem fronteiras e sem barreiras que nos exilam em nossos próprios mundos.

Tudo se voltou para mais emocao, para mais concentracao energética, ao ponto de nao nos contermos em nós mesmos. Queríamos ficar mais tempo, apesar do cansaco, queríamos todos desfrutar das companhias que tínhamos aí.

Antes que se fossem todos dormir, propus que fizéssemos uma danca que, na UFPB, chamamos de EPO, uma saudacao indígena. Ensinei os movimentos e comecamos a brincadeira. Um momento de descontracao e de muita alegria. Era o extravazamento de nossas energias mais intensas concentradas naquela noite.

Ao final, fizemos um abraco coletivo de Natal e, em seguida, nos abracamos um por um, desejando o melhor para todos, boas viagens, boas companhias...

Quando Tim e o casal foram dormir, por um momento, retomei algumas conversas que teria iniciado com Michael. Aí pude perceber que, apesar de seus 22 anos, nao era um jovem norte-americano comum. Sabia um pouco da história do Brasil e da América Latina, tinha vindo para a cidade em que Che nasceu, Rosário, na Argentina, para aprender a falar espanhol, iria até o Peru trabalhar voluntariamente em uma fazenda...

Foi encantadora esta conversa. Me lembrou Dieter, meu amigo americano, médico, casado com Verónica, da Argentina, que tinha vindo para a América Latina trabalhar pela saúde do povo mais pobre.

Michael tinha todos os sonhos que nao podia imaginar que os meninos dos EUA tinham. Falava de justica, de sentimentos, expressava muito carinhosamente sua sensibilidade, acreditava nos direitos humanos...

Nao sei por preconceito, sempre imaginei que os meninos norte-americanos estavam de costas par ao mundo, que tinham suas vidas voltadas apenas para o consumo... mas, o próprio Michael me disse que, nas escolas, nao se estuda história dos outros países, nao se conhece muito da vida das pessoas de outros países. Assim, que posso estar errado ou posso estar, de alguma maneira, certo de pensar o que penso.

Mas, que bom, que, nesse momento de promover encontros, estou tendo surpresas. Michael é uma grande surpresa! Embora nao seja surpresa porque sao latinos, Yesi e Germán também foram grandes encontros.

Aliás, tudo que aconteceu ontem foi o resultado de um grande encontro de "nuvens", de "nuvens" que percorriam muito rápido o "céu", que, em algum momento, se deixam derrar ao solo para fazer brotar e, em seguida, vao a outros lados, promover novas semeaduras.

Isso fez deste lugar, de Valdívia, um lugar incrível. Um lugar capaz de canalizar a vida de muitas pessoas para um momento tao lindo como a "noche buena" (como se chama a noite da véspera de Natal em espanhol) de ontem. De outro modo, de verdade foi uma "buena noche".

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